Na Zona Sul de Porto Alegre, o advogado trabalhista Carlos Franklin Paixão de Araújo conecta o presente com o passado. As duas tevês de 42″ ligadas no modo silencioso exibem duas de suas paixões: o esporte e a política. Uma jogada do Kaká no Real Madrid (não, não é a jogada do pênalti perdido contra o Bayern) o faz acionar o som de um dos aparelhos. A imagem da presidenta Dilma Rousseff na outra tevê mobiliza pouco depois o mesmo movimento. Araújo costuma ocupar a cabeceira de uma mesa retangular para dez pessoas. Outras quatro mesas menores, redondas, se espalham pela sala de estar. Em uma delas, pilhas de livros refletem outra paixão do advogado: Getulio Vargas (1882-1954). De seis meses para cá, Araújo decidiu aprofundar suas pesquisas sobre o presidente que colocou fim à República Velha. Para o advogado, os problemas do Brasil na era Vargas continuam atuais. “O que está em jogo é como o capitalismo deve se desenvolver no País”, afirma. “O velho Getulio dizia que o capitalismo brasileiro deveria ser autônomo do internacional. Ele queria ter as rédeas do processo.”
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Ao ler para a Brasileiros o discurso feito pelo estadista gaúcho em 1930, quando assumiu o Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, Araújo comenta alguns trechos. Assim que Vargas menciona a “difusão extensiva do ensino público, principalmente técnico profissional”, o advogado compara: “Parece a Dilma falando”. No trecho do discurso que fala em promover um “saneamento moral, extirpando todos os agentes de corrupção”, ele se entusiasma: “Interessantíssimo!”. Na sequência, perante a referência de Vargas à necessidade de se criar um conselho consultivo, composto por personalidades eminentes, “integradas na corrente das ideias novas”, Araújo lembra uma iniciativa do governo Luiz Inácio Lula da Silva: “É como o conselho que Lula criou”.
Aos 74 anos, o advogado respira política. Nada mais coerente com a trajetória de quem cresceu sonhando em ser de esquerda como o pai, participou da Juventude Comunista na adolescência, integrou o comando de uma organização armada contra a ditadura militar, sobreviveu à tortura, passou quase quatro anos como preso político e exerceu três mandatos pelo PDT na Assembleia do Rio Grande do Sul. Hoje, ele tem a atividade restrita por um enfisema pulmonar, mas não deixa escapar nenhum episódio do cenário político. De tempos em tempos, é derrubado por alguma complicação respiratória. Foi o que aconteceu no começo de fevereiro, quando precisou passar uma temporada no hospital. Paciente participativo, o advogado acompanha de perto as pesquisas da área médica e decretou a aposentaria dos antiquados cilindros de oxigênio que mantinha perto de si. Agora, quando precisa inalar oxigênio suplementar, usa um aparelho discretíssimo, alimentado a bateria. “Foi fabricado para viagens de avião”, explica.
O aparelhinho de oxigênio o acompanhou na última viagem de férias, na virada do ano, para a base naval de Aratu, no litoral baiano. O destino foi escolhido pela presidenta Dilma, que logo depois do Natal no Palácio da Alvorada seguiu para a propriedade da Marinha. Além de Araújo, com quem a presidenta foi casada por mais de 25 anos, passaram férias na base de Aratu a filha dos dois, Paula, o neto, Gabriel, e o genro Rafael Covolo. A mãe da presidenta, Dilma Jane, e a tia, Arilda, também integraram o grupo, assim como a arquiteta Ana Meira, atual companheira de Araújo. Professora de arquitetura e urbanismo e diretora do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) no Rio Grande do Sul, Ana mantém ótimo relacionamento com a presidenta. “Isso para mim é fundamental”, confidencia o ex-marido de Dilma.
Única filha da presidenta, a procuradora do Trabalho Paula, 36 anos, tem dois irmãos por parte de pai. O mais velho, Leandro, 50 anos, também é procurador do Trabalho. É filho do primeiro casamento de Araújo. O caçula, Rodrigo, 16 anos, é filho de outro relacionamento do advogado. Há pouco tempo, Rodrigo emocionou o pai ao presenteá-lo com uma coletânea de fotografias dos tempos de deputado. Na família ampliada do advogado, todos se dão bem, mas hoje em dia ninguém rivaliza em atenção com o pequeno Gabriel, nascido em setembro de 2010, na reta final da campanha presidencial. A chegada do garoto, a quem o avô costuma se referir como “comandante”, mudou até o visual da casa à beira do Guaíba. Um dos cômodos foi transformado em quarto de brinquedos. Na parte externa, a pequena piscina ganhou cerca e um gramado lateral virou parquinho, com direito a casinha, escorregador e gangorra de madeira.
Antes mesmo de começarem as reformas para o “comandante” Gabriel, Araújo havia superado a fase de angústia que viveu durante a campanha eleitoral, quando achava que sua obrigação era estar “ao lado da Dilma, dando suporte”, mas não tinha condições de saúde para a empreitada. Durante a campanha, em particular nos dias de votação do primeiro e segundo turnos, viu sua casa cercada por jornalistas de todas as partes do País. Afinal, era ali que a ex-mulher, com quem mantém estreitos laços de companheirismo e cumplicidade, aparecia para almoços e jantares, muitas vezes preparados sob a supervisão da arquiteta Ana. Também foi ali que a mãe da então canditata, Dilma Jane, e a tia Arilda se abrigaram, embora tenham casa em Belo Horizonte e apartamento no Arpoador, no Rio. Em Porto Alegre, a cobertura de Dilma fica na mesma região que a casa de Araújo, assim como o apartamento de Paula, mas foi na casa de Araújo que dona Dilma Jane e sua irmã Arilda passaram semanas blindadas das baixarias da campanha eleitoral, principalmente quando a guerra religiosa recrudesceu.
A casa à beira-rio reflete muito da história de Araújo. Construída em 1973 por seu pai, o advogado trabalhista Afrânio Araújo, é uma edificação confortável e sóbria, que se espalha por 220 m2. Quando mudou-se para o bairro, Afrânio morava com a família do outro lado da mesma avenida, mas vivia encantado com o terreno em frente, banhado pelo Guaíba. O proprietário se recusava a vendê-lo “para um comunista”, embora o potencial comprador já fosse dono de uma das mais respeitáveis bancas de advocacia de Porto Alegre. Com a intermediação de um amigo, Afrânio conseguiu driblar a resistência e construir a casa que sonhava. Ao lançar os alicerces, não imaginava que de lá avistaria um dos cárceres nos quais seu primogênito cumpriria pena por subversão. Muito menos que um dia chegaria para morar com a família uma moça mineira recém-libertada do Presídio Tiradentes, que no futuro se tornaria presidenta da República. Mas foi assim que aconteceu.
Depois de dois anos e dez meses de cadeia em São Paulo, Dilma passou algumas semanas com a família em Belo Horizonte e, em seguida, instalou-se na casa dos sogros. “Está vendo aquelas pedras brancas?”, pergunta Araújo para a reportagem da Brasileiros, apontando para o meio do rio. “Era lá que ficava o presídio”, diz. “As paredes eram de pedra, com um metro de largura.” Na ilha de 4,5 mil m², a construção havia servido como depósito de pólvora na época do Império. Abrigava cerca de 50 presos políticos quando Araújo desembarcou da barca da polícia que fazia a travessia do continente à ilha, em agosto de 1973, depois de passar por várias prisões da ditadura. A história do advogado estrábico de 35 anos, fumante compulsivo e apreciador de um trago, havia começado na pequena São Francisco de Pádua, na serra gaúcha.
Meia hora antes de Araújo nascer, a única parteira da cidade havia ajudado a trazer à luz o primogênito do juiz de Direito Eloy da Rocha. Araújo também foi o primeiro dos três filhos de Afrânio e sua mulher, Marieta. Depois dele, vieram Paulo e Luiz Eron. Quando garotos, os três irmãos costumavam ficar ouvindo por frestas de portas fechadas as conversas do pai com um agrimensor que combatera na Guerra Civil espanhola. “Os dois eram os únicos comunistas da cidade. De noite, saíam para fazer pichamento. Quando fiquei um pouquinho maior, perguntei para o pai: ‘Para que fazer pichamento à noite, no meio da serração? Deviam fazer de dia. Todo mundo sabe que são vocês dois’.”
O criticismo era só aparente. Araújo cresceu se espelhando em Afrânio: “Como eu admirava meu pai, queria ser comunista como ele. Quando nos mudamos para Porto Alegre, tratei de entrar para a Juventude Comunista”. Poucos anos depois, em 1957, ele era um dos 11 gaúchos que integraram a delegação brasileira para o Festival da Juventude de Moscou, que reuniu 34 mil rapazes e moças de 131 países na extinta União Soviética. “Nós, gaúchos, não tínhamos dinheiro. Éramos pelados. Fomos de navio, para ficar mais barato, e nos encontramos lá com a delegação”, lembra Araújo. “O Nikita Kruschev era o secretário-geral do partido comunista. O primeiro-ministro era o Nikolai Bulganin, que andava pela cidade num cavalo branco.”
Antes de embarcar para Moscou, Araújo e seus amigos haviam lido no jornal O Estado de S.Paulo sobre as denúncias de genocídio feitas por Kruschev contra o antigo dirigente soviético Josef Stalin, durante os grandes expurgos da década de 1930. “Fomos para cima do partidão, para discutir as denúncias e disseram que aquilo não havia acontecido. Falaram que era coisa da imprensa burguesa, que estava nos envenenando.” Em Moscou, Araújo encontrou a população dividida sobre o tema. “O pau estava quebrando. Muita gente era a favor de Stalin. Outra parte queria apurar a verdade.”
De volta a Porto Alegre, a turma de Araújo rompeu com o Partido Comunista. “A gurizada toda saiu. Criamos um centro de estudos e debates. Começamos também um forte trabalho de base em associações de bairro e no movimento sindical.” Com 22 anos, Araújo seguia nesse ritmo quando foi convidado pelo governo cubano para visitar a ilha. “Até hoje não sei por que fui convidado. De Porto Alegre, convidaram a mim e a outros dois caras. Um deles era um conservador progressista da UDN Bossa Nova (grupo que defendia a renovação do partido), que depois veio a ser governador do Estado durante a ditadura, o Sinval Guazzelli. Um cara muito aberto, com quem Dilma e eu tivemos boas relações. O outro convidado era o Adroaldo Streck, meu colega de turma na faculdade. Um cara de direita, que depois foi deputado federal. É jornalista até hoje. Não entendi nada quando vi os dois no avião.”
Afrânio custeou a viagem do filho até o Rio e deu-lhe uma pequena quantia em dinheiro. Afinal, como convidado do governo cubano, Araújo não teria despesas após embarcar no avião cubano, no Rio. Na verdade, eram dois aviões, que pararam em Recife (PE), no começo da madrugada, para abastecer e embarcar mais cinco convidados. “Naquela época, todo mundo tinha de descer para o avião ser abastecido.”
Um baixinho chamado Julião
Ele estava no saguão do Aeroporto dos Guararapes, quando começou uma gritaria. “Xingavam o embaixador cubano, com quem eu tinha conversado no voo do Rio para Recife. Um troço altamente ofensivo. Fiquei com uma vergonha imensa… É que tinham convidado cinco pessoas de Recife e só havia quatro lugares no avião. Virei para o embaixador e disse que não precisava ir a Cuba para amar Cuba. Só fiz uma ressalva. Eu não tinha dinheiro para voltar para o Rio. Poderia dormir no aeroporto mesmo, mas, no dia seguinte, alguém teria de me arrumar uma passagem. Aí, um baixinho falou: ‘Isso aí é comigo. E não vai dormir no aeroporto não. Você vai comigo para a minha casa’.”
Pouco depois, Araújo se deu conta de que o baixinho era o advogado Francisco Julião, famoso como líder das Ligas Camponesas, um movimento que sacudiu o Brasil em defesa da reforma agrária. “Meu Deus, isso caiu do céu. Era o cara que eu mais queria conhecer”, pensou Araújo, de acordo com o seu relato, mais de meio século depois. O fato é que, instalado na casa do líder dos camponeses, Araújo nem perguntou pela passagem aérea. Incorporou-se ao movimento e, nos anos seguintes, viajou com Francisco Julião por todo o Brasil e América Latina. Com o mitológico líder, ajudou a levar o movimento para o Rio Grande do Sul, na época em que Leonel Brizola era governador. Antes, ao lado de outras lideranças da “gurizada” que abandonara o Partido Comunista, ele já havia tido contato com Brizola. “Ele não negava nada que a gente pedia para as associações de bairro. Mais tarde, trabalhamos juntos, num movimento chamado Master”, completa, referindo-se ao Movimento dos Agricultores Sem Terra do Rio Grande do Sul.
Quando os militares tomaram o poder, em março de 1964, Araújo estava em Porto Alegre, atuando no escritório de advocacia do pai. Um mês depois do golpe, os militares mandaram prender dezenas de pessoas na capital gaúcha. Um dos endereços visados pela polícia política foi o escritório de Afrânio. Sobrou até para Paulo, o filho do meio, que ao contrário de Araújo e do caçula Luiz Eron, não se interessava por política. “Escritório de advocacia tem muito papel. Quando a repressão chegou, avisou para os clientes que não poderiam sair. Cada cara que batia na porta, os policiais colocavam para dentro. E eles tiraram os casacos, ficaram com os revólveres aparecendo. Estavam trabalhando, revirando os papéis do escritório. Quando o meu irmão Paulo chegou e viu aquilo, sem saber que eram policiais, perguntou: ‘Vocês já estão fazendo reunião armados?’. Foi preso na hora. Coitadinha da mãe, quando avisaram para ela que o marido e os três filhos estavam presos, ela se preocupou. ‘Mas eu não preparei colchões para tantos!’.”
Marieta devia estar acostumada com os percalços do marido e dos filhos. Afinal, a primeira prisão de Araújo foi aos 14 anos, durante um encontro de secundaristas. “Coisa de poucas horas, um refresco aos olhos de hoje.” Na época do golpe, a cadeia também não chegou a ser dura. Paulo saiu antes de uma semana. Araújo, o pai e o caçula ficaram um mês fora de circulação. “Na hora de soltar, faziam umas perguntas. Para o pai, que era um advogado muito respeitado, o delegado perguntou como havia sido o tratamento policial. ‘Eu não gosto de polícia nem na União Soviética’, respondeu o pai. Isso ficou famoso aqui em Porto Alegre. Anos depois, como deputado, ouvi esses policiais em uma comissão na Assembleia. Não eram investigados. Eram colaboradores. E eles ainda contavam essa história.”
Com os militares no comando, começaram a surgir em todo o País movimentos de resistência à ditadura. Não foi diferente em Porto Alegre, onde o grupo de Araújo atuava no movimento operário, mas queria entrar para a luta armada. Faltava, porém, se articular com organizações de outros Estados. A situação mudou no começo de 1969. “Consegui um contato com o pessoal do COLINA (Comando de Libertação Nacional), de Belo Horizonte, e marcamos uma reunião no Rio. Foi nessa reunião que eu conheci a Dilma. Ela estava lá, clandestina.” Na segunda reunião, Dilma e Araújo começaram a namorar. Ela tinha 21 anos, ele era nove anos mais velho. Casada desde os 19 anos com o jornalista mineiro Cláudio Galeno, Dilma contou em seguida para o marido que estava com Max, o codinome usado por Araújo. O primeiro casamento da futura presidenta acabou de forma civilizada. Anos depois, quando Galeno voltou do exílio, foi justamente na casa de Dilma e Araújo que encontrou abrigo até reestruturar a vida no Brasil. Estava acompanhado pela mulher, a nicaraguense Mayra, e pelas filhas Iara e Ana.
Muito antes do retorno dos exilados, quando Araújo conheceu Dilma, as organizações que optaram pela luta armada estavam se reorganizando. Em junho de 1969, no decorrer de um congresso clandestino realizado em Mongaguá (SP), houve a fusão do COLINA com a VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), de Carlos Lamarca, o capitão do Exército que desertou carregado de armas para combater os generais instalados no Planalto. “Queríamos colocar um nome que tivesse vínculos nacionais. O nome que propusemos foi Palmares, por causa de Zumbi dos Palmares. Então, ficou Var-Palmares (Vanguarda Armada Revolucionária Palmares).” No mês seguinte, a organização executou a chamada Ação Grande, o roubo de US$ 2,5 milhões do ex-governador paulista Adhemar de Barros, em poder de sua amante, Anna Capriglione.
Araújo e Dilma não participaram diretamente da ação. “Tinha divisão no comando. Um pessoal participava da parte armada e o outro do trabalho urbano. A Dilma e eu participávamos do trabalho urbano. Nunca participei de nenhuma ação armada. Não teria restrição em participar, mas minha função era organizar o grupo pelo Brasil. E isso eu fazia.” A fusão com o grupo de Lamarca durou pouco. Por causa de divergências internas, a organização rachou em setembro. Uma parte reconstruiu a VPR, outra ficou na Var-Palmares, que tinha Araújo entre os integrantes do comando nacional. Dilma foi indicada para a coordenação regional em São Paulo, onde acabou presa, em janeiro de 1970.
Ponto com o capitão Lamarca
Sete meses depois, Araújo também foi preso, ao descer de um táxi, em frente à sede do Palmeiras, em São Paulo. “Comecei a apanhar ali mesmo, na rua.” Pouco antes, havia descido do mesmo táxi a atriz Bete Mendes, estrela da telenovela Beto Rockfeller, o maior sucesso da TV Tupi naqueles tempos. “Eu não assistia novela nem conhecia o nome verdadeiro dela. Sabia apenas que era uma pessoa muito conhecida, que precisava se descaracterizar para se encontrar com o nosso grupo. Ela queria comandar uma ação para desapropriar armas de um colecionador paulista.” Levado para uma sala de tortura na sede da Operação Bandeirantes (OBAN), Araújo teve medo de não resistir às sevícias e acabar confessando informações que levariam a outras prisões. Preocupava-se em especial com a segurança do músico Raul Ellwanger, também clandestino, com quem dividia uma casinha na periferia de São Paulo. “Aprendi logo que essa história de que somos fortes, de que todo mundo aguenta a tortura, é fantasia. Quando chega na hora do vamos ver, todo mundo está despreparado. Com medo de não aguentar muito tempo, inventei que tinha um ponto com o Lamarca na manhã seguinte, numa rua da Lapa. Chegando lá, me joguei diante de uma Kombi.”
Internado no Hospital das Clínicas (HC), ele recebeu a “visita” do capitão Benone Albernaz, que fez questão de contar que havia torturado Dilma. Depois de alguns dias no HC, Araújo voltou para a OBAN e passou pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). Um dia, avisaram que ele seria levado para o Rio. Dentro de um camburão, viu Dilma pela primeira vez depois da prisão, em outra viatura da polícia. “Só então soube que íamos para uma audiência, na 1ª auditoria da Justiça Militar.” Durante essa audiência foi tirada uma fotografia que correu mundo no final do ano passado, publicada no livro A Vida Quer é Coragem – A Trajetória de Dilma Rousseff, a Primeira Presidenta do Brasil, de Ricardo Batista Amaral. Na imagem, Dilma, aos 22 anos, aparece no tribunal, sentada, toda altiva, enquanto os militares, seus inquisidores, escondem o rosto. “Na minha foto não aparecem os pés, mas eu estava descalço. Também não usava cinto. Quando me levantava, tinha de segurar as calças.”
Sentença proferida, Dilma volta para São Paulo, enquanto Araújo é levado para o Aeroporto Santos Dumont, no Rio. “Dentro do hangar, me deparo com uma coisa estarrecedora. Dois terços do pé-direito, estava dividido em andares, tudo em ferro. Pareciam jaulas, cheias de homens. Não eram presos políticos. Eram militares. Nós, presos políticos, éramos seis, e ficamos em uma cela convencional. O major responsável pela prisão não era da repressão, trabalhava no Santos Dumont. Ele fez conosco um acordo de que poderíamos ter livros, bebidas, o que quiséssemos, desde que não tentássemos fugir nem jogássemos uma bomba no aeroporto. Não me recordo do nome dele, mas foi uma pessoa maravilhosa. Gostaria muito de reencontrá-lo. Joguei muito xadrez com ele. Estudei muito naquela cela. Só não tinha lugar para tomar banho de sol, a não ser na cabeceira da pista, com os aviões lançando óleo em cima de nós, mas de vez em quando a gente ia.”
Dessa peculiar dependência do Santos Dumont, Araújo mandou uma carta para Dilma, que continuava enclausurada no Presídio Tiradentes. Escrita com letras miúdas, em uma tira fininha de papel de seda, a carta foi depois dobrada e colocada dentro de um chiclete mastigado. Como portador, Araújo contou com o advogado Virgílio Enei, que defendia diversos presos políticos. Foi no Santos Dumont também que ele conheceu a mãe de Dilma, para quem havia mandado uma carta. “No próximo dia de visita, ela chegou de Belo Horizonte para me conhecer. Adoro ela. Somos muito unidos.”
Passados alguns meses, a rotina “mansa” de Araújo no Santos Dumont terminou. Primeiro, ele foi transferido para o Presídio Tiradentes, em São Paulo. Depois, para a prisão da Ilha das Pedras Brancas, aquela que se pode ver da casa na qual mora. “A 800 m daqui tinha um pequeno cais, de onde saía a barquinha da polícia. As visitas eram às quartas-feiras à tarde e aos domingos, o dia inteiro. Mas Dilma teve de esperar seis meses para me visitar, depois que chegou a Porto Alegre. Isso só aconteceu depois que consegui uma audiência no comando do III Exército.”
A liberdade de Araújo demorou um pouco mais e acabou conquistada na sequência de um episódio dramático – a morte de Afrânio, seu pai, em junho de 1974. Havia meses que o julgamento de um recurso para a libertação de Araújo estava paralisado no Supremo Tribunal Federal. Faltava o voto do presidente do Supremo, que poderia empatar a questão e, nesse caso, o réu seria favorecido. Ocorre que o magistrado sofria pressões do regime para manter o preso atrás das grades. E, por uma dessas coincidências da vida, ele tinha sido amigo de Afrânio. Era Eloy da Rocha, o antigo juiz de Direito cujo filho havia nascido meia hora antes de Araújo, na pequena São Francisco de Paula.
Quando Araújo chegou ao velório do pai, algemado e cercado por policiais, a situação começou a mudar. “Lá estavam todos os juízes, os funcionários do tribunal, os amigos do meu pai, os meus amigos, a mãe, a Dilma. Eu não conseguia parar de chorar. Todo mundo começou a chorar. Um juiz se levantou e mandou tirar minhas algemas. A repressão nem deu bola. Não era juiz militar. Uma comissão foi conversar com um juiz militar, para eu ficar sem algemas no velório. Conseguiu também que eu passasse a noite em casa. De Brasília, o doutor Eloy telefonou, avisando que julgaria o meu recurso no dia seguinte, de qualquer jeito.” Terminou em empate, o que favoreceu o réu.
Livre, Araújo tratou de reconstruir a vida. Assumiu o escritório do pai, que em 2012 completa 60 anos de existência. “De lá já saíram 16 juízes e procuradores do Trabalho. E vão sair mais. Já virou tradição.” No campo político, Araújo saiu da cadeia convicto de que, na América Latina, mais do que partido, faz diferença a figura de um grande líder. “A opção era o Brizola ou o Lula. O Brizola já era um homem testado, o Lula estava começando. Embora eu gostasse muito do Lula, nosso grupo decidiu pelo Brizola, porque achava que nele teria uma via mais eficiente”, lembra, referindo-se a uma rede de ativistas, liderado por ele, que ficou conhecido em Porto Alegre como o grupo das alpargatas, por usar os tradicionais calçados de lona. Em 1978, ainda no exílio, Brizola convocou um congresso de socialismo trabalhista em Lisboa. “Foi quando ele lançou as bases do que seria o novo PTB. A Dilma e eu não participamos desse encontro, porque estávamos cheios de tarefas em Porto Alegre. Dois meses depois, fomos para lá e nos reunimos com ele. Eu vim embora, e a Dilma ficou um pouco mais na Europa. Queria ir a Londres, a Paris. Meu negócio era aqui.”
Dilma em primeiro lugar
Antes de embarcar para Lisboa, Araújo foi a São Bernardo do Campo convidar Lula para participar do encontro com Brizola. Lula preferiu permanecer em São Bernardo. De volta ao Brasil, Brizola acabou perdendo a sigla PTB para a deputada Ivete Vargas, sobrinha-neta de Getulio Vargas, o fundador do partido. Na sequência, Brizola criou uma nova sigla, o PDT, pelo qual Araújo foi eleito três vezes deputado estadual. Logo depois da redemocratização, Dilma também trabalhou na Assembleia Legislativa gaúcha, na assessoria do PDT, onde suas análises econômicas fizeram sucesso. Ela trocou o PDT pelo PT em 2001, quando era secretária de Minas e Energia do governador Olívio Dutra.
Araújo ainda mantém fortes vínculos com o PDT. Sua mais recente aposta é a deputada estadual Juliana Brizola, neta do antigo governador e irmã do recém-nomeado ministro do Trabalho, Brizola Neto (PDT-RJ). “Ela tem um potencial fantástico. É certo que vai ser um fenômeno. Até onde vai eu não sei, mas tem muita coragem. Puxou a avó, que era uma mulher firmíssima. A Neuza era mais firme do que o Brizola.” Até Negrão, filho de uma cadela que Dilma um dia achou na rua e levou para casa, parece partilhar do entusiasmo do advogado. Quando Juliana saía de uma recente visita de trabalho à casa à beira do Guaíba, o cão também a acompanhou até a porta.
De volta à cabeceira da mesa, Araújo deu uma conferida na agenda e pediu à assessora Mariane Leves confirmar um compromisso do escritório. Em fase boa de saúde, ele começa a receber os mais próximos na casa que por décadas serviu de cenário para reuniões políticas. Durante muito tempo, Araújo foi o polo mais magnético desses encontros. A situação se inverteu à medida que Dilma passou a despontar como um grande quadro do governo gaúcho. Hoje, com a performance fulgurante da presidenta no cenário nacional e internacional, tem-se a impressão de que ela ainda é a figura mais importante da casa, embora ausente. “Sinto o maior orgulho da Dilma. Para mim, ela vem em primeiro lugar, antes de filho, antes de tudo.” O comentário surge de forma espontânea durante a entrevista, assim como boa parte das histórias relembradas em seu depoimento de quase 15 horas à Brasileiros. Acostumado a dar as cartas do baralho, Araújo custa a disfarçar a irritação quando seu raciocínio é interrompido por uma pergunta pontual. Quase sempre, deixa para responder mais tarde. “Isso é outra história”, é a sua reação mais frequente nesses momentos. Revela-se, no entanto, de uma cumplicidade absoluta quando a repórter faz pausas na conversação para fumar um cigarro. Mesmo enfrentando um enfisema pulmonar, ele não discursa contra o tabagismo nem reclama de ter fumado por décadas: “Eu gostava”. I
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