Anônima para a maioria dos brasileiros, Manuela Carneiro da Cunha é uma autoridade mundial quando se fala em antropologia e etnologia – muitos não hesitam em atribuir-lhe o predicado de gênio. Portuguesa, nasceu em Cascais, uma pequena vila na orla marítima de Lisboa, veio para o Brasil aos 11 anos. Ainda muito jovem, trocou os sonhos de ser médica, física ou dramaturga, pela matemática pura, que foi cursar em Paris. Lá, descobriu sua verdadeira paixão nos seminários do antropólogo Claude Lévi-Strauss. De volta ao Brasil, começou uma carreira que revelaria uma ousadia rara. Casada com o influente antropólogo e assiriologista José Marianno Carneiro da Cunha, falecido em 1980, o casal conviveu e chegou a morar com o fotógrafo e etnólogo Pierre Verger na Nigéria, em 1975. Manuela foi co-fundadora da Fundação Pró-Índio e uma das principais articuladoras do capítulo relativo aos povos indígenas da Constituição atual. Em julho deste ano, ela se aposentou de uma louvável carreira acadêmica, em que os últimos 15 anos foram passados na Universidade de Chicago.
Em trânsito internacional constante, chegou ao Brasil no dia do lançamento de Cultura com Aspas, coletânea de artigos e ensaios de fundamental importância para a antropologia e a etnologia brasileiras. O livro, editado com o cuidado habitual da Cosac Naify, deverá repetir o sucesso de outros títulos seus, pois Manuela é referência obrigatória – a tal ponto que o livro A História do Índio no Brasil, organizado por ela e acadêmicos do Núcleo de História Indígena e do Indigenismo (NHII) da Universidade de São Paulo, é chamado “Manuelão”.
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Chegamos à casa onde Manuela vive com o marido e parceiro acadêmico, Mauro Almeida, também um renomado antropólogo, nascido no Acre, professor da Unicamp e doutor em Antropologia Social pela Universidade de Cambridge. Começamos a conversa, falando sobre Paris.
Brasileiros – Como foi a experiência dos três anos de seminários com Claude Lévi-Strauss, na França, e qual a importância para o trabalho que você iria realizar no Brasil?
Manuela Carneiro da Cunha – O seminário era uma coisa muito curiosa. Todo mundo tinha medo de se expressar na frente daquele grande homem. A gente ouvia muito e falava pouco, até que um dia, com os “acontecimentos” do maio de 1968, houve um seminário em que, de repente, eram apenas onze pessoas – o normal seria trinta – e o Lévi-Strauss. De repente, todo mundo falou e ele adorou. Tivemos, enfim, a impressão de que estávamos em um seminário. O Lévi-Strauss podia ser terrivelmente ferino e demolir o infeliz que estava fazendo uma apresentação, mas tinha o dom de extrair uma síntese incrível do seminário. Havia poucos embates, pois ele era uma figura que dominava. Ele sempre me motivou muito, gostava, evidentemente, do fato de eu vir da matemática, pois tinha interesses em certa matemática, e me encorajou, quando voltei ao Brasil, em 1970, para que eu fosse fazer trabalho de campo. Era um momento difícil, pois meu primeiro filho estava com oito meses, o que complicava ir a campo. Acabei indo pouco, mas foi uma experiência fundamental, o que é interessante: um antropólogo que se acusa de ter feito pouco campo! Lévi-Strauss era mesmo impressionante. Continuou lendo sempre toda a produção etnológica brasileira que, aliás, na época era pouca, e estava sempre a par de tudo o que estava acontecendo.
Brasileiros – Como foi voltar ao Brasil e ter de lidar com os militares? Acha que houve maior liberdade depois da abertura política?
M.C.C. – Quando cheguei, em maio de 1970, estávamos em plena ditadura, governo Médici, AI-5. Eu tinha passado oito anos fora do país e o que a gente ouvia na França eram apenas ecos. Sabíamos o que estava se passando, mas não tínhamos a vivência. Foi muito impactante chegar e entender como era, realmente, o cotidiano aqui. Tempos depois, houve o assassinato do Vlado (o jornalista Vladmir Herzog, morto nos porões do DOI-CODI), que tinha sido amigo e colega de faculdade de Marianno. Foi um momento terrível. Além do clima de terror, havia um agravante: a antropologia era muito malvista naquela época. Era considerada totalmente irrelevante frente a situação política do país. Devíamos estudar o trabalhador urbano, pois o destino dos índios era fazer parte dessas classes subalternas. Não tinha nenhuma relevância entender ou estudar os grupos indígenas, particularmente os brasileiros. Na Universidade, o que interessava era a sociologia e a ciência política. Os alunos mais politizados evitavam a antropologia.
Houve uma mudança completa nessa atitude quando Gramsci entrou na moda (Antonio Gramsci, pensador italiano, fundador do Partido Comunista da Itália). A ideia da cultura e da cultura popular em particular se tornou extremamente relevante. Houve uma mudança sensível de atitude, mas, os jovens não estavam particularmente interessados e, perante a situação geral do país, a gente se perguntava se realmente era aquilo que devíamos fazer. A grande surpresa foi com a questão indígena. Em 1978, houve uma campanha pela demarcação das áreas indígenas e de repúdio à emancipação autoritária dos índios, que o então ministro do Interior, Maurício Rangel Reis, queria fazer. O Brasil ficou comovido e se manifestou de um modo que ninguém esperava a favor da demarcação, contra a tentativa de emancipação forçada. A campanha foi um desaguadouro para a enorme insatisfação da classe média urbana. Isso é clássico: quem gosta de índio, certamente, não são os poderosos locais, mas pessoas sensibilizadas por essas questões e que, em geral, vivem em cidades maiores. São Paulo teve uma mobilização extraordinária. A relevância política da questão indígena ficou patente e foi na esteira desse reconhecimento que se formaram as bases da Comissão Pró-Índio. Várias organizações não governamentais começaram a estudar a questão, documentar, contratar advogados. Eram organizações voluntárias, em que todos trabalhavam em outras coisas. Isso nos permitiu amadurecer. Quando chegamos à Constituição de 1988, uma série de experiências, sobretudo nas áreas jurídica e crítica, nos deu muita clareza – um grupo de pessoas constituído por antropólogos, advogados, jornalistas e outros que estavam militando nessa causa – para propor o capítulo dos índios. Esses dez anos, de 1978 a 1988, permitiram um amadurecimento dessa questão.
Brasileiros – Em 1975, você foi para a Nigéria, conviveu com o amigo Pierre Verger e estudou o êxodo de brasileiros negros libertos da escravidão, que retornaram às suas origens na África Ocidental. O que observou no cotidiano dos descendentes desses brasileiros?
M.C.C. – Fui para a Nigéria, por acaso, de certa forma. Marianno foi convidado para um programa de leitorado na cidade de Ifé e eu fui junto. Fiquei muito contente, pois há tempos queria conhecer a África. Nossos filhos eram pequenos e eu não tinha muita mobilidade, fiquei em Ifé a maior parte do tempo. Aproveitamos que Pierre Verger, nosso amigo, estava lá e fizemos uma pesquisa para uma editora brasileira sobre a influência dos chamados “brasileiros”, ex-escravos que voltaram para a Nigéria, sua arquitetura e influências. Foi muito interessante. Trabalhei muito com material de jornal, falei com muita gente e fiz algumas entrevistas com descendentes de brasileiros. Os brasileiros na Nigéria são considerados uma espécie de aristocracia. Há uma visão etnicista do ser brasileiro, a tal ponto que uma estudante de medicina da Universidade de Ifé, branca, mas descendente de uma dessas famílias de origem brasileira, ficou surpresa que nós fôssemos brancos. “Mas como? Os brasileiros não são todos negros? Os brasileiros da Nigéria são negros.” Há um grande orgulho dessa linhagem brasileira. Falo disso em meu livro, mas não fui a primeira a tratar do assunto – Pierre Verger fez um trabalho sobre isso; Jerry L. Turner, um historiador norte-americano e o Antonio Olinto (escritor, filósofo e teólogo), que recentemente faleceu, também. Verger e Olinto foram os pioneiros. Olinto escreveu um romance sobre o tema que considero maravilhoso, A Casa da Água. O que me chamou muito a atenção foi a questão da etnicidade, essa ideia de que famílias que tiveram uma trajetória com passagem pelo Brasil se identificassem como brasileiros, como um grupo separado – as pessoas se reinventam, mas não fazem isso no vácuo; elas se reinventam dentro de um sistema social em que organizam suas diferenças em relação a outros grupos sociais.
Quando voltei para o Brasil, a questão da etnicidade estava na ordem do dia. Em 1978, a grande discussão era se os índios eram índios, em que medida poderiam ser assimilados pela população em geral. Era uma problemática tanto da direita, quanto da esquerda. A direita queria emancipar as terras e a esquerda queria proletarizar os índios. Havia uma convergência, de certa forma, dessa visão. E meu estudo de etnicidade, que tinha começado na Nigéria, acabou sendo extremamente atual na discussão que se fazia na época. Anos mais tarde, um aluno da Unicamp, que já era um senhor e já faleceu, me disse: “Entendo por que você estuda etnicidade, Manuela. É porque você tem um sério problema com isso. Veja bem, você é nascida em Portugal, filha de país húngaros judeus, criada no Brasil e católica batizada. Você tem um problema evidente de identidade!”. Então, essa questão da identidade étnica, segundo esse aluno, seria até um problema pessoal. Não acredito, mas quem sabe ele até tinha razão.
Brasileiros – Que balanço você faz desses 21 anos do capítulo dos direitos dos índios na Constituição? Ainda atende às demandas atuais?
M.C.C. – A legislação sobre índios no Brasil é paradoxal, pois sempre foi boa. Os grandes princípios sempre foram afirmados. A Carta Régia de 1680 diz que os índios são os naturais senhores das terras que habitam e reconhece seu domínio sobre as terras. Isso em 1680! Há uma tradição de reconhecimento, mas isso é na letra, resta ver na prática. O grande avanço da Constituição de 1988 foi ir ao varejo. Não se contentou, como as constituições brasileiras desde a de 1934, em proclamar os direitos territoriais dos índios, mas entrou nos detalhes para fazer funcionar esses princípios. Esse foi um grande avanço e só foi conseguido porque tivemos aqueles dez anos de avanço, sobretudo na área legislativa, onde residem os gargalos e problemas maiores. Para dar um exemplo: um artigo, o 232, passou sem que ninguém se opusesse e teve o maior impacto, dizia: “Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo”. Parece completamente inócuo, mas foi extremamente importante por duas coisas: ao nomear os índios e suas organizações, a Constituição lhes dava personalidade jurídica. Com isso, poderiam ingressar em juízo, à revelia da Fundação Nacional do Índio (Funai) que, à época, era um órgão repressor. Durante muito tempo, a Funai esteve dentro do Ministério do Interior, que tinha interesses completamente antagônicos aos dos indígenas – era o ministério das estradas e das hidrelétricas. Era um absurdo as questões indígenas estarem dentro desse ministério. O simples fato de os índios poderem entrar em juízo de forma autônoma era importante. Tínhamos percebido essa questão da personalidade jurídica nos anos anteriores, notando que havia juízes que aceitavam isso e outros que não. Os que não aceitavam diziam que só a Funai poderia entrar em juízo pelos índios. Ora, se os índios estavam em litígio com a Funai, então simplesmente não podiam recorrer à Justiça. Esse é um exemplo do que foi feito no varejo. A outra coisa muito importante – ideia do grande jurista Dalmo Dallari – foi incumbir a Procuradoria Geral da República da defesa dos interesses indígenas. Esse foi o momento, na Constituição de 1988, em que houve a separação entre a Advocacia Geral da União e o Ministério Público Federal, que antes eram juntos, coisa que também não funcionava muito bem. O Ministério Público Federal ficou com a incumbência explícita de defender as causas indígenas. Isso mudou completamente a situação. Foi a grande diferença.
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Brasileiros – No começo dos anos 1990, você se dedica à pesquisa e à defesa dos conhecimentos e direitos intelectuais dos povos tradicionais. Hoje, você dirige estudos sobre o impacto da adoção dessas políticas. Houve uma evolução?
M.C.C. – Olha, eu me pergunto se houve progressos, pois há um grande imbróglio nessa questão de direitos intelectuais associados à questão dos conhecimentos de povos tradicionais. Acho que houve um grande avanço com a Convenção da Diversidade Biológica da Organização das Nações Unidas (ONU), que foi um divisor de águas. Pela primeira vez falou-se em conhecimentos tradicionais, direitos intelectuais associados, em repartição de benefícios na área de diversidade genética. Houve progressos, na medida em que se tomou conhecimento do problema, mas há uma série de dificuldades. É muito difícil nossa sociedade pensar em termos que não sejam os de propriedade. Direitos intelectuais não são, necessariamente, direitos de propriedade intelectual. Mas quando você fala desses direitos, automaticamente pensa em direitos de propriedade intelectual, como se a propriedade fosse a única maneira de regulamentar esses direitos. O movimento pelos direitos intelectuais se insere em um movimento maior, que inclui coisas como o software livre, que é a discussão sobre os direitos intelectuais em geral. Outro problema é que o conhecimento tradicional tem sido visto como parte e até ponta de lança de um movimento mais geral pela ampliação do domínio público, em contraposição à expansão da propriedade intelectual. Agora, não sei se os índios vão querer ficar reféns dessa discussão. É um problema difícil de analisar. Politicamente, também, há outro problema, o Brasil é parte de uma coligação de países muito importantes, megadiversos, e uma das bandeiras maiores dessa coligação é pedir que toda a cadeia de conhecimentos que leva a uma invenção seja, obrigatoriamente, explicitada no momento de pedir uma patente, para que haja repartição de benefícios. Em suma, o Brasil e esses outros países megadiversos estão reivindicando que se diga de onde veio o material genético que vai desembocar, lá adiante, em uma patente. Concordo que seja exatamente isso o que se tem a fazer. Mas e internamente? É aí que a porca torce o rabo, pois há uma grande oposição de parte dos cientistas brasileiros em reconhecer o aporte do conhecimento tradicional. Então, embora a legislação diga que o Instituto Nacional da Propriedade Intelec-tual (INPI) deve exigir a explicitação dessa cadeia e reconhecer a presença do conhecimento tradicional, de fato, há muita resistência a isso. A repartição de benefícios que o Brasil pede lá fora, não é feita aqui. Os biólogos, por exemplo, têm muita dificuldade em admitir que o conhecimento tradicional sobre certas plantas ou animais seja uma pista importante para eles. Acham que ciência é outra coisa.
Brasileiros – No meio acadêmico, você é uma unanimidade. É um desafio sair deste âmbito acadêmico e fazer com que as discussões que a antropologia levanta atinjam uma esfera mais popular, como ocorreu nos anos 1980?
M.C.C. – O livro A História dos Índios no Brasil foi organizado no quinto centenário da viagem de Colombo, em 1992. Fizemos uma espécie de estado da arte do que, até então, se conhecia sobre a história dos índios no país. Desde então, esse conhecimento avançou muito e, para minha grande surpresa, o livro continua a ser vendido, muito mais agora do que no começo (está na 12ª reimpressão). Pelo que entendi, está virando uma espécie de apoio para professores de história do curso secundário – isso responde bem a ideia de como é que se chega ao grande público. Até então, nos livros de História do Brasil, o lugar que havia para os índios era absurdo, ridículo. Primeiro, os índios se reduziam ao tupi-guarani e estavam todos extintos. Não havia mais índios no Brasil, mas tinham nos legado a rede e a farinha de mandioca. Essa era a visão passada para crianças e adolescentes. Para minha surpresa e para a surpresa de todos nós, esse livro penetrou, de certa forma, na sociedade e mostrou que a coisa é muito mais complexa. Tive uma polêmica no jornal Folha de S. Paulo com o Hélio Jaguaribe (sociólogo, cientista político e escritor), porque também havia uma visão que se passava para a sociedade de que os índios, inevitavelmente, por uma espécie de razão transcendental da história, estavam destinados a desaparecer. Essa visão do Hélio Jaguaribe e de pessoas muito respeitadas da esquerda, esquecia o processo histórico concreto. O que é que se fez com os índios no Brasil, o que aconteceu com eles, qual tem sido sua trajetória até agora? Tentamos chamar a atenção justamente para o fato de que não existem leis da história – um tema que Lévi-Strauss sempre enfatizou -, essa espécie de evolucionismo absurdo e generalizado, que dizia que os índios tinham de desaparecer, pois essa era a marcha da história. Na realidade, os grandes massacres resultaram de pequenas ações extremamente oportunistas. Recuperar a história dos índios foi importante também para mostrar que eles ainda são parte do Brasil de hoje e do futuro.
Brasileiros – Para você, que esteve por 15 anos em Chicago, qual percepção das frequentes acusações e ameaças à soberania do Brasil sobre a Amazônia?
M.C.C. – Há dois aspectos nisso. Primeiro, existe uma história de cobiça pela Amazônia? Sim, existe. Na época da borracha, particularmente. Antes disso, holandeses e portugueses disputavam mais a rede de comércio do que o território. Então, existem interesses claros na Amazônia. Muitos desses interesses são usados como espantalho por grupos brasileiros que fazem disso uma espécie de bicho-papão. O Brasil deve e tem todo interesse em defender suas fronteiras e os índios não ameaçam a soberania nacional. A questão da Amazônia é uma questão de aproveitamento sustentável de seu potencial, que não está na sua destruição, na venda de sua madeira ou na sua transformação em pasto ou plantação de soja. É preciso que o Brasil saiba ocupar a Amazônia de modo racional e sustentável. Talvez, a maior riqueza que a Amazônia possa hoje legar ao mercado internacional seja os créditos de carbono (certificados emitidos, quando ocorre a redução de emissão de gases do efeito estufa e que gera créditos no mercado internacional). Temos de encontrar outras maneiras de ter uma vida digna na Amazônia que não seja a destruição da floresta. Esse é o desafio para a ciência e para a tecnologia brasileiras. É uma questão que está na ordem do dia e não faz sentido usar esse interesse internacional como espantalho, mas, sim, como um chamado para uma ocupação racional e sustentável dos recursos da Amazônia.
Brasileiros – Em seu livro, você diz que a Declaração de Direito dos Povos, da ONU, não tem poder nos foros internacionais. Qual o papel das Nações Unidas, então?
M.C.C. – As declarações e convenções da ONU só têm poder se assinadas, subscritas ou ratificadas pelos países. Se você compara a convenção da ONU com os acordos da Organização Mundial do Comércio (OMC), dá para ver que esta tem mais poder de barganha do que a ONU. É outra espinha dorsal, outras prioridades. Mas os princípios de que a Convenção de Diversidade Biológica vem advogando contaminam a própria OMC. Atualmente, há uma grande discussão para se saber o que prevalece: se é a Convenção de Diversidade Biológica ou se as regras da OMC. Isso mostra que há um poder moral, uma contaminação e que há uma grande esperança. O conhecimento tradicional, por exemplo, surgiu na cena política em 1992 e, desde então, todo mundo fala dele, inclusive organismos, como a OMC e o Banco Mundial. Há uma mudança no diálogo. Acho que a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT – assinada pelo Brasil em julho de 2002 e um dos principais instrumentos de defesa dos índios no âmbito jurídico internacional) é um bom exemplo, e mostra como a mentalidade evoluiu entre os anos imediatos do pós-guerra, quando estavam preocupados, sobretudo, com o combate ao racismo. Há, agora, um novo reconhecimento do chamado direito à diferença. A Convenção 169 da OIT é um aggiornamento da antiga convenção da mesma OIT, feita depois da guerra e que só falava de assimilação, não falava do direito à diferença.
Brasileiros – Você e o Mauro foram idealizadores da Universidade da Floresta, que propõe uma integração entre conhecimentos de povos tradicionais e a ciência, entre outras ações de forte sinergia das duas frentes. O que aconteceu com esse projeto?
M.C.C. – Não estou acompanhando as atividades, mas acho que não chega a ser uma Universidade da Floresta. Quem a idealizou em grande parte foi o Mauro, mas a ideia era muito diferente do que foi implantado, que é simplesmente um campus avançado dentro Universidade Federal do Acre, em Cruzeiro do Sul, com características semelhantes ao desenho das universidades federais do Brasil. A proposta original se perdeu.
Brasileiros – Por fim, gostaria que comentasse a pré-candidatura à presidência da ex-ministra do meio ambiente, Marina Silva. Qual o significado dessa candidatura?
M.C.C. – Eu acho uma proposta extremamente importante e inovadora na política brasileira. Que possa ter surgido essa candidatura da Marina Silva, por si só, traz para a ordem do dia a questão ambiental e a questão dos povos tradicionais. Isso é extremamente positivo. Por outro lado, acho que vão tentar reduzir sua candidatura a simplesmente isso, quando eu acho que há outras dimensões que ela pode trazer. Mas, enfim, acho que o simples fato dessa candidatura existir já é extremamente positivo.
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