A epígrafe acima leva a assinatura daquela que é considerada, por muitos, a maior escritora brasileira. Falsa modéstia ou pura provocação, esse depoimento de Rachel de Queiroz, no dia em que celebrou seus 90 anos, é um delicioso reducionismo de quem viveu muito e pouco se deslumbrou com a trajetória de grandes êxitos que empreendeu. Nessa mesma ocasião, a escritora – que muitas vezes preferia ser identificada como repórter ou jornalista – defendeu que, exceto aos romances O Quinze, As Três Marias, Dôra, Doralina, O Galo de Ouro e Memorial de Maria Moura, tudo o que produziu – incluindo-se aí a infinidade de crônicas e artigos escritos para a imprensa, desde os 19 anos – não lhe dava prazer algum de escrever, mas que eram atividades necessárias, pois precisava se sustentar. Rachel exerceu, de fato, um papel pioneiro na imprensa nordestina e brasileira, mas sua produção literária de ricas texturas sociais e o sem número de traduções que assinou – de Jane Austen a Dostoievski, de Emily Brönte a Balzac – são provas cabais de que sua grande paixão era mesmo a literatura. Primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras, e também a primeira a ser contemplada com o Prêmio Camões (o mais importante prêmio literário da língua portuguesa), Rachel nunca dissociou questões políticas de sua arte e vida e, por conta disso, tornou-se uma das mais controversas personagens de seu tempo.
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Nascida em Fortaleza, descendia do escritor José de Alencar, um primo distante de sua mãe Clotilde. Entusiasta do modernismo paulista, ainda adolescente, em 1925, assinou suas primeiras crônicas e poemas no jornal O Ceará, sob o pseudônimo Rita de Queluz. Em 1930, com o apoio dos pais, que custearam a primeira impressão de mil cópias, debutou com o romance O Quinze, focado na luta constante do nordestino contra a seca e suas mazelas. Um rito cíclico de fome e miséria, que muito indignava a jovem autora cooptada pela ideologia socialista. Dois anos antes de sua estreia literária, que ganharia o status de um marco do romance regionalista, Rachel passou a integrar a dissidência do Bloco Operário Camponês, em Fortaleza, e ajudou a formar o primeiro núcleo do Partido Comunista na cidade. Em 1933, ao ter o conteúdo de seu segundo romance, João Miguel, submetido à leitura dos companheiros e reprovado pelo Partido, decidiu abandoná-lo. Presa em 1937, após o decreto do Estado Novo, permaneceu encarcerada na sala de cinema do quartel do Corpo de Bombeiros de Fortaleza, por mais de três meses, sob a acusação de ser uma “agitadora comunista”.
A fama de insolência e subversão correria o nordeste e o País. Exemplares de seu romance Caminhos de Pedra – além de outros de Jorge Amado, Graciliano Ramos e José Lins do Rego – foram queimados em praça pública, na capital baiana. Frustrada com os rumos tomados pelo stalinismo, a morte grotesca de Trotski foi a gota d’água para Rachel, que abandonou de vez a causa socialista. Em 1964, surpreendeu a todos ao apoiar o golpe e a colaborar com o regime militar. Conterrânea e parente do general Castelo Branco, a convite dele integrou, em 1967, o Conselho Federal de Cultura, onde permaneceu até 1985. Ainda em 1967, ao retornar de uma das frequentes visitas que fazia à fazenda de Rachel – ironicamente chamada Não Me Deixes -, o primo Presidente morreu, em um desastre aéreo, e foi sucedido pelo temido general Costa e Silva. Eleita em novembro de 1977 como a primeira mulher a assumir uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, Rachel foi pressionada por feministas a rejeitar o convite, e saiu-se com essa: “Eu não entrei para a Academia por ser mulher. Entrei, porque, independentemente disso, tenho uma obra. Tenho amigos queridos aqui dentro. Quase todos os meus amigos são homens, eu não confio muito nas mulheres”.
Entre desafetos e admiradores, a obra de Rachel continua perpetuando no Brasil e fora dele. Em 1991, a editora Siciliano comprou os direitos de sua antiga editora José Olympio – com quem a autora teve uma harmoniosa relação de mais de cinco décadas – e relançou sua obra completa. No ano seguinte, Rachel produziu sua primeira obra ficcional para a nova editora, e alcançou grande êxito com o romance Memorial de Maria Moura. Adaptado, em 1994, pelos cineastas Carlos Gerbase e Jorge Furtado, para a Rede Globo, a produção, dirigida por Denise Saraceni, com Glória Pires como a cangaceira protagonista, rodou o mundo. Dublada em vários idiomas, foi exibida em países como Angola, Bolívia, Canadá, Guatemala, Indonésia, Nicarágua, Panamá, Peru, Porto Rico, Portugal, República Dominicana, Uruguai e Venezuela. Rachel morreu dormindo, em uma das redes de sua fazenda, aos 93 anos, no dia 4 de novembro de 2003. A cereja do bolo das celebrações de seu centenário será o lançamento, pelo Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro, da compilação de poemas Mandacaru, obra que precedeu o romance O Quinze e, por desejo da autora, permanecia inédita há 82 anos. A despeito de qualquer desgaste provocado por suas convicções políticas e outras polêmicas que suscitou, o pioneirismo de Rachel e sua obra, de contundente apelo humanista, falam por si.
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