O cinema segundo Nelson

Marcos Pinto

Aos 83 anos, o cineasta paulistano Nelson Pereira dos Santos vive a rotina extenuante de cabines de imprensa, pré-estreias e um sem-número de entrevistas para a divulgação nacional do aclamado documentário A Música Segundo Tom Jobim, um comovente testemunho audiovisual da obra universal do maestro carioca, assinado por ele e Dora Jobim, neta de Tom. O filme rendeu uma continuação, A Luz do Tom, reunindo depoimentos de três mulheres importantes na vida do maestro: a irmã Helena, a primeira mulher, Thereza, e a segunda, Ana. O longa está previsto para estrear no final do primeiro semestre. Inquieto, Nelson ainda pretende iniciar neste ano as filmagens de seu novo projeto ficcional, dedicado a um dos grandes símbolos da história do País, o imperador D. Pedro II.

Com uma frenética agenda, o autor de clássicos da nossa cinematografia, como Rio 40 Graus, Vidas Secas e Memórias do Cárcere, nos concedeu a entrevista a seguir, que seria feita por e-mail – sim, Nelson também é um entusiasta dos meios eletrônicos –, acabou sendo registrada por telefone, ao longo de meia hora, de forma objetiva e lúcida. O cinema parece trazer a ele uma eterna juventude (Nelson, imortal desde 2006, ocupa a cadeira número 7 da Academia Brasileira de Letras). É essencialmente sobre o cinema brasileiro, suas próprias experiências e impressões da indústria que ajudou a estabelecer que ele fala com entusiasmo.


Brasileiros –
Quando você se envolveu com o Cinema Novo, já havia feito filmes importantes, como Rio 40 Graus e Boca de Ouro. Como se deu essa aproximação?
Nelson Pereira dos Santos – Quando fiz Vidas Secas, em 1963, já havia rodado outros quatro filmes. Fui cooptado por essa nova geração de cineastas, numa boa, pois defendíamos que o cinema brasileiro começasse a discutir a realidade social do País. Isso, na época, virou até moda. Todos procuravam dar alguma contribuição nesse sentido, pois havia também a situação política que exigia uma tomada de posturas. A pressão sob os intelectuais para lutar pela liberdade de expressão e contra a ditadura era muito grande. Mas o Cinema Novo não tinha um pensamento homogêneo, muito menos uma face única. Era um grupo de amigos que faziam cinema, cada um com suas próprias afirmações culturais, estéticas e políticas.

Brasileiros – Que conquistas essa geração trouxe ao cinema do País?
N.P.S. – Vejo como grande conquista – digamos, na falta de outra palavra – o fato de termos acabado com o enorme preconceito contra nossa própria realidade. Outro importante avanço foi a discussão étnica que propusemos, pois, no Brasil, pelo cinema que se fazia, era cabível concluir que não havia negros. Os poucos papéis dados a negros eram de empregados, como na Hollywood dos anos 1940. Personagens vinculados à realidade brasileira e sua problemática foram aparecer aqui somente com o Cinema Novo. Hoje, é fluente a presença e a variedade étnica na produção brasileira. Naquele tempo, havia certa censura do próprio mercado. Diziam: “Ah, mas esse filme não vai dar dinheiro, filme com negro não dá dinheiro”. Havia uma série de preconceitos, horríveis, felizmente superados.

Brasileiros – Havia também uma grande convergência de influências entre vocês…
N.P.S. – Leon Hirszman, Cacá Diegues, Ruy Guerra, Glauber Rocha e Joaquim Pedro de Andrade foram expoentes de uma geração cinematográfica. Minha turma era a do Neorrealismo italiano e do Buñuel. A geração deles surgiu sob a influência do Godard e de toda a Nouvelle Vague francesa. Hoje, temos um cinema pluralista, bem diferente dessa época, que reunia uns 15, 20 diretores em atividade. Só na escola de cinema da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que ajudei a fundar no século passado, saem 30 jovens formados por ano. Outras escolas de cinema do Rio, São Paulo, Porto Alegre e de quase todo o País também têm formado cineastas bastante capacitados.

Brasileiros – O que pensa sobre os embates estéticos entre o Cinema Novo e o Cinema Marginal, na transição da década de 1960 para os anos 70?
N.P.S. – Apesar da aparente anarquia, o Cinema Marginal promoveu avanços no plano estético e na expressão da linguagem cinematográfica por aqui, como fez a Nouvelle Vague na França. Influências essas que ainda estão impregnadas em nossa produção. É possível identificar tendências do Cinema Novo e do Cinema Marginal em muitas obras recentes, produzidas em todas as regiões do Brasil – nos filmes de Cláudio Assis e de Lírio Ferreira, por exemplo, dois jovens diretores de que gosto muito. Aliás, o cinema pernambucano tem uma personalidade fortíssima e essa é outra característica atual da nossa produção. Ou seja, ela deixou de ser feita apenas no eixo Rio-São Paulo. O cinema brasileiro, hoje, é tematicamente plural e expressa identidades regionais diversas.

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Brasileiros – Durante as décadas de 1970 e 80, o Estado subsidiou uma nova indústria, via Embrafilme, mas, paradoxalmente, esse foi um período em que o cinema brasileiro produziu muito e distanciou-se do grande público…
N.P.S. – Os anos 1970 foram um período de crescimento acentuado da indústria. Foram criados organismos de apoio oficial ao cinema, projetos ambiciosos, como o Conselho Nacional de Cinema, que incentivou o surgimento de empresas de produção, coprodução e distribuição. Na década de 1980, essa mesma indústria passou a ter complicações, decorrentes da enorme inflação e de nossa frágil economia e chegamos ao ponto em que o Collor assumiu a presidência e mandou fechar a Embrafilme. Apesar de todos os impasses, esse foi um período importante para a consolidação da nossa indústria, mas houve exageros na legislação, como a cota mínima de 180 dias de filmes brasileiros exibidos por ano no cinema e a obrigatoriedade de exibição de curtas-metragens. Os exibidores, para não pagarem pelo não cumprimento da lei, começaram a coproduzir qualquer porcaria. Uma aberração. Um erro político crasso e paternalista, que só ajudou a formar uma opinião pública contrária ao cinema brasileiro.

Brasileiros – Nos últimos dias, o sucesso mundial da música Ai Se eu Te Pego, do cantor Michel Teló, tem gerado constrangimento para muitos, por revelar uma faceta supostamente inculta do País. Você produziu filmes enaltecidos pela crítica, mas nunca teve problemas em lidar com a cultura de maior acento popular, como no filme Estrada da Vida, sobre a dupla Milionário e José Rico. O que pensa disso?
N.P.S. – Existe, sim, grande preconceito contra essa suposta “baixa cultura”. Eu “fui” paulista (Nelson nasceu em São Paulo, em outubro de 1928, mas vive no Rio de Janeiro desde os anos 1960), meu pai era caipira, do oeste de São Paulo, e gostava muito de música sertaneja. Meus irmãos mais velhos se achavam sofisticados, pois gostavam de música americana e não deixavam meu pai ouvir os programas de música caipira no rádio. Simplesmente, o censuravam. Quando me ofereceram o projeto do filme do Milionário e José Rico, fui ver a dupla cantar no Parque São Jorge (o extinto estádio do Corinthians, na Zona Leste de São Paulo), que estava lotado, com milhares de pessoas. Eu me lembrei do meu pai e vi que este era um dado cultural importantíssimo pela quantidade de pessoas que movia, a tradição e a história que carregava. Quando exibi o filme, fui criticadíssimo, malhado mesmo, mas ele rodou o País e fez grande sucesso.

Todos os tons

Em A Música Segundo Tom Jobim, Nelson Pereira dos Santos compõe um emocionante mosaico da obra universal do maestro carioca

Por Luiz Chagas

Revista Manchete
Frank Sinatra e Tom Jobim, nos Estados Unidos, em 1967

A simples notícia de que Nelson Pereira dos Santos fez um filme sobre Tom Jobim já provoca ansiedade. Afinal, é o encontro entre dois expoentes de nossa modernidade, ícones do Cinema Novo e da Bossa Nova, movimentos que, ao lado da construção de Brasília e a aparição de Pelé, modificaram para sempre o olhar sobre este País, até então conhecido como a “Terra do Zé Carioca”.

Para não sobrar nem pau nem pedra, Nelson realizou logo dois filmes no fim do caminho. O primeiro deles, já em cartaz, é A Música Segundo Tom Jobim, um desfile de suas canções mais famosas, e vem aí, com lançamento previsto para este semestre, A Luz do Tom, baseado no livro Antonio Carlos Jobim: Um Homem Iluminado, escrito por Helena Jobim, irmã do maestro.

Como o segundo filme terá depoimentos e Jobim era reconhecido como um grande papo, autor de comentários definitivos (“A melhor saída para o músico brasileiro continua sendo o Aeroporto do Galeão”), a continuação pode parecer mais atraente. Pode até ser. Mas em A Música Segundo Tom Jobim, a catarse é garantida.

Dora Jobim, que além de neta de Tom é sócia da Samba Filmes, atuou como codiretora do primeiro longa. Ao lado do pesquisador Antonio Venâncio e auxiliada pela tia Miúcha, que atuou como roteirista-conselheira, Dora escarafunchou o acervo familiar de filmes sobre o avô, acervos alheios e atravessou madrugadas navegando na internet atrás de imagens maravilhosas, alinhavadas pela edição de Luelane Correa. O músico Paulo Jobim, pai de Dora e diretor musical do filme, deu o parecer final sobre a qualidade acústico-musical dos vídeos e a magia se fez.

A história musical de Tom Jobim é contada em imagens atemporais. Assim, Gal Costa vem antes de Elizeth Cardoso e Adriana Calcanhoto interpreta Ela é Carioca, composta dois anos antes de ela nascer. Por uma triste coincidência, João Gilberto não aparece (aliás, surge rapidamente tocando violão para Elizeth, em trecho do filme Pista de Grama, de 1958), pois suas imagens estão sendo utilizadas para a produção de um filme sobre ele próprio. Mas o desfile é avassalador. Do dueto de Elis e Tom em Águas de Março, à precisão cirúrgica do piano de Oscar Peterson em Wave ou a dramaticidade de Judy Garland em Insensatez, o filme é só surpresas.

Nelson não utilizou palavras nem mesmo para identificar os artistas (o que ocorre, em detalhes e pausadamente, nos letreiros finais). Nelson preferiu mergulhar o público na emoção pura da composição e da interpretação, achando que as grifes poderiam atrapalhar. Bem-humorado, na entrevista coletiva, ele disse que a falta de letreiros é uma boa chance para os metidos exibirem seu conhecimento para as donzelas: “Ah, este é o Jean Sablon, aquele é o Sammy Davis Jr.!” A parceria de Tom com o letrista Newton Mendonça, que morreu precocemente aos 33 anos, ou as inúmeras interpretações de Garota de Ipanema, entre outros momentos, criam clareiras iluminadas no filme. Maravilhoso e ponto.


Brasileiros –
A Música Segundo Tom Jobim é essencialmente cinematográfico. Não traz depoimentos, legendas ou informação alguma que não venha de imagens e sons. Ao final, a célebre frase de Tom: “A linguagem musical basta”. Em que proporção o cinema, arte autônoma como a música, ainda basta para você, Nelson?
N.P.S. – Sim, o cinema também é uma arte livre, como a música. A minha formação, em todos os sentidos, seguiu uma linha clássica de ter um mínimo enquanto máximo. Fundamentalmente, para mim, conteúdo e forma caminham juntos no fazer cinematográfico. Posso expressar um conteúdo adaptando obras literárias ou partindo de roteiros originais, adotando diferentes linguagens, mas esse mesmo conteúdo pode ser feito de diversas formas. O conteúdo, por si só, já impõe uma determinada forma. Tudo isso, é claro, está dentro da minha cabeça, são conceitos que não existem fora do que eu estou pensando ou sentindo e sempre me preocupo com a forma ligada ao conteúdo para que ela não se exima, não fique separada. São, para mim, fundamentos indissociáveis.

Brasileiros – Que avaliação você faz da chamada Retomada do Cinema Brasileiro. Ela tem sido eficaz em retratar esse novo Brasil e resgatar nosso passado?
N.P.S. – Essa retomada comprova a vitalidade do cinema brasileiro, que havia sido arrancado da nossa história à força. Eu me lembro de uma crônica da Maria Lucia Dahl, naqueles tempos do Collor, em que ela dizia ter topado com uma nova vassoura, em casa, e percebeu que as cerdas tinham uma imagem dela. Eram feitas de filmes reciclados, que os fabricantes compravam como matéria-prima. Um testemunho claro de que acabaram mesmo com o cinema por aqui, mas, dali a pouco, houve um “Peraí! Não é bem assim…” E surgiu a Lei Rouanet. Em pouco tempo, o cinema brotou novamente no País. As margens do Rio São Francisco são caatinga pura, mas se você levar a água do rio até o solo, planta até uva! O cinema brasileiro também precisava desse pouquinho de água, de incentivo de capital e brotou de novo com mais fôlego e mais rico. A coisa mais bonita é ver, hoje, a pluralidade do nosso cinema.


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