O círculo misterioso

Há um mistério em Calçoene. Dali às margens do igarapé Rego Grande são 18 km de estrada poeirenta onde, em imagens justapostas, surgem terras florestadas, campos naturais, igarapés e raras casas cercadas por pastos. Tudo abrasado pelo sol, que deixa o tempo úmido e mormacento. O enigma se instala a partir de uma porteira. Ela se abre para uma paisagem em contraluz e cada vez mais vasta, mais imponente, na qual aos poucos se distingue, encimando um morro, um enorme círculo de pedras. Em um diâmetro de 30 m estão distribuídos 147 blocos de granito, alguns com 4 m de altura, pesando até 4 toneladas.

A visão é espetacular e, à medida que me aproximo, só penso no seguinte: como ele foi construído? De que jeito os homens ergueram aquelas pedras no meio da mata? O círculo domina a cena. Sua dimensão e a quantidade de pedras levaram os arqueólogos brasileiros a pensar que uma sociedade indígena relativamente complexa, com alta densidade populacional, habitou o Amapá muito antes da chegada dos europeus. Agora, esse conjunto de pedras maciças, com cerca de mil anos, vem atraindo a atenção de cientistas de todo o mundo.
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A comparação é inevitável, guardando-se as devidas proporções de tempo, história e dimensões: o conjunto lembra Stonehenge, o famoso círculo de pedras pré-histórico da Inglaterra. Por isso não fugiu ao apelido de Stonehenge Amazônica.

Diante de achados arqueológicos cada vez mais numerosos, e agora com a descoberta desse precioso tesouro histórico e visual, chegou a hora de corrigir a história de que nossa arqueologia é “pobre”. E de enterrar mais fundo o sentimento de inferioridade em pesquisadores ainda inconformados com o nosso passado indígena: acreditavam que era irrelevante, ao contrário dos vizinhos que podem evocar a tradição de altos impérios e civilizações, como dos Incas, Maias e Astecas.

Dito assim, simplesmente, pode parecer exagero, mas o fato é que, da maneira como as coisas são expostas, tudo flui. Quer ver? As mais antigas culturas ceramistas das Américas não se encontram no México dos Olmecas e de Tlatilco nem no Peru de Cupismique e Chavin, ou no Equador da cultura Valdivia, mas no Brasil. “No início de 1990, foram descobertas cerâmicas consideradas as mais antigas das Américas nos sambaquis de Tapeirinha, com 7 mil anos, e no sítio arqueológico de Monte Alegre, com 8 mil anos, ambos no Pará. A presença humana nessa região remonta há 11.300 anos”, resume o arqueólogo Eduardo Góes Neves, 45, do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. Mas, ao contrário de outras regiões, o terreno da floresta equatorial, muito úmido, afogou a identidade de sua civilização. Dela restaram, sobretudo, a cerâmica e as pinturas rupestres. Também do ponto de vista estético, poucos, em todo o mundo antigo, são exemplos de cerâmicas tão originais e harmoniosas quanto as urnas funerárias marajoaras, as urnas antropomorfas Maracá e as peças tapajônicas.

Voltamos ao essencial. Vejam como são as coisas: um dia, o cara toca fogo na floresta amazônica; no outro, entra para a história da arqueologia brasileira. Essa é a trajetória de Garrafinha, como gosta de ser chamado Lailson da Silva. Contratado no final de 2005 para atear fogo no mato – com o objetivo de ampliar a área de pasto para criação de búfalos -, deparou-se com essas enormes pedras. “Vixe, que é isso?” Quem também entrou na roda foi a arqueóloga gaúcha Mariana Petry Cabral, 35, que acabara de chegar ao Amapá, junto com seu marido e também arqueólogo João Saldanha, mas com outro objetivo: criar um projeto para implantação da área de arqueologia do Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Amapá (IEPA).

“Chegamos no início de dezembro daquele ano e dois dias depois, sem ainda desfazer as mochilas, nos liga superentusiasmada a geóloga Odete Silveira, dizendo que tinha um achado fantástico em Calçoene, a 390 km ao norte de Macapá”, conta ainda eufórica Mariana e reforça: “Nosso primeiro sítio arqueológico amazônico foi um presente que caiu do céu, e o que a gente fez até agora foi cuidar dele”.

Antes de fincar pé na arqueologia, Mariana havia cursado jornalismo. Mas ela sentia falta de uma discussão da realidade brasileira. Também sentia necessidade de conhecer melhor história, cultura e sociedade. Logo depois, cursou História e fez o mestrado em Arqueologia.

Quando, uma semana depois, a arqueóloga Mariana Cabral, Saldanha e mais alguns pesquisadores chegaram ao sítio arqueológico para dar início às investigações, perceberam que estavam perante uma descoberta que faria mudar a ótica sobre a arqueo-logia brasileira. O primeiro “eureca” surgiu já nos primeiros dias: o meteorologista José Elias Ávila, integrante da equipe, ao estudar a posição do maior bloco de pedra do sítio, logo intuiu que o conjunto deveria ser um gigantesco calendário. Não foi preciso esperar muito para comprovar. Aquele monolito projeta todos os dias uma sombra no chão, mas ela desaparece no solstício de inverno, 21 ou 22 de dezembro. Nessa data, ao alcançar sua posição mais alta no céu (o chamado zênite), o Sol está logo acima da pedra, de forma que ela, durante todo o dia, não projeta sombra nenhuma no chão.

A inclinação desse bloco, conforme relata Mariana: “Não é um acaso, resultante de passagem dos anos, dos ventos e das queimadas feitas no local. É intencional, pois geólogos que acompanharam na época os estudos escavaram o terreno e verificaram que havia estruturas de sustentação, calçadas por outras pedras, bem calculadas para os blocos principais, e alinhadas ao solstício e talvez a outros astros”.

Apesar de a arqueologia hoje ser interdisciplinar e mais apta a roçar na verdadeira cultura das civilizações, ela se atém às análises técnicas e não interpretativas. Assim, os enigmas dessa descoberta se desvelam nas lendas, nas teses da psicologia e no olhar atento, lançando desafio a novas releituras.

Existe alguma coisa que vai além dessa descoberta. É a psicologia do lugar. Imponente em seu profundo silêncio, sobretudo ao entardecer, quando as sombras das pedras milenares se alongam. O final do dia na floresta amazônica ameaça não acabar nunca naquela explosão de cores aquareladas. Só que, de repente, como num apagar de luz, a escuridão. E uma miríade de estrelas faiscantes começa a iluminar a noite. É quando um mundo de histórias fantasmagóricas se alinha à descoberta, pois o lugar tem fama de mal-assombrado. São narrativas insólitas, malucas e surrealistas.

Garrafinha conta uma bem boa: “Uma vez, logo depois que encontrei o sítio arqueológico (eu não disse que ele ficou importante?), um cara tirou do local um vaso cerâmico e levou para casa. A partir desse dia, toda noite, ele acordava levando porrada de não sei quem. Só depois de tanto tabefe é que alguém juntou o fato com o roubo da cerâmica. Então, ele recolocou o pote no mesmo lugar do círculo e, a partir desse dia, nunca mais apanhou da assombração”.

“A história que aconteceu lá ficou gravada na memória do Garrafinha e de mais dois homens que viram o sujeito sendo espancado”, reforça Mariana. “Garrafinha, que hoje é guarda-parque do sítio, e sua mulher Nilza, contam muitos outros casos de visagens, luzes vermelhas que flutuam e ruídos estranhos por aquelas bandas. É interessante esse repertório, pois eles são outra maneira de explicar o local, de dar sentidos para aquelas pedras.”

O elo entre o universo fantasioso e o mundo real requer mais do que uma passagem secreta, uma pedra ou uma palavra mágica. A pesquisa de campo faz a conexão. Até agora, a equipe dirigida pelo casal de arqueólogos já decifrou registros astronômicos e indícios de divisão social na cerâmica ali encontrada.

Ninguém ainda tem certeza de como as estruturas de pedra surgiram ou por quê. Mariana – mesmo depois de cinco anos no Amapá, ela não perdeu o musical sotaque gaúcho e nem bronzeou a pele alva – enfatiza que a interpretação do sítio como “um misto de calendário ou observatório astronômico, bem como centro ritualístico e cemitério indígena, leva jeito, mas até o presente momento ainda é hipótese”.

“Antes de tudo, é preciso entender o que já existe de concreto nesse sítio. A 5 km dali, os pesquisadores encontraram cicatrizes em uma pedreira, de onde teriam retirado a maioria das pedras depois talhadas no círculo”, reconhece Mariana. E vai dando outros detalhes das pesquisas: “Durante a fase de escavação, descobrimos no interior do círculo dois poços funerários, de 2 m e 3 m de profundidade, tampados por uma pesada pedra. Dentro e fora do círculo, também encontramos enterrados muitos potes, vasos e urnas funerárias.”

Todo o cemitério está coberto por um flagrante simbolismo, em particular nas louças encontradas. Por que as peças mais próximas ao centro são decoradas com desenhos de animais aquáticos (peixes, sapos), e as mais afastadas, de animais terrestres, como macacos e aves? Por que os ossos do índio morto não estão em uma única urna funerária, mas separados em urnas menores? “Sabemos que o grupo indígena que construiu o círculo tinha uma relação muito forte com os ancestrais e talvez esses desenhos e o tipo de enterramento indicassem a classe social do morto”, explica Mariana.

O círculo suscita uma pergunta difícil de ser respondida: qual cultura foi responsável por ele? As peças ali desenterradas são da fase Aristé. Esse tipo de utensílio, com pinturas em quatro cores e urnas antropomorfas, pertence a uma tradição cerâmica característica de povos que habitaram a região do Amapá até a Guiana Francesa mil anos atrás. Mas não se pode afirmar categoricamente que eles construíram o círculo.

A impressão é a de que as teorias estão batendo na trave. Falta pouco, mas falta. Como explicar, por exemplo, onde moravam os frequentadores do círculo se não existem vestígios de aldeias em sua proximidade? Abandonaram de modo súbito e misterioso suas aldeias como a civilização maia?

É evidente que o sítio de Rego Grande tenha sido um empreendimento comunitário. Algumas centenas de homens levaram muito dias para carregar as pedras até aquele lugar, para entalhar a superfície dura, moldá-la, ajustar os encaixes e posicionar cada pedra em seu lugar. O espaço interno do círculo pode acomodar no máximo 300 pessoas. No entanto, é possível calcular que, em determinados dias do ano, quando esse grupo se deslocava para suas festas ou rituais, o local abrigaria quase o dobro. E aí surge outra questão: de onde essa sociedade indígena tirava comida para alimentar seu povo que trabalhou na construção desses círculos e também durante os dias dos rituais sagrados? Viriam eles, então, de muito longe?

As perguntas fazem sentido, pois não existem no Amapá as chamadas manchas de terra preta da Amazônia – pequenas faixas de solo fértil em meio à terra pobre e ácida da floresta – que acompanham o curso dos rios e igarapés e revelam a ocupação humana na região. Esse tipo de solo se forma pelo acúmulo de matéria orgânica resultante dos assentamentos.

A aura de mistério continua forte. Como encontrar explicações para esses antigos brasileiros que, mil anos atrás, mesmo sem a sofisticação dos equipamentos atuais – ou não? – estavam à frente de seu tempo. No mínimo, em astronomia. Usavam o céu para tudo o que precisasse respeitar um ciclo temporal, como as épocas certas da colheita e do plantio, das festas, ou ainda de algum acontecimento que desconhecemos.


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