Em seu amplo apartamento no bairro do Pacaembu, em São Paulo, o ex-ministro Antonio Delfim Netto não se conforma com a “desintegração” da economia no atual mandato da presidenta Dilma Rousseff. Aos 87 anos, Delfim soma mais de cinco décadas em atividade no setor e comemorou o crescimento inclusivo do País durante o governo Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), de quem se aproximou ainda nos anos 1970. Na época, o economista se destacava como ministro do regime militar e Lula despontava como líder sindical na região do ABC paulista: “O Brasil depois de Lula é muito melhor do que o de antes. Caminhou para a desintegração por outros motivos”.
Para Delfim, a origem da atual crise encontra-se em 2014, quando as decisões econômicas passaram a ser tomadas em função de uma meta política – a reeleição de Dilma. “Ela explica que só percebeu em novembro que a coisa tinha avariado, mas sabia desde março. Guido Mantega (o ex-ministro da Fazenda) pagou um preço caríssimo, porque ele sabia desde março que o Brasil não ia crescer… Só que reconhecer em março que o Brasil não ia crescer significava perder a eleição.”
Brasileiros – O primeiro grande debate no Brasil sobre desenvolvimentismo e liberalismo faz 70 anos. O industrial Roberto Simonsen e o economista Eugênio Gudin esgotaram o tema?
Antonio Delfim Netto – Simonsen escreveu um trabalho sobre planejamento econômico e o doutor Gudin deu-lhe uma cacetada muito forte, por causa de um erro no cálculo do PIB. Simonsen tinha uma intuição muito segura e Gudin tinha um bom domínio da teoria econômica. É curioso porque são duas figuras interessantíssimas. Um entrou na Escola Politécnica do Rio, outro na Politécnica de São Paulo, com 13, 14 anos. Dois geniozinhos.
Esse debate continua?
Continua. E não tem muito sentido. Não há desenvolvimento sem obedecer a alguns condicionantes econômicos. É uma dificuldade que tem prejudicado a política econômica brasileira. Fica esse pêndulo, dando a impressão de que existe um crescimento gratuito ou um sacrifício absoluto. Restringir o crescimento à dimensão do PIB é uma medida insatisfatória. Principalmente hoje, pois está incorporada a ideia de que se explorou a natureza de uma maneira que ela não aguenta.
Os recursos naturais?
Eles não aguentam. Hoje há sete bilhões de habitantes no mundo. Todos querem ter o nível de renda dos Estados Unidos. Para sete bilhões de habitantes terem o nível de renda americano, é preciso três Terras. Quem chegou primeiro, abusou. Quem está chegando agora, está sofrendo restrições.
Isso significa que estamos condenados a conviver com a desigualdade social?
A discussão é sobre qual sociedade queremos aqui no Brasil. A Constituição de 1988 tem implícita uma sociedade civilizada. Ao contrário do que dizem, ela tem muitos inconvenientes, porque foi feita em um instante terrível da história do Brasil. Foi feita depois do Plano Cruzado, o maior estelionato do universo. O estelionato da Dilma é um pintinho perto do estelionato de 1986, que produziu um Congresso que do nada foi construindo uma Constituinte.
Qual é o estelionato de Dilma?
A promessa que ela fez de que ia continuar com tudo que tinha feito. E depois se apropriou da política econômica do opositor. Sem explicar por quê. Se ela tivesse explicado por quê, acho que estava tudo bem.
Quando votou nela, o senhor acreditou na promessa?
Considero a Dilma uma mulher honesta, com honestidade de propósito, mas ela gosta de uma trapalhada. Em 2011, ela fez um governo de alta qualidade. Teve o mesmo crescimento do Lula, 3,9%. Teve a mesma inflação, reduziu a dívida, teve um déficit de 3%. De 2012 em diante é que ela se assustou com a queda do crescimento. Começou a pôr a mão em tudo. Pôs a mão na energia. Fez uma confusão dos diabos. Pôs a mão nas concessões. Não deu certo. Nada dá certo porque ela quer uma coisa fantástica, que é a modicidade tarifária (tarifa acessível para todos). Uma forma implícita de dizer: “Eu quero controle de preços. Eu sei melhor que o mercado o que é bom para você”.
Na sua opinião, é como ela atua?
No fundo, ela é uma brizolista. O doutor engenheiro deixou aí uma herança fantástica, que se expressa nas tais perdas internacionais. Ele dizia para o pessoal do Vale do Rio dos Sinos: “Vocês são uns canalhas. Cada par de sapato que vocês exportam é um brasileiro que vocês deixam descalço”. Essa era a grande filosofia do Brizola. Então, o que acontece hoje na prática? Pega estrada de ferro, por exemplo. Claro que precisava mudar. E adota um modelo até muito bom, mas que funciona na Alemanha. Só que na Alemanha tem alemão. Aqui põe a Valec para tocar. E tudo o que a Dilma fez foi com a melhor honestidade de propósito.
A nova matriz econômica que o governo Dilma tentou implantar era para reverter o ritmo de desindustrialização do País por meio de incentivo ao capital industrial. O que deu errado?
Não deu errado. No fundo, a coisa errada é posterior. Lula é um gênio. Essa é uma verdade. Lula tem uma intuição extraordinária. É um pragmático. Do socialismo não tem nada. O Lula tem pragmatismo e tem concepção de inclusão da sociedade. Por que ele foi ajudado? O mundo expandiu. Teve uma melhoria nas relações de troca. Ele pôde realmente produzir um crescimento inclusivo. O Brasil melhorou dramaticamente. O Brasil depois de Lula é muito melhor do que o de antes. Caminhou para uma desintegração por outros motivos.
Quais?
Até 2011 estava tudo em ordem. Quando Dilma, a partir de 2012, faz a intervenção, que é correta, ela está escondendo o desejo de controlar os preços. Não funcionou. Quando reduziu o crescimento, aqueles inconvenientes que estão na Constituição, que são as vinculações, emergiram. Terminou 2013 crescendo muito pouco, mas o sistema tinha 3% de déficit, a dívida ainda era 56%. O desastre foi 2014.
A política para ganhar a eleição?
O desastre foi outro axioma do Brizola: “O dever do governo é continuar governo, para continuar fazendo as besteiras que fez ou tentar corrigi-las. Se não for governo, não tem solução”. Então ela jogou tudo o que tinha. Ela explica que só percebeu em novembro que a coisa tinha avariado, mas sabia desde março. Guido Mantega pagou um preço caríssimo, porque ele sabia desde março que o Brasil não ia crescer… Só que reconhecer em março que o Brasil não ia crescer significava perder a eleição.
Para muitos, a crise é um legado de Mantega.
O que é a maior injustiça do mundo. Como eu disse, Dilma é correta, tem uma vontade muito firme, mas para ela não tem ministro da Fazenda. Dilma será sempre seu ministro da Fazenda. Todos são ministros sombra. O Guido foi ministro sombra. O Joaquim Levy é ministro sombra. Ela tem a sua concepção do mundo, que não coincide com a realidade brasileira.
Confere essa história de que existem duas linhas no ministério?
Tudo isso é a posteriori. O homem precisa de uma justificativa. Então, nada melhor que inventar uma teoria. Nos documentos escritos por Márcio Holland, que era secretário de Políticas Econômicas de Guido, já estava apontado no começo do ano que tudo ia dar em água de barrela. E estavam lá as medidas que o Joaquim tomou no primeiro dia. Aquelas três medidas são propostas do Guido, que não tinham sido utilizadas porque já estava no processo eleitoral. Então, o que eu diria é que há muito mito em tudo isso. Primeiro, é óbvio que essa ideia de que o mercado é Deus é uma ideia religiosa. O mercado precisa de um Estado forte, constitucionalmente condicionado e capaz de regular os mercados.
A história do mercado e da urna?
É, porque o mercado desregulado destrói a urna. O mercado desregulado vicia o sufrágio universal e, portanto, não produz a correção que a urna exige. É por isso que está visível o problema do financiamento de campanha. Outro dia o ministro Teori Zavascki (do Supremo Tribunal Federal) fez uma observação perfeita. Precisa ter restrições. Ninguém que negocia com o governo pode fazer doação.
E a empresa que não negocia?
Se quiser, ela pode fazer uma doação para um partido. Tudo muito limitado. Qual é essa sociedade implícita na Constituição? Primeiro, uma sociedade onde haja absoluta liberdade de iniciativa, onde o sujeito possa se apropriar dos benefícios dessa liberdade se ela for lícita. Segundo, uma sociedade onde essa liberdade seja acompanhada por uma relativa igualdade. Em um regime como o nosso, igualdade se faz na saída, não na chegada.
Como assim?
É a pessoa depender cada vez menos do lugar onde nasceu. Se foi produzida na suíte presidencial do Waldorf Astoria, depois de uma noite grandiosa, regada a Dom Perignon 1982, tem direitos. Se foi produzida em uma noite chuvosa, sem querer, embaixo do Museu do Ipiranga, em um sábado terrível, também tem direitos. É preciso dar às duas pessoas a mesma oportunidade, porque o capitalismo é uma corrida. Todos têm de sair juntos. Isso exige uma relativa mitigação das transferências intergeracionais de renda. Se o pai teve muita sorte, ficou rico, na hora de passar para o filho, tem que entregar um pedaço de volta para sociedade.
E na hora da corrida?
Um vai estar com calção de veludo e outro com calção de algodão, mas vão correr com duas pernas parecidas. Onde cada um vai chegar depende do DNA, depende da sorte. Ou seja, a justiça se faz na partida, não na chegada, porque somos desiguais naturalmente. E a sociedade precisa prover algum mecanismo para aqueles que não tiveram chance de entrar na corrida. Dar a ele uma Bolsa Família, para ele educar o filho, ter condições de conquistar a cidadania com seu próprio esforço.
Qual outro fator importante?
Uma relativa igualdade para fabricar minha humanidade. Não vim ao mundo a trabalho. Nasci para vagabundear. Preciso de um sistema econômico com produtividade para que eu use cada vez menos tempo para satisfazer as minhas necessidades materiais e cada vez mais tempo para fazer o que aquele velho Carlos (Karl Marx) dizia: “Vou ser poeta um dia, namorar no outro dia, vou à caça no outro dia”. Esta é a sociedade imaginada na Constituição. E, para que essa sociedade funcione, tem que ter um certo equilíbrio entre o aumento do consumo e o investimento. Houve um exagero no consumo e terminou como terminamos. A redistribuição de renda ainda está aí. Não precisávamos estar sofrendo neste nível. Houve realmente um erro do governo, que foi esse, “preciso me reeleger”.
O que aconteceu?
Quando Dilma fez a mudança, estava na direção correta, mas as pessoas não acreditaram. No dia que foi reeleita, ela tinha um terço mais um pouquinho. Quando fez a conversão de 180 graus, os que votaram nela tiveram uma grande decepção. E ela perdeu dois terços deles. Se ela não recuperar o protagonismo, não vai funcionar.
Há saída?
Claro. O Brasil não é uma pastelaria. Nós temos que entender que a grande conquista foi a estabilidade das instituições. O impeachment não é inconstitucional, desde que se prove que houve um desvio de função. Não pode ser truque no tapetão. Nós temos que defender os caminhos constitucionais. O Brasil deve ser o País emergente que tem o mais independente Supremo Tribunal Federal. Eu não tenho dúvida. É o garantidor dos nossos direitos e da Constituição. Então sou contra esse negócio. Ela tinha que assumir. O que acontece? Ela tem perdido as oportunidades. Quando enviou para o Congresso um projeto de Orçamento com déficit foi uma coisa inacreditável.
Há quem diga que ela fez isso de propósito, para jogar nas costas do Congresso.
Se fez de propósito, é muito pior, porque é ela imaginar o seguinte: “Agora eu vou pôr o Legislativo de joelhos. Eles é que vão resolver”. As pessoas mais benignas, como interpretaram isso? “Ela jogou a toalha, declarou impotência.” Veja a consequência desse ato insensato. A Standard & Poor’s tinha dado um voto de confiança para o Joaquim. Não vamos ter ilusão. O voto foi para o Joaquim. Quando apareceu esse Orçamento com déficit, a Standard & Poor’s, arrependida, surpresa, imediatamente cortou o grau de investimento. O produto de uma estupidez como essa foi o corte do grau de investimento, que tem consequências dramáticas. Não adianta vir dizer que a agência não vale nada. Agência não vale nada mesmo. Só que essas agências conseguiram por meio do lobismo nos Estados Unidos a decisão administrativa de que os fundos de pensão não podem investir em um país que não tenha a aprovação de pelo menos duas agências de risco. Não adianta bater com a cabeça na parede e dizer: “Não vale nada”. Tanto não é verdade que quando nós recebemos o grau foi um momento mágico, como dizia o Lula.
Lula disse na época que o Brasil era um País sério.
É verdade. Entre o grandes problemas do Orçamento estão as vinculações. Tem de acabar com as vinculações. Elas dependem do tempo, do lugar, das circunstâncias. Não podem ser fixadas na Constituição, como estão. Isso é coisa de uma inteligência pequenininha. Daí, temos hoje 92% das verbas estabelecidas. Estamos voltando ao João Goulart, que Goulart tinha 107%.
107%?
103%, 107%. Quando começava o Orçamento, já estava em déficit. Só não aparecia em déficit porque eles eram mais inteligentes do que foram agora. Inventavam uma receita. Isso vai ter que ser enfrentado. Ela devia ter ido para a televisão dizer isso: “Eu vou fazer o que tem que ser feito. Você pode bater panela, mas estou fazendo isso para o seu filho”.
É possível comparar a atual situação política com o 1954 de Getúlio Vargas ou o 1964 de João Goulart?
Não. A sociedade melhorou demais. Temos tudo para ser uma sociedade civilizada. A dificuldade atual é enorme, mas o Brasil já enfrentou outras iguais. Lembra Dom Pedro II? Ele tinha 14 anos e no dia seguinte ficou com 18 anos. Só no Brasil.
A declaração de maioridade.
Estava uma encrenca. Chegaram para Dom Pedro, falaram que ele tinha 18 anos e deram o discurso para ele fazer. O que ele prometeu para a nação? “Juro que controlarei as despesas!” Depois, todos os presidentes também juraram que controlariam as despesas. Tivemos crises homéricas. Só que o Brasil é o único país com 200 milhões de habitantes que chegou a ser a sexta economia do mundo. Isso não é pouco. Nós não temos competência para impedir o Brasil. Só podemos atrasar um pouquinho. Essa ideia de que o Brasil terminou é ridícula. Prefiro a obediência estrita à Constituição porque é a única forma de conservar o que se construiu. Já são 30 anos e está funcionando.
E dá para comparar a situação do Brasil com a situação da Grécia ou Espanha?
Lá é outro mundo. A Grécia está caminhando em uma direção diferente. A reeleição de Alexis Tsipras é interessante porque vai dar para renegociar algumas coisas abusivas.
O pacote de austeridade exigido pela União Europeia?
O credor realmente impôs sua vontade e agora Tsipras tem condição de se corrigir sem voltar atrás. No Brasil não se pode desorganizar a economia de tal jeito que o ajuste venha de fora para dentro. Nós estamos esquecidos. O ajuste de 1998 de Fernando Henrique foi de fora para dentro. Ele correu para o fundo monetário. Se Clinton não ajudasse, Lula teria sido eleito em 1998. Aí seria uma tragédia.
Por quê?
Porque Lula não estava preparado. Nem tinha sequer a estrutura que ele teve depois. O Homem lá de cima tem velado por nós.
O senhor é apontado como consultor de Lula, Temer, Dilma. Como é isso?
Isso é história. Você acredita na imprensa?
Mas seu relacionamento com Temer é muito bom.
E é muito antigo. Com todos eles. Meu relacionamento com Lula é dos anos 1970, quando ele estava emergindo como líder. Tenho uma enorme admiração por ele. Lula é um diamante bruto. É uma inteligência absolutamente privilegiada. Um democrata. Acredita na discussão. Um dia, Lula me disse um negócio que eu aprendi. Ele disse: “Delfim, se você não quiser conceder, não senta na mesa. Se não tiver nenhuma disposição de fazer concessão, não senta comigo porque nós vamos brigar. Eu sei que vou ceder, mas você tem que ceder. É disso que nasce o entendimento”.
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