Face às incertezas da vida, os mais velhos vestem rotinas como quem veste uma capa de chuva, para se proteger daquilo que a vida exige do corpo e do espírito. Mas quando ocasionalmente tiram essa capa, oportunidades se abrem.
Na infância, nossos vizinhos eram um casal maduro. Dr. Barbosa, juiz de direito recém aposentado, e dona Vera, do lar. Nossas casas eram vizinhas de muro, simétricas. Na lateral, tinha um alpendre emoldurado por ornamentos de ferro. Um de frente para o outro. Havia um muro, mas do meu quarto eu via perfeitamente a sala e a cozinha deles. De uma casa à outra, tudo se ouvia. Com estas coisas se acostuma, dizia minha mãe. Se acostuma com tudo na vida, emendava meu pai.
A rotina dos vizinhos podia ser acompanhada pelos ruídos e aromas. Tudo começava com a abertura das janelas da casa. A isso seguia o pendurar das gaiolas junto às samambaias. Os passarinhos então começavam a cantar. Logo começava o movimento na cozinha. De lá vinha o cheiro do café, o barulho das panelas e o cheiro de toicinho, que acompanhava o frigir dos ovos. Tudo a cargo da Eliete. Depois, se ouvia os dois conversando e então abrindo a porta para pegar o jornal. E o dia seguia – todo dia – com serena regularidade. Encerrava com o Dr. Barbosa tocando piano e dona Vera fazendo tricô depois do jantar.
Em minha casa, seguíamos nossa rotina: eu voltava da escola, fazia as lições, lia e ficava à toa. Meu pai, sempre atrasado, chegava para jantar. Minha mãe sempre reclamava. Depois do jantar, ele lia e ela fazia crochê. Ouvíamos o Dr. Barbosa ao piano, que nos vinha por sobre o muro. Minha mãe respeitava a preferência do vizinho, ela só tocava seu piano pela manhã.
Certo dia, dona Vera apareceu com um gato para fazer companhia ao Dr. Barbosa. Uma grande surpresa. O Dr. Barbosa negaceou e esperneou. Disse que gato é bicho traiçoeiro. Mas, por fim, o Bola entrou na rotina do casal. Não demorou muito e dona Vera nem mais esperava o Dr. Barbosa tocar piano. Ia pra cama com o Bola logo após o jantar. O Dr. Barbosa ficou só.
Ele foi, então, se aproximando de minha mãe. Logo estavam os dois em nossa sala dos fundos tocando duetos de piano. Minha mãe fazia o primo, à direita, e o Dr. Barbosa o secondo, à esquerda. Mozart, Ravel e Debussy. Eles se divertiam, sobretudo nas partes em que a direita do Dr. Barbosa invadia a região da esquerda de minha mãe. No princípio, eu achei aquilo divertido, mas logo voltei para a sala da frente e, então, ao meu quarto. Meu pai, assim solto, começou a atrasar mais. Por fim, chegava sempre tarde para um prato feito. Com essas mudanças, fui eu quem ficou só.
Mas a Eliete, vendo minha solidão, chamou-me para uns bolinhos de chuva. Pulei o muro, comi os bolinhos e fiquei por lá. Foi muito bom. Não demorou muito e virou um hábito. Todo dia, depois de dona Vera ir para cama com o gato e o Dr. Barbosa vir para casa, eu voltava à Eliete. Fui pegando gosto na coisa.
Assim ficamos nós todos nesse equilíbrio feliz, por quase dois anos.
Uma noite, escutei uma gritaria de gatos e vi o Bola se esgueirando para o telhado. Antevi problemas. Dito e feito. Não deu outra. O Bola começou a sair à noite. E também pegou gosto.
Então, sem o gato, dona Vera chamou o Dr. Barbosa de volta. Minha mãe parou com o piano à noite. Meu pai foi intimado a chegar para o jantar. E eu, desgraçadamente, não pude mais ir à Eliete.
Num primeiro momento, tive ganas de estrangular o Bola. Só depois entendi que ele era um mensageiro. Um enviado. Um anjo.
Comecei eu a sair à noite. Não com ele, claro.
*Marcos Rodrigues é engenheiro civil, professor titular da Escola Politécnica da USP e dedica-se também à literatura.
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