Ele foi o primeiro poeta brasileiro. Nasceu no Brasil, escreveu sobre o Brasil e o povo brasileiro, com uma fala abrasileirada. Cunhou as primeiras palavras brasileiras. Amou e foi amado pelo Brasil, que odiou e por quem foi odiado. Como bom brasileiro colonial, era arruaceiro, gozador, festeiro, femeeiro, apaixonado, religioso, irreverente e, para mostrar o quanto era viril, abusava das palavras chulas, conforme o costume lusitano. Também um homem refinado, sensível, dotado de elevados sentimentos e vasta cultura.
Um poeta genial, tanto em seus poemas religiosos como nos líricos, satíricos e obscenos. Quando tocado de amor, arranca suspiros. Quando sofre, mareja nossos olhos. Quando avista alguma mulher que o arrebata, ele nos rende com o fulgor de suas palavras e a força de seu entusiasmo. Quando excitado pelo desejo sexual, deixa as palavras tesas. Quando tomado de um senso crítico, colhe a mais infame das galhofas.
Zombava de tudo que lhe desse motivo: um vigário que comprava seu cargo, homens que jogavam pedras nas janelas do palácio, um capitão preso por roubar, a chegada de um novo governador… Se umas negras bailavam ao redor da fogueira, alguém pedia: “Satiriza, poeta!”. E Gregório de Matos compunha de improviso uma poesia fabulosa, entre apaixonada e ultrajante, ironizando o instinto sexual que dominava a cidade e a ele mesmo. Mandavam-lhe motes para glosar, temas para solfejar, queixas para cantar em sua lira maldizente. Dotado de musicalidade e ritmo, ele era a voz da cidade, o tradutor do povo, a mais torpe e pura flor literária. Não andava sem sua viola de cabaça, que ele mesmo fabricara. Sentava-se às varandas das casas ou nas areias das praias, nas calçadas, dedilhando suas cordas e declamando versos encantadores, fazendo o povo suspirar ou rir, seduzindo as mulheres que iria derrubar nos catres baianos.
Apesar de terem dito dele as piores difamações – pessimista objetivo, alma maligna, caráter rancoroso, relaxado por temperamento e costumes, um notabilíssimo canalha, reles boêmio, quase louco, sujo, maltrapilho, bajulador, plagiador, impublicável, uma farsa, desaforado, virulento, tudo isso entre aspas –, ele era acima de tudo um homem corajoso ao ponto de desancar grandes e miúdas patifarias, como disse James Amado. Ousava satirizar a todos, numa época em que uma frase às vezes bastava para a morte na fogueira. Não poupava pobres nem ricos, nem brancos, mulatos, pardos, pretos, religiosos ou ateus, governantes ou governados. Atacava todos os poderes e instituições, vícios e virtudes, atacava a si mesmo. Nem Deus escapou à sua verve. Por isso, Gregório de Matos ganhou o apelido “O Boca do Inferno” e muitos inimigos. Aborrecido de uns, temido de outros, uns lhe fingiam amizade, outros lhe maquinavam ódio, juravam vingança, e muito faziam para arruinar sua vida. O poeta foi julgado, condenado, perseguido, preso, degredado, censurado, criticado… Mas jamais silenciou a sua Musa.
Alguns aspectos de sua vida lhe atestam o caráter: nasceu rico e morreu pobre, nasceu destinado a uma vida de privilégios e recusou-os, ganhou dinheiro com seu trabalho e o dissipou, nasceu dotado de um dom poético extraordinário e o desprezou, foi educado na metrópole para ser um homem poderoso na burocracia imperial, mas voltou para o Brasil, conquistou a fama de brilhante advogado e dela nunca fez uso, ganhou as graças do rei, mas rejeitou seus favores. Largou seus empregos e salários “a troco de não mentir”. Célebre na cidade da Bahia, retirou-se para engenhos no interior. Odiava a hipocrisia. E tinha grandes paixões, às quais foi inteiramente dedicado: estro, viola, liberdade, mulheres e vinho. Um encantador Villon baiano, um Rabelais brasileiro. Ou, simplesmente, um poeta que viveu para a poesia e da poesia.
Mas jamais publicou um poema. Nem mesmo os versos líricos, religiosos, de amor e louvação, que fariam a sua glória em vida. Não os anotou, não os assinou, não os guardou. Deixou-os pelas ruas. Seus poemas pertenciam ao povo, que os lia, decorava, declamava, de beco em beco, de casa em casa, de ouvido em ouvido, de cama em cama. Gregório escrevia uma sátira, lia para um amigo, que a copiava e distribuía. Pregava na porta da igreja um papel com seus versos. Alguém o retirava, lia ao povo, alguém o decorava e declamava pelas tabernas. Em uma farra à noite, ele compunha, de manhã estava esquecido o poema. Quando morreu, o governador da Bahia dispôs um livro em branco, no palácio, para que o povo anotasse os poemas de Gregório de Matos. Alguns copiados de papéis, outros trazidos na memória. Poemas de outros autores passaram a ser seus, poemas seus vestiam palavras alheias e sua obra recebeu de braços abertos a contribuição popular.
Um dos lados mais preciosos de sua obra poética é o painel de costumes que faz. Mostra o que acontecia dentro dos palácios, das igrejas, residências, dentro das alcovas. E faz o levantamento de toda uma fala, dando nascimento à poesia brasileira. Também à mulher literária brasileira, pela primeira vez descrita, mesmo ultrajada. Também à imprensa brasileira, dizem ser Gregório de Matos o nosso primeiro jornalista. Profundamente brasileiro. Mas sentia-se um estranho em sua própria terra.
Se ele foi uma figura incompreendida em seu tempo, ainda hoje se discute a sua personalidade, sua vida e a obra que lhe é atribuída. Alguns o odeiam ainda nos dias de hoje, como que ofendidos por uma obra e um comportamento provocadores, apesar de o próprio Gregório ter sido um moralista, que fez o levantamento de males coloniais, fosse nos grandes erros das altas esferas, fosse nas pequenas faltas do cotidiano popular, com uma visão de bem e mal, certo e errado. Sua crítica mudava o comportamento do povo, tanto que o padre Antonio Vieira chegou a comentar que “maior fruto faziam as sátiras de Matos, que as missões do Vieira”. Tirando ao acaso, um de seus poemas:
Se souberas falar também falaras
também satirizaras, se souberas,
e se foras poeta, poetaras.
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