”Eu tenho dois vícios”, vai dizendo o homem alto, camisa e paletó pretos combinando com os sapatos bicolores, perto do bar do União Fraterna, salão da zona oeste paulistana em que foi ambientado o filme Chega de Saudade, dirigido por Laís Bodanzky. Pele negra, bigode grisalho, dentes branquinhos, Israel Laércio André tem 68 anos de idade e marca ponto toda semana em bailes espalhados pela cidade. “Dançar é um deles”, explica ele, que freqüenta, além do União, o Piratininga, no centro, o Vila Maria, na zona norte, e o Atlético Ypiranga, na zona sul. As exceções são as terças e as quartas, como depois se verá. Israel é casado há 45 anos com Neide e tem seis bisnetos. Passista de escola de samba, a mulher não gosta de dança de salão e, consta, consente o “vício” do marido: “Ela sabe aonde vou. Outro dia apareci com marca de batom na gola. Ficou olhando, desconfiada… Aí falei que não danço com homem… Minha mulher é a melhor do mundo, a gente se entende”, comemora.
Sem agarra-agarra
É uma segunda-feira fria de junho, lá fora. Dentro, e durante todas as segundas-feiras do ano, os boleros, chachachás, foxes, maxixes e sambas comem soltos, quentes e entusiasmados na pista do União. O baile, batizado de “Espanta Preguiça”, existe há 12 anos e acontece sempre e só no primeiro dia da semana. Reúne, em média, 300 pessoas entre 50 e 70 anos, que pagam R$ 8 para dançar das 20 horas à meia-noite e meia. Nada de cenas tórridas ou agarra-agarra explícito: os pares que deslizam pelos tacos de madeira em mosaico combinam elegância e felicidade. Há poucos exibicionistas. Quem está na pista, acomodado em uma das 111 mesas ou debruçado no parapeito das janelas (homens, invariavelmente), que separam o bar do salão, está interessado no que ainda há de romântico e prazeroso nesse antiqüíssimo hábito de mover compassadamente o corpo, produzindo endorfina, substância responsável pelas sensações de bem-estar.
Paquera? “Claro, sempre existe”, afirma Vanderlei Marques, 60 anos, promotor do “Espanta” ao lado da mulher, Ana Rosa, 54 anos, ambos aposentados. Eles também se conheceram em um salão de baile. “Já fomos padrinhos de uma dúzia de casamentos. Tem casais que ficam separados durante um tempão e acabam reatando aqui. Nunca tivemos nenhum problema sério, é um ambiente amistoso, de muitos amigos”, diz ele, que também organiza um baile aos sábados, na Praia Grande, litoral de São Paulo. O prédio do União, de fachada em estilo eclético e paredes pichadas, foi construído em 1934 e mantém um sugestivo luminoso no telhado. Sobressai na paisagem escura da Rua Guaicurus, na Lapa. A arquitetura interna é uma mistura de estilos devido às sucessivas e improvisadas reformas. No teto, dois enormes lustres centrais pendem sobre os dançarinos. Ventiladores (hoje desligados) correm pelas paredes e, junto com os leques, tornam-se um socorro nas noites quentes de verão. Em uma cidade pontuada pela medonha arquitetura dos shoppings, o União Fraterna tem seu charme e garante muita diversão.
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Beliscão cinematográfico
Algumas pessoas que nesta noite se embalam ao som do grupo Premiun, formado por sete músicos e uma cantora, participaram das filmagens de Chega de Saudade, em cartaz nos cinemas e estrelado por nomes como Betty Faria, Tônia Carrero, Cássia Kiss, Leonardo Villar, Stepan Nercessian, Paulo Vilhena, Clarisse Abujamra, Miriam Mehler, Maria Flor e Marly Marley. Durante cinco meses, reais freqüentadores do “Espanta Preguiça” tornaram-se atores figurantes em gravações que duravam o dia inteiro. A certa altura do filme, o garçom Gilson (interpretado por Marcos Cesana) recebe um provocante beliscãozinho nas nádegas. A autora do atrevido gesto é Regina Previdelli, 58 anos, mãe de dois filhos, professora aposentada de matemática e física, habitué desse tipo de baile desde 1996. “O filme é uma homenagem à terceira idade, gostei muito. Aqui eu não dou ‘tábua’ em ninguém, a menos que o homem esteja alcoolizado. Caso contrário, mesmo que ele não saiba acompanhar o ritmo, eu ‘saio’ (danço), damos uns passos e gentilmente peço um intervalo. A dança me ajudou demais: eu já estava divorciada quando me aposentei. Fiquei meio perdida, sem saber o que fazer. Dançar me reabriu o mundo”, resume ela.
Todas as freqüentadoras do baile capricham nos passos e no visual. Nair Paschoal, 52 anos, enfermeira de profissão, usa uma vistosa blusa cravejada de lantejoulas e paetês, além de uma gargantilha que adorna a pele clara. Simpática, alterna danças com a distribuição de filipetas com informações sobre bailes similares, em outros lugares. “Quem dança não se cansa. Aprendi em casa, sozinha. Hoje, só de bater os olhos já percebo se o homem sabe ou não dançar”, diz. Neusa de Almeida, 57 anos, solteira, mora com a filha de 21 anos na Freguesia do Ó, zona norte de São Paulo. Aprendeu a dançar cedo – “com a ajuda de uma vassoura” -, aos 9 anos de idade. Ela também participou das filmagens como figurante e não perde um baile na vida real – além do “Espanta”, vai ao Venturoso, em Osasco, e ao Roma, na Lapa. Vestido preto, sorriso constante, conversa bastante e anda sempre acompanhada da irmã Guiomar, 70 anos. “Namorados, só lá fora. Aqui nunca aconteceu.”
Diferentemente da maioria das mulheres presentes, Marta Votoran ainda mantém certa timidez ao cruzar os passos com os “bambas” do baile. Mesmo assim, se delicia: “Esse ambiente me contagia. Antes mesmo de ver o filme, eu já era apaixonada. Quando voltava do meu trabalho (atua com responsabilidade social em uma grande empresa), costumava ficar olhando as janelas iluminadas de uma escola de dança que havia no caminho. Nunca entrei, mas aquilo me fascinava. Aí eu descobri o União.” Na companhia de amigos, Marta comemorava seus 35 anos de idade. Trouxe bolo, claro, que seria distribuído mais tarde – depois da valsa compartilhada por todos no salão. Lá pelas 23h30 foi possível avistá-la dançando um animado ragtime no meio da pista.
O garçom e a florista
Cervejas, muitas. Mas também doses de uísque, vodcas, caipirinhas, água mineral, refrigerantes e porções de provolone, calabresa e salame se equilibram na bandeja conduzida pelo garçom Anderson Oliveira, 25 anos, quartanista de administração de empresas. Cabelos espetados com gel, ele esbanja disposição durante o “Espanta Preguiça”. Sabe o que a maioria bebe, conhece as manhas e os caminhos. “Às vezes, algum me pede para entregar um bilhetinho. Eu topo numa boa, mas, se vejo que a mulher está acompanhada, dou marcha à ré e digo: ‘Não dá, já tem gente’.” Anderson ganha comissão sobre o preço do que serve no União e trabalha em outros bailes durante a semana.
Vanderlei, o organizador, passa o baile inteiro circulando entre mesas e convidados. Gentil, dá atenção a todos e sobe ao palco durante os rápidos intervalos para anunciar aniversários, comemorações, bodas, bailes, dar avisos e animar a confraternização. Ex-vendedor e relações-públicas, começou promovendo festas na década de 1970. Com tanto tempo de “janela”, assegura que todas as histórias narradas no filme correspondem à realidade. Isto é, as cenas de ciúme, carinho, alegria, inveja, flerte, desejo, tristeza e romance que aparecem em Chega de Saudade habitam todos os bailes de salão. “É comum, por exemplo, uma garota nova ficar seduzida pela habilidade de um dançarino mais velho”, afirma.
Vanderlei desce do palco e a música recomeça. Polivalente, o Premiun toca de tudo. Mas o baile chega ao clímax na seleção de boleros, quando os casais fecham os olhos para sussurrar os versos de “Dicen que la distancia…”, enquanto alguns homens solitários fingem indiferença bebericando outro gole, debruçados no parapeito da janela. Mas têm sucesso garantido também Frank Sinatra, Roberto Carlos, Pepino di Capri, Zeca Pagodinho, Ary Barroso, Luiz Gonzaga, Tom Jobim, Ângela Maria, Luís Miguel, Gal Costa, Nelson Gonçalves, os tangos e milongas portenhos. E é nessa atmosfera romântica que a florista Silvia Aparecida de Oliveira Rodrigues – “parece nome de ladrão de cavalo, né?!” – aproveita para vender seus botões de rosa que “dão pra alimentar a bichinha lá em casa (a filha de 5 anos) e começar uma casinha”. Para tanto, essa viúva de 38 anos se multiplica em bailes durante toda a semana. A jornada das sextas-feiras é estafante e cronometrada: faz o BNH de Pinheiros, na zona oeste, depois corre para o Som de Cristal, no Tatuapé, na zona leste, onde fica até a hora de pegar o último metrô. Desce no Brás, também na zona leste, e vai para o Clube Independência. Volta de manhãzinha para casa, na Freguesia do Ó, e recolhe a filha, que dormiu na vizinha. “Ganho a vida com isso, mas ainda vou ser decoradora”, fala, com brilho nos olhos.
Fim de baile
Por volta de meia-noite, sob um facho de luz, Ana Rosa, mulher e sócia de Vanderlei, contabiliza ingressos e mesas vendidas – “parece que empatamos renda e despesas”. Na pista, casais enamorados dançam mais lentamente e amigos planejam o próximo encontro. Ana e a irmã Guiomar estão quase de saída, o garçom Anderson fecha as últimas contas. Regina, a do beliscãozinho, parece já ter ido embora, assim como a novata Marta e seus convidados. O salão começa a esvaziar. De pé, ao lado do balcão do bar, o falante – era feirante quando se aposentou – Israel Laércio André explica, afinal, o seu “outro vício”: “Eu danço todos os dias da semana, menos às terças e quartas. Aí você só me encontra nos júris. Sou louco por julgamentos. Conheço todos os juízes e promotores do fórum da Barra Funda e da João Mendes. Já assisti a casos famosíssimos, como o daquele moço que disparou a metralhadora no cinema, o da Suzane von…, esqueci o sobrenome… Fico o dia inteiro, gosto de ouvir acusação, defesa, réplicas, tréplicas, argumentos. Aprendi sobre as qualificações dos crimes, as atenuantes, circunstâncias. O caso da menina Isabella já virou um circo, mas aquele perito que apareceu tá forte, acho que vai desmanchar boa parte da acusação. Júri é uma coisa que me encanta. E ainda vou entrar numa faculdade de direito!”. As luzes do União Fraterna se apagam e as portas se fecham. Mas o “Espanta Preguiça” volta na próxima segunda. Sem falta.
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