Comenta-se a boca pequena entre os frequentadores assíduos de teatro que não há nada mais dolorido que assistir a um mau espetáculo. A situação normalmente é constrangedora: os atores estão ali, ao vivo, e você está rodeado por outros espectadores aflitos, passando pela mesma agonia. Isso não é bom para nenhum dos lados da tal da quarta parede. Quando a quarta parede deixa de existir e somos presenteados com um belo espetáculo, e esse é o caso de Till, a saga de um herói torto, do Grupo Galpão, nada pode ser mais estimulante. É no teatro ao ar livre, benfeito, que a plateia se comporta como cúmplice dos atores e tem, sem metáforas, o céu por testemunha. Puro prazer: a igreja chama isso de comunhão.
A Idade Média é a época em que vive a personagem principal, Till, um jovem que demorou anos para sair do ventre da mãe, por pura preguiça. Ele nasce sem inteligência e depois é desprovido da consciência, resultado de um acordo com o Diabo (Chico Pelúcio) para garantir sua sobrevivência, ao ser condenado à morte por uma de suas falcatruas. Fica difícil não comparar Till aos nossos heróis populares, Macunaíma, de Mário de Andrade, e Pedro Malasartes – que já foi personagem de ópera de Guarnieri com libreto de Mário de Andrade.
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Till Eulenspiegel é a versão alemã de Pedro Malasartes, personagem folclórico que ganhou em cada recanto do Brasil uma versão de sua história e, dizem, teve sua origem na Europa, onde cada país cultua os seus “Pedros” e “Tills”. Ou seja, em todas as culturas, onde há grandes diferenças sociais, podemos encontrar contos populares em que o pobre é o espertalhão e o rico é um tolo.
Apesar da distância histórica, Till está visceralmente ligado a todos os brasileiros dos dias de hoje, principalmente os que vivem na cidade de São Paulo e em outros grandes centros urbanos – onde estamos rodeados de moradores de rua que seguem perambulando por aí, tentando sobreviver de pequenos expedientes e aos golpes dos exploradores da miséria humana. Basta caminharmos por nossos elegantes bairros e alguém tem uma história para contar dos moradores a céu aberto.
Além do desaforado Till, vivido magistralmente por Inês Peixoto, e sua mãe, incorporada por Teuda Bara – atriz mineira das mais cultuadas -, um trio de cegos diverte e emociona a plateia com as suas peregrinações em busca das Cruzadas de Jerusalém. São eles os protagonistas de uma das mais belas cenas, escrita por Luis Alberto de Abreu, em que Alceu (Simone Ordones), ferido mortalmente em uma batalha pede ao amigo Borromeu (Antonio Edson) que o beije para que não morra sem conhecer a sensação de ser beijado. Isso resulta em uma breve pausa na luta de classes vivida pelo povo e encabeçada pela consciência de Till, que vaga independentemente do seu corpo. Mas como nas guerras que vivemos, o impacto do ato tem curta duração.
Além dos atores já citados, todos os participantes do Grupo Galpão dominam a cena com maestria e dedicam-se não somente à atuação como à execução de instrumentos que nos remetem aos sons envolventes e bem-humorados da Orquestra para Funerais e Casamentos de Goran Bregovic – que ficou conhecido pela trilha sonora de Borat.
A nova montagem do Grupo Galpão, que retorna à linguagem de teatro de rua, é primorosa. Para os que tiveram a sorte de ter assistido à versão de Romeu e Julieta, do mesmo grupo, espetáculo que povoou durante anos o imaginário dos amantes do bom teatro como uma das mais belas montagens do clássico de Shakespeare, é como se um retorno no tempo nos tivesse brindado com as mesmas emoções. Muito humor, luta pela sobrevivência e momentos de extrema emoção e beleza.
Till, a saga de um herói torto já se apresentou no Rio de Janeiro, em várias cidades de Minas Gerais, em São Paulo, e seguirá sua turnê pelo Brasil e pelo mundo. Esperemos que como em Romeu e Julieta e A rua da amargura, obras-primas da companhia mineira, esse novo trabalho permaneça em cartaz por muito tempo para que possa atingir a um público ainda maior do que os mais de 50 mil expectadores que já o assistiu.
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