Se tem uma família brasileira orgulhosa e feliz é a de Cleide Silva da Paz, 33 anos, mãe solteira de Jhons Phyllyppe, de 15, e Allyne Canylla, de 13, que encontramos em uma modesta casa alugada na Cidade da Esperança, em Natal. Selecionado entre mais de mil alunos, Jhons é um dos 18 jovens integrantes do programa Cientistas do Futuro, que recebem uma bolsa de Iniciação Técnica Industrial do CNPq e já fazem estágio no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Interfaces Cérebro-Máquina. Allyne está matriculada no Centro de Educação Científica Escola Alfredo J. Monteverde.
“Esta escola mudou nossa vida completamente. Lá, ensinam o que falta na escola pública, oferecem equipamentos, fornecem todo o material, tem ônibus. Não gasto nada com eles”, comemora Cleide. Em 2008, ela se animou tanto com os filhos que resolveu também voltar aos estudos, abandonados no ensino fundamental. Agora, na sequência, completou o ensino médio, prestou o exame do Enem e, no vestibular de 2010, conseguiu uma vaga no curso de Gestão Ambiental da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
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Por trás de histórias como a de Cleide e seus filhos de nomes estranhos estão a obstinação de um homem, Miguel Nicolelis, e a dedicação de duas mulheres de fibra, Neiva Cristina Paraschiva, diretora executiva do projeto, e Dora Maria de Almeida Prado Montenegro, diretora pedagógica, os seus anjos da guarda. Por ordem de entrada em cena, Neiva, 52 anos, ex-jogadora de basquete do São Caetano, formou-se em Educação Física e, mais tarde, em Administração de Empresas. Conheceu o cientista em 1981, quando foi treinar a equipe feminina de basquete dos alunos da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Nicolelis era diretor de esportes da Atlética, a associação esportiva dos estudantes, e tinha planos de abrir o clube da escola para crianças da região de Pinheiros.
Nascia ali a parceria que levou Neiva a assumir muitos anos mais tarde a direção da Associação Alberto Santos Dumont para Apoio à Pesquisa, uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), que cuida da gestão do Instituto Internacional de Neurociências de Natal (IINN-ELS). Enquanto Nicolelis passava dois terços do seu tempo como pesquisador e professor da Universidade Duke, na Carolina do Norte, Neiva passou a cuidar das obras e atividades nas áreas de Pesquisa, Saúde e Educação, em Natal e Macaíba, onde a Universidade Federal do Rio Grande do Norte doou um terreno de 100 mil hectares para a instalação da Cidade do Cérebro.
Como as obras em Macaíba estavam demorando, o cientista resolveu alugar imóveis em Natal e instalar logo o Centro de Estudo e Pesquisa Prof. Cesar Timo-Iaria e a Escola Alfredo J. Monteverde. “Aí que entra a Dora”, lembra Neiva, apontando para a diretora dos centros de Educação Científica, sentada à sua frente. As duas se conheceram no Projeto Ação, da rede de supermercados Pão de Açúcar, em São Paulo, onde a pedagoga Dora Maria de Almeida Prado Montenegro cuidava da parte educacional e, Neiva, foi chamada para dar uma consultoria na área esportiva.
Em 2007, quando a amiga lhe falou que um “amigo maluco” que mora nos Estados Unidos queria lhe mostrar um projeto de educação para ela cuidar, Dora já tinha 68 anos, e estava “aposentada há muito tempo”, embora continuasse trabalhando no Projeto Ação. Com o entusiasmo de uma menina que está começando a carreira, ela recorda da primeira conversa que teve com Nicolelis, na cantina Speranza, no Bexiga, em São Paulo.
“Era privilégio muito grande, nesta altura da vida, receber de presente um projeto desses. Cheguei em casa e contei para o Evandro (o marido marceneiro, com quem está casada há mais de 50 anos), perguntando o que achava da ideia. Ele topou na hora, falou que se pudesse levar as suas ferramentas e as varas de pescar, e se eu fosse, tudo bem…”
Evandro Montenegro tinha 74 anos na época e, hoje, quatro anos depois, embora seja formado em Economia, continua prestando seus serviços de marcenaria nos projetos do IINN-ELS no Rio Grande do Norte, onde se tornou uma espécie de faz tudo na manutenção das instalações. Os forasteiros Neiva e o casal Montenegro, que vieram de São Paulo, são exceções: a orientação, desde o começo, era recrutar e formar mão de obra na região.
Até hoje é assim: de segunda a quinta, os professores dão aulas e, toda sexta-feira, reúnem-se com Dora para avaliar o trabalho da semana, planejar a próxima e socializar suas experiências também com os profissionais das escolas públicas. “Aqui, a teoria vem apenas respaldar a prática. Os professores levantam questões e depois fazem uma reflexão sobre a prática dos alunos”, conta Dora, seguidora fiel do método Paulo Freire, que ensinava: “Quer queira ou não o professor, a prática pedagógica leva à dominação ou à libertação”.
Tínhamos acabado de aterrissar em Natal e estávamos almoçando com Neiva e Dora, quando chegou ao restaurante o médico obstetra Reginaldo Antonio de Oliveira Freitas Júnior, de 37 anos, desde 2008 o responsável pela área de Saúde do projeto. Professor da Universidade Federal, quando soube que estavam selecionando profissionais para o Centro de Saúde Anita Garibaldi, em Macaíba, que faz atendimento materno-infantil, Reginaldo candidatou-se a uma vaga de médico fetal. Entregou o currículo, passou por entrevistas e ficou esperando o resultado.
“Eu não tinha ideia do projeto como um todo. Por isso, estranhei quando me falaram que o doutor Nicolelis estava em Natal e queria marcar uma conversa comigo. Ele me falou das dificuldades para obter financiamento e fazer os convênios com o Ministério da Saúde. No final da conversa, me perguntou: ‘Você quer assumir a direção e colocar o centro de saúde para funcionar?’. Topei na hora. Estava empolgado com o projeto.”
O prédio ficou pronto logo, mas faltavam os equipamentos, que não demorariam a ser comprados. Hoje, os 22 funcionários do Centro de Saúde, entre médicos, enfermeiros e técnicos, a maioria recrutados em Macaíba, cidade de 60 mil habitantes, faz em média 1,2 mil atendimentos por mês. Com o tempo, o diretor começou a notar mudanças culturais nas pacientes, que passaram a ter noção dos seus direitos como cidadãs e a brigar por eles: “Assim como acontece nas outras áreas do projeto, o Centro de Saúde procura ser um instrumento de transformação social. É um direito de todos e não um favor oferecer bom atendimento. Ensinamos isso aos nossos servidores. Precisamos cuidar de quem cuida dos outros. As pacientes passaram a exigir do SUS exames que não faziam antes, como o ultrassom morfológico que, com 20 semanas de gravidez, pode apontar riscos de má formação fetal, algo que nas clínicas privadas já é feito há mais de dez anos. Até hoje o SUS não catalogou esse exame na tabela. Como pode existir toda essa discussão sobre aborto, se não tem o exame?”.
Os recursos para a manutenção do Centro de Saúde vêm da Prefeitura de Macaíba, que repassa as verbas do SUS, dos convênios com o Ministério da Saúde e do Hospital Sírio-Libanês, de São Paulo, responsável pela folha de pagamentos dos funcionários. A fama da excelência do atendimento logo se espalhou e vieram pacientes de outras cidades. Foi o caso de Francisca, de São Miguel do Gostoso, no litoral norte potiguar, que estava esperando gêmeos e sofrendo muito no quinto mês de gravidez.
No ultrassom, Reginaldo viu que os bebês estavam unidos pelo tórax, com um só coração. “Mesmo sabendo que a gestação era inviável e os bebês não iriam sobreviver nem no Sírio, demos a Francisca todo suporte emocional e psicológico até o parto. Ela não foi ver os filhos até que eu chegasse. Não tinha coragem. O momento mais difícil foi ver os filhos mortos… Até hoje cuidamos dela para que possa engravidar de novo sem problemas.”
Em Macaíba, a 20 km de Natal pela RN 106, em uma antiga fazenda onde foi instalada a Escola Agrícola da UFRN, encontramos o bioquímico chileno Rômulo Fuentes Flores, 36 anos, diretor científico dos centros-piloto de pesquisa já implantados nas duas cidades, enquanto prosseguem as obras da Cidade do Cérebro, logo adiante.
Sob a orientação de Nicolelis, que o convidou há sete meses para trabalhar com ele no Rio Grande do Norte, Flores fez pós-doutorado na Universidade Duke, na Carolina do Norte, com a pesquisa Método de Estimulação Elétrica da Medula Espinhal para ser utilizado no tratamento da doença de Parkinson.
A pesquisa começou com roedores e hoje está sendo feita com primatas, cada vez mais perto de ser aplicada ao ser humano. “O objetivo é compreender quais e como as áreas do cérebro atuam para lograr o controle motor. A doença de Parkinson se dá porque partes do circuito do cérebro não estão funcionando e precisam de estímulo elétrico”, explica o pesquisador, que acompanha atualmente as experiências feitas com 40 saguis.
No começo de março, o diretor científico também passou a supervisionar as pesquisas feitas por quatro estagiários em Iniciação Científica, que recebem bolsas de estudos no valor de um salário mínimo, concedido pelo Centro de Integração Empresa-Escola de Natal. O primeiro trabalho a que eles se dedicam é medir os teores de óleo nas sementes de pinhão manso para uso industrial.
De volta a Natal, encontramos Dora e Evandro nos esperando na Escola Alfredo J. Monteverde para conhecermos de perto uma incrível experiência pedagógica envolvendo 600 jovens de 11 a 17 anos (outros 400 frequentam a escola de Macaíba) e 20 professores, todos com formação de nível superior. “Aqui, os alunos têm direito à educação e os professores, à formação”, vai logo dizendo Dora, que nos mostra a escola como se fosse a sua casa e trata a todos como se fossem da família.
Eles se espalham pelas oficinas de Ciência e Tecnologia, História, Robótica, Invenções, Ciência e Arte, e nos laboratórios de Química, Física, Informática e Biologia. Em cada sala, trabalham dois professores. Na oficina de Ciência e Tecnologia, o professor Walter Romero, 31 anos, com mestrado em Física, mostra a construção de uma cidade em maquete que está sendo montada pelos alunos. Ali, eles aprendem na prática, por exemplo, como se produz a energia elétrica. Romero notou que os alunos tinham muita dificuldade em matemática e medidas.
Como material didático, o professor costuma usar jogos de dominó e engenhocas feitas na própria escola com a ajuda do marceneiro Evandro, que fez o mesmo trabalho durante muitos anos no colégio paulistano Pueri Domus. Ao deixar para trás os quatro filhos e sete netos para começar vida nova em Natal, ele disse para Dora, que sorri, e passa a mão em seus cabelos: “Agora é hora da onça beber água. Filhos criados, estamos sozinhos os dois, frente a frente…”.
Parece que deu certo. O pique do casal, subindo e descendo escadas, parando para ouvir alunos e professores, dá à escola um clima de alto astral que não é muito comum por aí. Até a biblioteca é agitada, alegre, tem vida própria. No comando, está a jovem Maria Luzia Alexandre de Oliveira, 24 anos, formada em Biblioteconomia, que dá a receita: “Eu trabalho ao mesmo tempo com os professores e os alunos. Nos intervalos das aulas, eles vêm aqui. Temos sempre atividades lúdicas, sites interativos nos monitores…”.
Os alunos na oficina de Robótica e no Laboratório de Informática concentram-se tanto no que os professores estão lhes mostrando, que nem reparam na chegada de estranhos acompanhando a diretora. Não há exame de seleção para entrar nesta escola de Educação Científica, que ganhou o nome do primeiro marido de Lily Safra (Alfredo J. Monteverde), uma das financiadoras privadas do projeto. Aqui não se fazem vestibulares nem se admitem privilégios: cada vez que surgem vagas, é feito um sorteio com os nomes dos alunos indicados pelas professoras das escolas públicas da região.
Alan Hudson foi um desses sorteados. Nas férias escolares, ele foi para o sítio do avô, que estava começando a construir uma casa nova, fazendo a marcação da obra. Evandro conta: “Fico até emocionado de lembrar. O avô veio aqui para nos dar os parabéns e agradecer. Quando o neto começou a dar palpite, ele falou para o menino: ‘Eu levei não sei quantos anos para aprender a fazer uma casa e você aprendeu onde? Na escola?’. Tudo o que eu sabia fazer e não sabia o porquê, meu neto me ensinou”.
“Como é bom vocês virem aqui para ver. Se eu falar, vão achar que é mentira. É possível? Sim, nós acreditamos que o homem é possível…”, acrescenta Dora, fazendo a segunda voz, como se os Montenegro formassem uma afinada dupla sertaneja.
Graças ao trabalho de gente como eles, juntados a dedo por Miguel Nicolelis para colocar o projeto em pé, os filhos da agora universitária Cleide Silva da Paz podem ter mais do que esperanças, a certeza de uma vida melhor. Jhons Phyllyppe quer ser jornalista, ou melhor, quer ser repórter. O sonho de Allyne Canylla é ser bióloga, melhor dizendo, professora de biologia.
“Agora estou querendo fazer faculdade. Antes, nem pensava nisso”, admite Jhons, que ganhou este nome por capricho da mãe. “Quinze anos atrás, eu não tinha acesso a revistas, livros… Fui juntando letras aqui e acolá, e deu nesse nome diferente. Jhons veio ao mundo de uma forma especial para mim. Passei a gestação sozinha com ele…”
Quando lhe perguntam a profissão, como ganha a vida, afinal, Cleide abaixa a cabeça e ri olhando para o chão: “Ralando… Trabalhando muito… Trabalho todos os dias da minha vida desde que me entendo por gente. Trabalho, por exemplo, no jogo do bicho, para dar sustento aos meus filhos. É uma contravenção, eu sei, mas me sinto prestadora de serviços de domingo a domingo”. Os pais dela eram separados e se aposentaram por invalidez. A mãe, Maria Sônia, com dificuldades de locomoção, mora com Cleide. Jhons é tratado de um linfoma desde que tinha três anos de idade. Há cinco, foi dado como curado. Mas, em 2009, os nódulos voltaram. “A doença não fez ele baixar a cabeça. É nele que eu encontro mais força para superar as dificuldades.”
Cleide recebe um salário mínimo da Previdência Social (LOAS) para comprar os medicamentos de Jhons que não são fornecidos pela Farmácia Popular. Nunca teve plano de saúde e há três anos deixou de receber o Bolsa Família por “problemas com documentos”. A vida aqui nunca foi fácil, mas ninguém se queixa. Ao contrário, quem visita essa família sai da casa mais leve, de alma lavada, acreditando no que a pedagoga Dora disse ao se despedir: “Sim, é possível”. Ao abrir a cortina que separa as salas de visita e de jantar, Cleide nos oferece sucos, frutas e biscoitos da melhor qualidade, colocados à mesa para as visitas. Depois de ouvir essas histórias, também não podemos reclamar da vida.
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