Na língua tupi, caipira é sinônimo de “morador do mato”, mas também significa uma pessoa tímida. Um dos maiores expoentes da cultura caipira, entretanto, não é uma coisa nem outra. Rolando Boldrin, 70 anos, conhecido por seus programas de valorização da cultura popular brasileira, grande declamador de poemas regionais e contador de causos, não tem nada de tímido e nunca morou no mato. Descendente de italianos vindos da cidade de Pádua, Boldrin nasceu em São Joaquim da Barra, interior de São Paulo, e é um dos 12 filhos de um mecânico e uma dona-de-casa. Estudou até a terceira série do curso primário, o suficiente para que se tornasse um dos grandes conhecedores da cultura brasileira e um intelectual autodidata. E popular. “Desde garoto eu presto muita atenção nas ações, nos tipos humanos. Sempre amei esse jeito do nosso povo, por isso conto histórias de tipos humanos brasileiros.” Essa capacidade de observação tornou-se mais completa numa cidade pequena: “O juiz conhece o leiteiro, o leiteiro conhece o delegado, há essa convivência”.
Foi em São Joaquim da Barra que ele entrou em contato com os legítimos caipiras e percebeu a essência da música feita por eles. “O artista caipira sempre vai pro lado emocional. Ele valoriza o cachorro, passa o amor que tem por um cão, por uma egüinha, pelo lugar onde mora. Exalta o amor que tem por um pé de ipê, de manga, pela cerca de bambu.” Emoção, aliás, que Boldrin levou aos seus programas de televisão. Em todos eles – Som Brasil na Globo, Empório Brasileiro na Bandeirantes, Empório Brasil no SBT, Estação Brasil na Gazeta e agora Senhor Brasil, na TV Cultura -, sempre fez questão de reafirmar sua condição de brasileiro e seu amor ao País, seja nas suas declamações, nos causos divertidos ou nas músicas.
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Menino atrevido
“Boy”. Este era o apelido de Boldrin quando criança. Estranho para alguém tão brasileiro. Na década de 1930, o gênero bangue-bangue estava no auge no cinema, e seu pai era um grande apreciador dos filmes estrelados por Buck Jones, Tom Mix e Hopalong Cassidy – grandes personagens dos filmes de faroeste. Por isso, ele costumava apelidar os filhos com os nomes dos heróis ou dos atores. Rolando, desde criança, tinha os cabelos brancos como os de William Boyd, que fazia o papel de Hopalong Cassidy. Daí, o apelido “Boyd”, que acabou virando “Boy”. Desde moleque, Boldrin dava sinais de sua vocação artística. “Aos seis anos já gostava de música brasileira.” E olha que ele nem tinha rádio em casa, costumava ouvir as músicas nos circos que passavam pela cidade. Gostava das canções de Catulo da Paixão Cearense, autor do clássico caipira Luar do Sertão.
O pai levava o menino para cantar na oficina, onde era aplaudido com entusiasmo pelos mecânicos. Ainda criança formou uma dupla com o irmão “Formiga” – o único a não receber apelido “de artista”. Além de ser um incentivador, seu Amadeu tornou-se empresário e propagandista dos filhos. Levava os meninos para se apresentar em quermesses ou em qualquer lugar onde tivesse um palco, até começarem a se apresentar na rádio local.
Cidade grande
Boldrin sonhava. Sabia que ia ser artista e que seu destino era São Paulo, a capitá. Quando o irmão “Formiga” decidiu abandonar a dupla, ele, então com 16 anos, resolveu ir atrás de seu sonho. Seu pai o estimulou mais uma vez: “Tem só duas profissões que dão dinheiro neste mundo: jogador de futebol e artista. Você não tem queda pra jogar bola, então…”. Mas as coisas não foram como ele esperava e durante quatro meses Boldrin dormiu nas ruas, situação que o fez voltar para casa. Lá, não deu o braço a torcer. Quando perguntavam sobre seu sumiço, contava que estivera na cidade grande, que andara de bonde, mas nunca sobre suas dificuldades. Dois anos depois, em 1954, voltou para São Paulo. Dessa vez, em Quitaúna, no atual município de Osasco, para servir no Exército, onde conheceu um aspirante que mais tarde viraria um dos principais líderes da guerrilha contra a ditadura, Carlos Lamarca.
Terminado o serviço militar, entre idas e vindas para São Paulo, Boldrin passou em um teste na TV Tupi, mas a grande virada veio em 1966, quando estreou no teatro com o famoso grupo Oficina. Era um papel importante na peça Os Inimigos, de Máximo Gorki. Em 1968 ingressou no grupo Arena, atuando em montagens como Feira Paulista de Opinião, num período em que o Comando de Caça aos Comunistas (CCC) invadia teatros e espancava artistas. A partir daí, começou também a trabalhar como ator na televisão. Fez 25 novelas, entre elas Os imigrantes, de Benedito Ruy Barbosa, na TV Bandeirantes.
Multiartista
Apesar da dedicação como ator, Rolando Boldrin não conseguia abandonar seu amor pela música. A decisão de largar definitivamente as novelas surgiu diante da possibilidade de criar um programa musical diferente, o Som Brasil, na TV Globo, em 1981. Um programa que não tivesse só samba, que naqueles tempos costumava se impor sobre os outros gêneros brasileiros. Rolando Boldrin queria música gaúcha, nordestina, caipira… E com uma inovação: a “contação” de causos. Esse tipo de atração já existia no rádio, mas não na televisão. Ele orgulha-se de ter sido o primeiro a levar os causos para a televisão.
Esse novo formato de programa, do qual participavam desde cantores consagrados do grande público, como Chitãozinho&Xororó, até artistas regionais – todos recebidos com a mesma atenção e entusiasmo por Boldrin e sua platéia -, foi levado por ele a outros canais e hoje está no ar pela TV Cultura. O charme do programa é o improviso e a informalidade, como se Boldrin e seus convidados estivessem sentados na varanda de um sítio em algum lugar deste imenso País. Quem vai à gravação do Senhor Brasil, nas noites de segundas-feiras, se surpreende ao ver que ali não existe roteiro. Antes do início, a produtora Patrícia Maia explica ao público como funciona o programa, ao mesmo tempo em que apresenta as peças do cenário, geralmente objetos da cultura brasileira produzidos por pessoas que participam de movimentos sociais. São peças de artesanato de barro, redes, pássaros de madeira (até um em que o próprio Boldrin pintou a bandeira brasileira e aparece na abertura do programa) e até tapetes feitos por um grupo de caminhoneiras aposentadas.
Nas paredes, retratos e pinturas dos vários artistas homenageados ou que passaram pelo seu programa, como Elis Regina, Adoniran Barbosa, Ary Barroso, Lupicínio Rodrigues e Tom Zé. Muitas vezes, ele abre seu programa, também dirigido por ele, declamando poesias caboclas. Ou ainda cantando, contando causos e tocando viola e violão. Como existe hoje o profissional “multimídia”, ele poderia ser chamado de profissional “multiarte”. Mas não se considera poeta, compositor, cantor nem violeiro. “Não sou nenhum Chico Buarque ou Noel Rosa, mas fui feliz em algumas obras, que saíram bonitas, sem falsa modéstia. O tema do meu programa, por exemplo, é meu. Eu acho bonito.” Como cantor, ele diz ser um ótimo dançarino. “Eu não sou cantor. Sou cantadô“, diz com pronúncia caipira. Poderíamos completar: decramadô, violero, apresentadô.
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