O Brasil no divã

Perspectiva – O psicanalista, sobre o programa de reparação do estado brasileiro: “o testemunho é parte fundamental do processo de restauração da verdade”

A entrevista durou o tempo de uma hora clássica de psicanálise: 50 minutos. O tema da sessão de perguntas e respostas,em contrapartida, girou em torno de uma iniciativa inusitada:as Clínicas do Testemunho, um serviço de saúde mental dirigido a atingidos pela violência do Estado durante a ditadura militar. À frente de uma dessas clínicas e de uma equipe de sete profissionais do Instituto Projetos Terapêuticos de São Paulo, o médico e psicanalista Moisés Rodrigues da Silva Júnior afirma que a violência do regime deixou marcas profundas e múltiplas. “A vítima da tortura é só um protagonista de uma história que pertence a todo um povo, a uma nação.” Quando o Estado reconhece os erros cometidos por seus agentes e adota políticas de reparação, há uma inversão nas relações. “As pessoas que passavam por loucas se tornam as portadoras da verdade”,afirma o psicanalista. O instituto que ele dirige foi um dos cinco selecionados para desenvolver o trabalho, em parceria com a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça.

Brasileiros – A violência dos agentes do Estado durante a ditadura aconteceu há décadas, mas os traumas persistem. Por quê?
Moisés Rodrigues da Silva Júnior – A violência não se faz só contra o corpo. A violência que se pratica contra o corpo encontra inscrição na subjetividade,no psiquismo dos violentados. Não só dos violentados, dos violentadores também, porque a tortura é fundamentalmente uma experiência de desumanização. Na tortura, o que se busca é desumanizar e tornar o torturado nulo, nada, ninguém.Essa é a marca difícil de ser superada. A marca de voltar à vida sendo ninguém, não tendo como contar isso e nem ninguém que queira ouvir.

Brasileiros – Ninguém quer ouvir?
Moisés – Tenho escutado muitíssimo as pessoas dizerem: “Mas para que mexer nisso tudo? Para que ouvir essas histórias horríveis que a gente passou, esqueceu e ficou pra trás?”. A grande verdade é que a gente não esqueceu. Só deixou apagado.E há uma grande diferença entre esquecer e apagar. O trabalho com a violência é recuperar o acontecimento, tramá-lo com palavras, e tornar essa experiência socializável, compartilhável.

Brasileiros – Como é essa história de as marcas também ficarem no torturador?
Moisés – Ninguém passa impune. O jogo da tortura é cruel. Na história do Brasil tem a presença da tortura desde o primeiro momento. O português veio educado pela Santa Inquisição. No Brasil, torturou-se índios,infiéis, negros, desviantes, comunistas.Essa é a história do Brasil. Ela contradita a imagem de democracia racial da qual nos orgulhamos. Somos um país profundamente segregacionista e violento. O que enfrentamos nesse início do século 21, e com grande esforço, é levantar os véus dessa nação e começar a ver, afinal, qual é essa alma brasileira.

Brasileiros – O agente do Estado que torturou não estava só cumprindo ordem. Ele estava dando vazão a impulsos próprios.
Moisés – Com certeza. Nós estamos aqui dando vazão aos nossos impulsos,à nossa vontade de entender, de deslindar. A existência humana é a liberação dos impulsos próprios.É isso o que o torturado não consegue.Ele fica impedido, bloqueado.Tem uma experiência dentro dele que fica enquistada. A plasticidade psíquica fica comprometida.

Brasileiros – E qual é o impacto dissoem uma criança? Em um ser em formação?Não necessariamente a torturadireta.
Moisés – Ah, a matéria da Brasileiros(Quando meninos são fichados como terroristas,edição 68) mostrou muito bem os impactos da ditadura sobre crianças.Todos eles conseguiram contar, um por um, como foi, onde eles ficaram marcados, no esquecimento, na falta de memória, na falta das referências,no medo. Por serem muito primitivas,são marcas que primam por uma indistinção.Elas são profundas, intensas,mas não carregam escrito “isto é uma marca de quem foi torturado”. A marca de quem foi torturado é o horror, a dissolução da possibilidade de conter em si a experiência.

Brasileiros – Todos sofrem então?
Moisés – A violência se faz diretamente sobre um protagonista, o torturado,mas, na verdade, atinge não apenas a ele e as pessoas em volta.Quando alguém é torturado, todo um povo está sendo atingido. Uma experiência como a que passamos no Brasil, não só de tortura, mas de conivência com a tortura, foi terrível.O povo vivia sob um signo de terror.O tempo inteiro os pais avisavam os filhos para terem cuidado, para não se envolverem com as pessoas, para não se envolverem com a política.Quando se discute a despolitização atual, tem muitos aspectos do mundo contemporâneo. Com certeza, na despolitização tem também a marca que a tortura deixou no País. E tem mais. O brasileiro se acostumou à conivência com a tortura.

Brasileiros – Como?
Moisés – O Comparato (o jurista Fábio Konder Comparato) citou em um artigo uma pesquisa em que 42% da população brasileira são a favor da tortura feita por policiais quando eles têm um suspeito nas mãos. Nesse índice está estampado como a tortura é uma prática assimilada pela população como uma forma de se obter a verdade.O custo disso é desumanizar o outro.

Brasileiros – O impacto pode, então,ser coletivo.
Moisés – Estamos falando das grandes feridas dessa nação. Somos uma nação ferida, traumatizada, que nega, coloca um véu sobre as violências do passado e simplesmente não quer falar. A grande verdade é essa. As pessoas não querem falar sobre isso.Uma quantidade imensa de pessoas guardou para si a concepção de que houve uma guerra civil no Brasil, uma guerra suja. De alguma forma, a Leide Segurança Nacional colocou que havia um inimigo interno, não alguém que resistia, que defendia. Os papéis se inverteram completamente. Como restabelecer a verdade? Fico maravilhado ao ver quase 50 comitês e comissões da verdade espalhadas pelo País. Se tem gente que quer calar e fazer calar, também tem gente que quer falar e fazer falar. O Ministério da Justiça assume esse movimento. As Caravanas da Anistia são impressionantes.

Aberto ao Público – Moisés, com a equipe do Instituto Projetos Terapêuticos, participa de debate em São Paulo

Moisés – São audiências públicas promovidas pelo Ministério da Justiça,fora de Brasília, em que se faz a apresentação de processos avaliados pela Comissão da Anistia. Há pouco tempo, acompanhei uma caravana na USP (Universidade de São Paulo). A primeira parte foi a retificação do atestado de óbito do Vladimir Herzog (jornalista morto em 1975).Clarice Herzog, junto com os filhos,lutou 38 anos para retificar o atestado de óbito do marido. Foi muito emocionante acompanhar a verdade ser restabelecida. Aquele homem não tinha se enforcado da forma grotesca que as fotos oficiais mostraram. Ele tinha sido assassinado, morreu em razão da tortura. Na audiência, a primeira coisa que a Clarice fez foi pegar o atestado e dizer: “Agora eu quero saber quem foi”. A luta continua para ela. A verdade não está toda dita. O Brasil ainda não conseguiu responsabilizar os torturadores.Clarice levantou uma bandeira de fundamental importância. No Brasil,a transição da ditadura para a democracia foi feita de uma forma completamente engessada pelos militares.

Brasileiros – Isso significa, na suaopinião, que há justificativa para osentimento de vingança contra ostorturadores?
Moisés – A questão é de justiça, não é de vingança, nem de revanche. Vivemos num Estado democrático. Temos lei.O que se quer é só a aplicação da lei, nada mais que isso. Para mim,seria suficiente se as pessoas que ocuparam de forma indevida a sua posição fossem levadas a julgamento.

Brasileiros – Muitos criticam as vítimasque expõem suas feridas, como seelas não quisessem se desapegar dopassado.
Moisés – A vítima é só um protagonista de uma história que pertence a todo um povo, a uma nação. Existe o elemento pessoal, mas tem uma chaga que é do País. Nesse sentido, as Clínicas do Testemunho ocupam lugar fundamental por que o Estado reconhece a responsabilidade por seus agentes que perseguiram, torturaram e mataram cidadãos. Isso muda completamente a história. Isso muda a possibilidade clínica. Uma coisa é atender uma pessoa com sofrimento. Outra é estar numa política de reparação em que o Estado reconhece suas culpas e suas responsabilidades.Quando o acontecido é confirmado pelo Estado, o plano sobre o qual se começa a trabalhar é outro. As pessoas que passavam por loucas se tornam as portadoras da verdade. É uma inversão bastante importante na ordem das relações.

Brasileiros – Da mesma forma queo indivíduo pode agir movido peloinconsciente, sem se dar conta, a sociedadecomo um todo pode ser movidapor traumas?
Moisés – Com certeza. O Primo Levi(escritor italiano de origem judaica,falecido em 1987) tem um relato lindo,no qual conta do sonho recorrente que tinha no campo de concentração,durante a Segunda Guerra Mundial.Ele e os companheiros dele sonhavam em um dia voltar para casa e contar tudo o que eles tinham vivido. Quando foi libertado, ele chegou em casa e começou a contar as experiências que tinha passado para seus amigos e familiares. As pessoas foram saindo de fininho da sala. Não queria me não podiam escutar aquelas histórias horríveis. Aquilo se repetiu algumas vezes até que Primo Levi percebeu que ele carregava em si o horror, o terror,que era dele, mas era também de todos aqueles que não podiam escutar aquelas histórias. Daí a pergunta:Por que é ainda tão difícil falar hoje? Por que as pessoas não querem ouvir? Isso remete diretamente aos ferimentos do terror que ficaram encriptados na história do Brasil.

Brasileiros – Qual o seu prognóstico?A tortura continua nas delegacias,nas prisões.
Moisés – Estamos em meio ao processo.Está se dando um passo bastante importante na medida em que o Estado reconhece a sua responsabilidade.Esse é o ponto fundamental. O passo que está se dando é em relação aos afetados pela violência nos anos da ditadura, mas estamos avançando.E eu me coloco completamente como a Clarice. Agora quero saber mais,e quero saber mais das violências atuais. Apesar do refluxo dos que acreditam que a questão da segurança pública se resolveria com o aumento da repressão, com a diminuição da idade penal, existem grandes porções da sociedade que pensam diferente.Nesse momento, não estamos tratando disso, mas o trabalho aponta para essas questões atuais.

Brasileiros – Como funcionam as Clínicas do Testemunho?
Moisés – São sempre trabalhos grupais.É muito importante que o relato seja sempre socializado. Grupos têm uma grande potência de mediação entre indivíduos e instituições. São lugares onde a ressonância dos afetos e a potência do acolhimento se multiplicam.Torturados que puderam voltar para a cela e serem recebidos pelos companheiros ficaram muito menos traumatizados do que aqueles que tiveram que ser hospitalizados ou foram colocados em celas isolados. O acolhimento do outro, o reconhecimento da dor, são fundamentais nesse tipo de questão que estamos lidando. A mensagem última que passa nesse tipo de situação é: será que aquilo aconteceu mesmo? Isso é a imensidão do acontecimento não podendo ser comportada na pequenez da subjetividade.

Brasileiros – Esses grupos têm característicasespecíficas?
Moisés – Há grupos que já prestaram depoimento à Comissão de Anistia,que fizeram o seu testemunho. Para eles, a questão é ver como isso afetou a sua vida. O testemunho entranha em palavras, em frases, aquilo que era sensação,o excesso de sofrimento. Ele é a possibilidade discursiva de compartilharem direção ao social, que marca o humano. Mas na construção dessas frases, muitas coisas não cabem no discurso todo. Para os grupos que estão em processo de construção do testemunho,a ideia é perguntar o que eles precisam para completar o trabalho.Não é um trabalho fácil, é a construção por escrito da história. Há ainda um terceiro grupo, de pessoas que nunca se animaram a fazer o seu testemunho,mas que têm dúvidas se o processo seria bom. É preciso arrojo, coragem,para fazer o testemunho.

Brasileiros – Mas é possível fazer o processoda anistia sem fazer o testemunho.
Moisés – Pode, mas o testemunho é parte fundamental do processo de reparação, de restauração da verdade.No Brasil, a anistia está muito mais ligada à lembrança do que ao perdão.

Brasileiros – Qual a diferença?
Moisés – Essa é uma articulação semântica fundamental. Nas caravanas,o Paulo Abrão (o secretário nacional de Justiça, entrevistado pela Brasileiros,na edição 64) se desculpa em nome do Estado brasileiro. É um momento de comoção. O Paulo Abrão é um homem que põe para vibrar toda a humanidade dele quando está falando em nome do Estado. É muito impressionante porque é como se ele pudesse, na fragilidade humana de um corpo, representar tudo o que o discurso dele comporta.

Brasileiros – As clínicas também vãoatender os familiares dos anistiados.
Moisés – Os psicanalistas húngaros Nicolas Abraham e Maria Torok trabalham no livro A Casca e o Núcleo um conceito de cripta, pensando nos lugares onde ficam inscritos os sofrimentos dissociados. Abraham e Torok falam de três tempos da situação traumática. O primeiro momento é do diretamente afetado. A experiência é indizível, na medida em que não tem palavras. Nessa primeira geração, a experiência é sensação,emoção. São os excessos. Na segunda geração, a questão é o inominável.Sobram restos de sofrimento, mas ele não mantém uma relação direta com a experiência traumática. Então,existe a sensação que não dá para ser nominada ou referida como experiência traumática. Na terceira geração, a situação é impensável. Na verdade, já virou fantasma. Faz parte daquela pergunta que você fez, esses inconscientes que ficam tomados pela história.

Brasileiros – De outras gerações?
Moisés – Esses acontecimentos ficam colocados na ordem do horror,não tendo mais a referência nem do inominável da segunda geração nem do indizível da primeira. Então, o trabalho com os filhos e os netos tem essa delicadeza de passar ou pulsar de alguma forma para retirar essas coisas que ficaram como resíduos tóxicos na vida das pessoas.Esse é um processo que conheço e pessoas que passaram geracionalmente por questões de violência conhecem, mas é diferente fazer isso tendo o Estado como responsável.Isso é novidade, algo que estamos tentando. Estamos vivendo coisas que não existiam, que não têm registro.


Brasileiros –
Onde vai dar?
Moisés – Não sabemos. Nós temos montado sets, pensado nas pessoas. No edital do Ministério da Justiça para as Clínicas do Testemunho, tem o atendimento às pessoas e um segundo eixo que é de investigação, de pesquisa e criação de insumos, apontando para que se estabeleça uma política pública.O terceiro eixo é a capacitação de operadores dessas clínicas. Aqui no Instituto de Projetos Terapêuticos estamos montando um webdoc (arquivo abertona internet com possibilidade de interação dos usuários). Chamamos outros operadores de grupos, sociólogos, historiadores,psicanalistas, para apoiara pesquisa. Gente que é da universidade,que tem metodologia. Não queremos fazer só o reconhecimento do avanço. Queremos saber quais avanços são possíveis e quais não são. A ideia é criar de verdade massa crítica para essa iniciativa.

Brasileiros – E o terceiro eixo, a formaçãode operadores?
Moisés – Para a capacitação, estamos escolhendo profissionais da rede pública, da área da saúde. Vamos também trabalhar com pessoas que atuam junto à população carcerária e às Mães de Maio (movimento de mulheres que perderam seus filhos em maio de 2006, em situação registrada pela polícia como “resistência seguida de morte”) .

Brasileiros – Seria mais fácil esquecer?
Moisés – É impossível esquecer.Tem um princípio interessante dapsicanálise que diz que, para umacoisa ser esquecida, ela primeiroprecisa ser lembrada, apropriada edepois esquecida. O Fédida (o psicanalistafrancês Pierre Fédida) dizque o luto é a elaboração que permiteque a gente encontre um lugarpara os nossos mortos, para queeles não nos assombrem. Não existe esquecer sem elaborar. Isso é a talcripta, é criar fantasmas que podem aparecer a qualquer momento e nos aterrorizar. I


Comentários

2 respostas para “O Brasil no divã”

  1. Avatar de dirceu da costa santos
    dirceu da costa santos

    Servi a FAB em 1968 e fui torturado e preso, quero fazer clinica do testemunho, como proceder.

  2. Avatar de Eliana L. Chaves
    Eliana L. Chaves

    Excelente artigo! Como profissional da área concordo que não existe “esquecimento”, existe um “enquistamento” mental, uma “passagem” ao inconsciente de uma verdade insuportável que perturba – quando não destrói – toda uma vida posterior à experiência da tortura.

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