O caçador das obras perdidas

De um lado, o submundo, de outro, o sublime. Nesse universo transita um investigador incansável, o padre José Simões. Sua trajetória inclui verdadeiras epopéias na busca de obras de arte roubadas em Ouro Preto, Mariana, Tiradentes (MG) e Goiás Velho (GO). Suas ações restituíram às igrejas mais de 500 peças sacras, entre imagens e adereços. E suas histórias são comoventes, escandalosas, tragicômicas, dignas de ficção.

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“Ouro Preto é fantasmagórica. É cidade de barro que cresceu nas encostas sem planejamento. Ruas doidas e tortuosas feitas para cortar as ondas de água que encachoeiram morro abaixo. Vi a cidade fora das horas, sombria em brumas. Vi a reação de quem vinha de fora: a historiadora Jean Marie me revelou que imaginava mais fantasmas aqui do que na Notre Dame de Paris. Sinais de angústia na história, o desejo de liberdade, quer dos inconfidentes, quer dos escravos. Minha vida aqui me deu essa observação.”

Não foi, porém, a vida com que sonhou José Feliciano da Costa Simões, hoje aos 77 anos. Ele tinha fé, queria ser guia espiritual em Ouro Preto onde nasceu. Mas a cidade também era a praça preferida dos saqueadores de imagens sacras. No início da década de 1960, um encontro iria mudar radicalmente a vida do recém-ordenado José.

“O velho vigário da capelinha mais antiga de Ouro Preto, a de São João do Morro, estava inconsolado. Três imagens de sua devoção haviam sido roubadas. ‘Não me deixe morrer sem elas’, rogou. Um menino me conta que no dia do sumiço das peças viu um carro com a placa de São Paulo parado em frente à igreja. Sem vacilar fui atrás. Tirei a batina, o que era proibido na época, e tive sorte: encontrei Santa Rita, São João e o raríssimo anjo São Rafael em um antiquário. Vesti a batina e expliquei o roubo ao delegado: ‘Tem um vigário sofrendo muito!’ Os policiais me atenderam. Fomos lá e tomamos as peças.

Animado com esse sucesso, padre Simões começou a se dedicar, estudou arte e história. Travestiu-se de ricaço, de expert em arte e colecionador, freqüentou ateliês dos antiquários, galeiristas e restauradores.

“Certos antiquários vão todos para o céu… Você vê uma lojinha simpática, bitacas humildes com um lampiãozinho pendurado na porta, mas quando conhece na intimidade vê que são cavernas de 500 ladrões. Botequins de vender arte, verdadeiros desmanches de obras sacras. Como é que o santo foi parar lá? Alguns restauradores mutilam, degolam, amputam braços e pernas, trocam as cores das vestes, descaracterizam as imagens. Muitas vezes mandam roubar, pois precisam de peças de reposição, e o estoque de auréolas, terços, asas, enfim adereços que colecionadores procuram, está baixo.
Os larápios têm olhos de lince. Infiltram-se entre os devotos no dia da santa, quando as beatas retiram dos gavetões da sacristia as relíquias e jóias como brincos, coroa, palma, manto bordado a ouro, para enfeitar a imagem na procissão. Nos dias que se seguem à festa uma coisa é certa: some tudo. Outro plano é visitar as ermidas e capelinhas distantes. Muitas nem possuem vigários, apenas humildes tomadores de igrejas. – ‘Se o senhor me der essa imagem de minha devoção eu mando fechar os buracos dos morcegos’.

Acuso também os que compram as obras. Por que comprou? Para rezar é que não foi.”

Ajuda dos céus
Duas das imagens sacras roubadas de igrejas brasileiras e que estão catalogadas no site do Iphan

Uma aura de prestígio envolve o fato de possuir obras de arte sacra: utilizadas como objetos de decoração, também servem como moeda de troca para lavagem de dinheiro. Mas é considerado deselegante, por parte dos justos, perguntar ao dono da casa como e onde comprou aquela preciosidade. Em geral se tem “recibo”. Mas recibo não é atestado de origem. E aí? Possuir obras furtadas não é imoral e indefensável? Os nomes e endereços correm à boca pequena – são de gente conhecida e aparentemente insuspeitável.

“Conheci casas em São Paulo cujas salas tinham mais peças sacras do que na minha paróquia Nossa Senhora do Pilar. A coleção de um empresário de Belo Horizonte dá inveja a grandes museus do mundo. Fui a uma recepção em que os aperitivos eram servidos em cálices de ouro surrupiados dos altares. Não que eu julgue uma profanação, sou padre, defendo a fé, mas sou cidadão brasileiro. Independente da carga religiosa as peças representam um alicerce da identidade cultural. Por outro lado não é apenas uma obra de arte, ela tem uma dimensão espiritual. Pertence aos moradores, à Nação brasileira, não a um punhado de ‘gatunos’.

Um desses era maníaco por imagens de Cristo crucificado, mas sem a cruz. Tinha uma coleção de pequenas imagens em chumbo, marfim, madeira, dos séculos XVI, XVII e XVIII. Ele arrancava o Cristo com tal habilidade que ninguém notava. Quando ia dar fé, tava a cruz vazia. Cadê o Cristo, desceu da cruz?

Tem até um colecionador tarado, que gosta de dormir com imagens de santas. Mexer nesse mundo de roubo das obras de arte é mexer com sujeira. Já ouvi de tudo: ‘Mineirinho, padre sonso da roça. Olha só a cara dele’. Mas ouvi também o contrário, que era esperto o bastante para ser autor intelectual do crime. Aconteceu em 1973, quando furtaram dezesseis peças da minha igreja. Minha cabeça ficou a prêmio. Fui preso, humilhado, sofri calúnias, ameaça de morte. Feriu-me a alma.

Certa vez sugeri aos moradores que não demolissem a antiga capela de Santa Bárbara. Tudo bem que não a utilizassem para rezar, pois queriam uma modernosa, mas que a conservassem como monumento. Somem até com os morros de Ouro Preto. Nossa obrigação também é para com a plástica da cidade. Em outra ocasião me diverti um pouco: quatro indivíduos roubaram uma pia batismal de pedra. A perua não agüentou o peso e quebrou. Um policial passou por acaso, reconheceu a pia, e deu voz de prisão aos larápios.

Uma vez chorei. Eu e um delegado já sabíamos das fraudes de certo antiquário. Montamos um teatro – mentira de padre é indulgência -, deixei a barba crescer porque já andava meio manjado no meio. Uma locadora me emprestou um carrão, e fomos lá montar uma armadilha para apanhar o sujeito. Entre as peças da loja reconheci as imagens, fui traído pela emoção. O cara disse: ‘Eu hein?’ E se mandou covil adentro. O policial ficou uma fera, me abandonou. Voltei para a rodoviária sem um tostão. Um paroquiano me viu e me deu o dinheiro para a passagem. Passei penas do inferno.”

Padre Simões teve também alegrias, vale dizer, “celestiais”. Em 1962 foi roubada a imagem de Nossa Senhora das Mercês do século XVIII. Seu autor, Aleijadinho, conseguiu tal expressão de ternura e contentamento que fez dela sua mais perfeita obra. Em 1995 acabou reconhecida na casa de um colecionador em São Paulo. Simões, com a participação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e da Polícia Federal, conseguiu recuperar a obra, que ficou sob a guarda de um museu. O colecionador afirmava que sua peça não era a mesma da Igreja das Mercês. (Mais tarde confirmou-se com raios-X que fora adulterada.) Padre Simões também provou que os adornos da imagem que haviam permanecido na igreja se ajustavam perfeitamente. O “dono” começou então uma batalha judicial com depoimentos de dois antiquários e pareceres de um juiz e até mesmo de um padre.

“Juro que não pedi o castigo do céu, mas o fato é que os quatro tiveram uma coisinha qualquer e…morreram.”

Padre Simões conseguiu um mandado para levar a peça para Ouro Preto. O padre e os policiais chegaram no minuto anterior ao fechamento do museu para que não houvesse tempo deste ajuizar a reintegração de posse. Saíram em disparada pelas ruas, acompanhados de batedores, direto para o aeroporto. O comandante Rolim da TAM ficou segurando na pista a saída do vôo para Belo Horizonte.

“Os passageiros reclamavam do atraso, mas quando entramos no avião com a imagem, eu, o Caju e o Geraldo Cotta, meus companheiros de lutas, o vôo tornou-se outro. Em Ouro Preto a Virgem seguiu em carro de bombeiro. Houve uma comoção na cidade. Senti uma paz indescritível.”

Outra briga aconteceu com o Louvre. O cunhado do padre Simões foi a uma exposição de arte sacra no museu francês e tirou algumas fotos com intenção de agradá-lo. Devido ao reflexo das vitrines, porém, as fotos ficaram péssimas. Apenas uma era perfeita o suficiente – que bênção! – permitindo ao padre reconhecer nela o ‘Livro do Compromisso da Irmandade dos Escravos de Ouro Preto’, de 1713, que estava desaparecido de Ouro Preto havia décadas. Imediatamente ele entrou com pedido de devolução. O livro foi devolvido com um bilhetinho: “Não pedimos, não roubamos, nos foi doado”. Só não dizia quem teria sido a pessoa tão generosa.

Padre Simões quer a polícia capacitada para reconhecer obras de arte, quer equipamentos de segurança (hoje existem chips impossíveis de serem retirados e que não danificam as peças), quer aulas de arte nas escolas. Aos seminaristas ensina que, além de guardiões dos mortais, são curadores do nosso patrimônio artístico, histórico e arquitetônico.

“Um país só é grande quando o povo tiver orgulho e mania de sua própria cultura. Quero lutar ainda mais para defender nossa arte. A batalha está longe de ser ganha, mas essa mina um dia acaba.”

Em tempo: em agosto de 2008, durante uma das entrevistas com padre Simões, chegou a notícia de que três imagens, datadas de 1675, acabavam de desaparecer da Igreja Nossa Senhora da Imaculada Conceição na cidade de Matias Cardoso, Minas Gerais.


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