O Brasil dormia e sonhava com Norma Bengell

Reprodução “Os cafajestes” (1964).

Multidões de brasileiros, principalmente homens, lotaram as salas de cinema de todo Brasil em 1963 para testemunhar um marco histórico: ver na tela a atriz Norma Bengell, aos 26 anos, completamente nua, numa cena gravada numa praia – contracena com Jece Valadão e Reginaldo Faria. Era a primeira vez que isso acontecia num filme brasileiro. No caso, Os Cafajestes, de Ruy Guerra, cujo ano de produção era 1962. Foi um escândalo sem precedentes, no momento que organizações femininas e católicas iam para as ruas condenar a pílula anticoncepcional, que começava a ser vendida no país, e a ameaça demoníaca do comunismo representada injustificadamente pelo presidente João Goulart, que seria deposto em 2 de abril de 1964. Norma virou o diabo para os moralistas. Em 1965, quando a imprensa anunciou que ela iria filmar em Minas Gerais “O Padre e A Moça”, de Joaquim Pedro de Andrade, as ligas das senhoras católicas cercaram o aeroporto em Belo Horizonte para impedir que ela entrasse na cidade. 

Norma parecia se divertir com isso. E não baixava a guarda. Ignorava, seguia em frente, mostrava o corpo para quem quisesse ver. Carioca de nascimento, ela estreou no meio artístico ao se apresentar como vedete do teatro de revista, aos 16 anos. Tinha um corpo monumental já nessa idade, formado, perfeito, de mulherão. Mas possuía também cérebro e inteligência. E deu um passo importante em sua carreira ao ingressar no mundo da música. Gravou versões de “A Lua de Mel na Lua” e “E Se Tens Coração”. Em seguida, veio o primeiro disco (LP), “OOOOOH! Norma”, de 1959, no mesmo ano de sua estreia no cinema, na comédia “O Homem de Sputinik”, de Carlos Manga, com Jô Soares, em que interpretava um símbolo sexual, em uma clara analogia com a atriz francesa Brigitte Bardot, símbolo sexual do planeta e do sistema solar. Em 1961, fez um pequeno papel em “O Pagador de Promessas”, de Anselmo Duarte, vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes.  Com “Os Cafajestes”, tornou-se a musa que o Brasil tentava esconder, embora a desejasse entre quatro paredes.

A exposição internacional e a repercussão de “Os Cafajestes” a levou a receber convites para trabalhar no cinema europeu. Teria, disse ela, namorado o ator francês Alain Delon, considerado o homem mais bonito e desejado da época. Não participou de produções marcantes, mas fez filmes na Argentina (“Sócio de Alcova”) e na Itália (“Mafioso”, de 1962, e “Os Cruéis”, de 1967). Mas foi no Brasil que ela fez uma obra-prima da cinematografia nacional, o monumental “Noite Vazia” (1964), de Walter Hugo Khouri, produção de caráter profundamente existencialista, inspirada no cinema do italiano Antonioni, que explorava a angústia da noite paulistana, naqueles tempos de início de ditadura. Uma história ousada na qual ela interpretou uma prostituta ao lado de Odete Lara e do ator italiano Gabriele Tinti, com quem foi casada de 1963 até 1969.

Seu brilho continuou nos anos de 1970. Além trabalhar regularmente no teatro, nas telas apareceu em produções que marcaram a história do cinema nacional, como “A Casa Assassinada” (1971), de Paulo Cesar Sarraceni; “A Idade da Terra” (1980), de Glauber Rocha, e “Rio Babilônia” (1982), de Neville d’Almeida. Os problemas vieram quando se tornou diretora. Ela estreou na função em 1988, em “Eternamente Pagu”, sobre a escritora modernista. Ainda atrás das câmeras, adaptou o clássico “O Guarani”, de José de Alencar, para o cinema, em 1997. Com Marcio Garcia e Tatiana Issa, essa produção lhe rendeu a acusação pelo Tribunal de Contas da União (TCU) de irregularidades na prestação de contas dos recursos captados via renúncia fiscal.

Na época, Norma foi linchada por parte da imprensa dita séria, que a colocou como fraudadora antes do fim do processo. Na ocasião, o Ministério da Cultura disse ter encontrado notas frias e acusou a retirada do pagamento ao produtor em valor superior ao permitido. “O Guarani” teria captado R$ 2,99 milhões e a atriz chegou a ter os bens bloqueados e ser indiciada pela Polícia Federal, mas sempre se defendeu das acusações e acabou inocentada.”Tenho a consciência limpa. Sei onde ponho meu nariz, de onde pego minhas coisas”, afirmou em entrevista ao jornal “Folha de S. Paulo”, em 2010. “O que eu roubei de ‘O Guarani’ deve estar na Suíça, né? Se amanhã eu ganhar um Oscar, alguém vai falar: “E “O Guarani’?” É a única mácula na minha carreira”, desabafou.

Em 2005, voltaria a focar em histórias de grandes mulheres como “Infinitamente Guiomar Novaes”, um documentário sobre a pianista morta em 1979, e “Magda Tagliaferro – O mundo dentro de um piano”. Em 2010, uma foto sua em uma passeata da década de 1960, contra a ditadura militar, foi utilizada pela então candidata do PT à Presidência da República, Dilma Rousseff. O fato foi explorado por parte da imprensa, que alimentou a intriga de uso indevido de imagem e associação com a atriz. Na época, Norma confirmou sua coerência e caráter: desmentiu qualquer mal-estar e manifestou apoio à candidata. Na televisão, reapareceu apenas em 2008, com a personagem Dayse Coturno, no humorístico “Toma Lá, Dá Cá”, da Globo. Por sempre atuar em peças e filmes alvos dos censores da ditadura militar, alegava ter sido perseguida, o que a obrigou a se exilar na França em 1971. Em 2010, a Comissão de Anistia a reconheceu como anistiada política e concedeu uma reparação econômica de cerca de R$ 100 mil.

Norma morreu por volta das 3h da madrugada de hoje na unidade Bambina do Hospital Rio Laranjeiras, aos 78 anos. Ela foi diagnosticada há cerca de seis meses com um câncer no pulmão direito, e estava internada desde sábado no Centro de Tratamento Intensivo do hospital. O velório começa às 18 horas, no Cemitério São João Batista, em Botafogo. A cremação será no Memorial do Carmo, no Caju, nesta quinta-feira. Um amigo da família contou que, no últimos dias de vida, a artista estava bastante debilitada, sentindo falta de ar e que não reconhecia mais ninguém. Seu último desejo era que fosse cremada. Vai-se a pessoa fica a lenda. Norma será para sempre o ícone de irreverência, subversão e desejo num tempo em que os brasileiros não sonhavam com lindas mulheres que não fossem do cinema estrangeiro.

Relembre os filmes (na íntegra) que consagraram Norma 

– “Os Cafajestes” (1962), com a direção de Ruy Guerra. Estrelando Jece Valadão e Norma Bengell.

– “Noite Vazia” (1964), com direção de Walter Hugo Khouri, música de Rogério Duprat.



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