O cofre do Dr. Rui

Era um entra-e-sai no palácio. Mãos suarentas e rugas nas testas denotavam o clima tenso. Políticos, empresários, garçons, bajuladores revoavam em torno do governador Adhemar de Barros tal como as mariposas em torno das “lâmpidas de gás” do Adoniran Barbosa, que fazia sucesso no rádio.

Não havia lugar melhor em São Paulo para saber das últimas. Ou se proteger, sabia-se lá. O País estava mudando naquela passagem de 31 de março para 1o de abril de 1964. Só não se sabia para onde.

Jornalistas, só eram admitidos os do peito. Aqueles que tudo viam, tudo sabiam, e nada publicavam.
Adhemar era um pândego. Não precisava se esforçar para fazer rir. O narigão adunco e a barriga caricatural já eram a piada. Assim conquistava jornalistas, correligionários e eleitores. Era um cacique político. Não havia apenas Adhemar, havia o ademarismo.
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O repórter Reali Jr. testemunhou muitas cenas naquela noite histórica. A mais “surrealista” foi um telefonema entre Adhemar e o governador do Estado da Guanabara, Carlos Lacerda, bruscamente interrompido quando um assessor de Adhemar soprou alguma coisa em seu ouvido.

O governador, de imediato, despediu-se de Lacerda e atendeu o outro telefonema, com uma frase que o repórter jamais esqueceu: “Alô, meu bem, eu estava falando agora mesmo com o seu governador”.

Naquela noite, Reali Jr. ouviu a frase e a guardou. Somente 40 anos depois, em seu livro autobiográfico, ele a publicou, explicando que “meu bem” era Ana Capriglione, “a amante carioca de Adhemar”. Seu apelido, criado pelo próprio Adhemar, era dr. Rui.

Era bela? “Vistosa” define outro repórter político da época, Edwaldo Pacote. Mandava muito, garante Reali Jr.. Até demitir secretários de Estado ela demitia, tal a sua força perante o governador.

Naquela noite, Adhemar, um dos líderes civis do golpe militar, sonhava com a presidência. Para ele, como para Lacerda e Juscelino, Castello Branco ficaria apenas um ano no poder, depois marcaria eleições.

Mas qual. Em 1965, Adhemar já tinha perdido as esperanças. Passou a usar e abusar de sua veia humorística na esculhambação do ditador.

“Castello não é uma gracinha?” perguntou-lhe, num programa de TV ao vivo, a apresentadora Hebe Camargo.”Uma gracinha? Ele é horroroso”, retrucou Adhemar, provocando risos nervosos na apresentadora.

Ao jornalista Ferreira Netto, também na TV, ao vivo, disse mais: “O Castello é mais feio por dentro que por fora”.

Dizem ter sido essa a gota d’água. Adhemar foi cassado – por corrupção, como não podia deixar de acontecer com o criador da famosa caixinha do Adhemar e do lema “rouba, mas faz” – e exilou-se em Paris.

O jornalista Pacote conta tê-lo reencontrado numa das rápidas visitas que fez a São Paulo depois de cassado. “Ele estava em Paris com o dr. Rui”, revela.

Ao morrer, a 12 de março de 1969, de ataque cardíaco, Adhemar estava em Paris. Quem trouxe o seu corpo a São Paulo foi o dr. Rui, que estava com ele naquela cidade.

No velório, quase uma saia justa. Dr. Rui, que insistia em permanecer o tempo todo junto do caixão, concordou em velá-lo de madrugada, deixando a manhã para a esposa oficial, dona Leonor Mendes de Barros, a quem o governador chamava de “santa”.

Nos dias subsequentes tiveram início os procedimentos do inventário de Adhemar. As conversas na família Benchimol chegaram aos ouvidos de um sobrinho do dr. Rui, Gustavo Buarque Benchimol, recém-recrutado pelo Comando de Libertação Nacional (Colina).

Ao cara que o recrutou, codinome Juarez, ou Juvenal, Gustavo, que agora usava o nome de Bicho, abriu o segredo: na casa onde morava sua tia, em Santa Teresa, havia dois milhões de dólares guardados num cofre pertencente ao governador Adhemar de Barros.Juarez vibrou ao saber da novidade.

Brasileiros – Estamos em 1969. Você e o Lamarca estão na Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e são procurados pelo Juarez (ou Juvenal) do Comando de Libertação Nacional (Colina) para roubar o cofre do Adhemar. Começou assim a história?
ANTONIO ESPINOSA – Não. Não foi assim. Não fomos procurados para isso. Vínhamos desenvolvendo uma discussão normal para aproximação e fusão das duas organizações há muito tempo. A partir de um certo momento, já em 1969, fomos informados dos planos para a realização de uma “grande ação”, que poderia resolver por um bom período de tempo a questão do financiamento da revolução. Mas eu queria fazer um reparo à palavra “roubo”, que você utilizou. A expressão que usávamos era outra: expropriação. Na verdade considerávamos roubo o que havia sido feito antes, o desvio de recursos públicos, a apropriação privada de recursos públicos, que estavam no cofre. Ou seja, roubo era a corrupção. O que nós faríamos seria a recuperação de uma parte do dinheiro da corrupção, a devolução desse recurso para seu legítimo proprietário, o povo. Seriam recursos para financiar a revolução que procurava derrubar um regime ilegítimo, nascido de um golpe de Estado, para devolver o poder ao povo. Na época, uma conjuntura de guerra, em que o povo era vítima de uma campanha sistemática das Forças Armadas, para nós, era legítimo o emprego da força, para recolocar o País nos trilhos da legitimidade democrática.

Brasileiros – No início de abril passado, você teve uma pesada discussão com o jornal Folha de S.Paulo, ao qual acusou de distorcer uma entrevista sua numa armadilha contra a ministra Dilma Rousseff. Incomoda-o falar sobre isso?
A. E. – De fato a Folha publicou uma matéria totalmente diferente do conteúdo da entrevista, para criar um factóide contra a Dilma, a respeito do planejamento do sequestro do então ministro da Fazenda, Delfim Netto.

Brasileiros – Por isso você fica incomodado de falar com a imprensa?
A. E. – Não, fique à vontade. Pode perguntar o que você quiser. Muitos companheiros meus morreram e eu passei quatro anos preso sem julgamento devido a nossa luta pela liberdade. Lutamos, oferecemos nossas vidas pela liberdade de pensamento e expressão, pela liberdade de imprensa. Não seriam as intenções sorrateiras de um jornal oportunista que mudariam minhas convicções. Além disso, os fatos do passado são fatos. Não pertencem a quem participou deles. As atuais e próximas gerações têm o direito de ter o acesso mais próximo possível da nossa história recente. Pode seguir em frente.

Brasileiros – Voltando ao nosso tema inicial, então. Você conhecia o Juvenal? Que houve com ele?
A. E. – Juvenal era o nome de guerra de Juarez Guimarães de Brito, membro da direção da Colina, depois da VAR-Palmares e, em seguida, da nova VPR, “desaparecido” por volta de abril de 1970. Na verdade deve ter sido preso e assassinado na tortura. O fato é que seu corpo até hoje não foi localizado. Eu só o conheci nas reuniões das direções nacionais das duas organizações para a fusão da VPR com a Colina.

Brasileiros – Como foi o processo de fusão?
A. E. – Começou na época da cisão com a Política Operária (Polop) No início de 1969 chegamos a alugar um aparelho no Rio de Janeiro e mantivemos lá uma espécie de embaixada da VPR, coordenada pela Yara Iavelberg. O contato não era com o Juarez, mas mais com o Breno (Carlos Alberto Soares de Freitas). Periodicamente ia alguém para o Rio. Eu fui algumas…

Brasileiros – A Colina e a VPR tinham o mesmo ideário? Vocês eram maoístas?
A. E. – Não, nada disso, éramos críticos da linha chinesa. Identificávamo-nos mais com o processo da revolução cubana. Mas não havia um vínculo orgânico com Cuba. Tínhamos simpatia pelo modelo cubano, o foco guerrilheiro, a questão da marcha para o poder a partir de uma Sierra Maestra. Essa concepção chegara a essas organizações sobretudo pelo livro de Régis Debray, Revolução na revolução. Ele dispensava a necessidade de um grande partido político com sólidas bases operárias e populares. Dispensava isso e pregava que, a partir de uma pequena vanguarda, se radicalizasse a guerra, mantendo acesa a chama revolucionária e fazendo com que o partido se consolidasse nesse processo. Esse era um dado comum às duas organizações, mas ambas se distinguiam das organizações que também se propunham a fazer a luta armada oriundas do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Estas últimas acreditavam na existência de uma burguesia nacional com interesses autônomos ao do capital internacional, anti-imperialista, e defendiam que a revolução teria um caráter democrático-burguês, de libertação nacional. Nós, ao contrário, baseados em análises como as de Caio Prado, entendíamos que o Brasil já era um país capitalista, que sua burguesia seria associada ao capital internacional e, portanto, defendíamos uma revolução já com caráter socialista. Colina e VPR eram idênticas nisso. A VPR crescera muito em São Paulo, mas não criou bases sólidas fora. Já a Colina começou em dois estados, Rio e Minas. Depois ampliaram com a adesão da cisão do “Partidão” do Rio Grande do Sul, com grupos de Pernambuco, Bahia e Goiás; em abril de 1969, fizeram uma conferência, tiraram uma direção de sete membros e abandonaram o nome Colina, porque finalmente chegaram à conclusão sobre o caráter socialista da revolução…

Brasileiros – Vocês já tinham feito ações, assaltado bancos?
A. E. – Já, já, diversas, bancos, quartéis… Chandler… (O capitão do Exército dos EUA, Charles Rodney Chandler era um “agente da CIA” executado a 12 de outubro de 1968 ao sair de sua casa, na Rua Petrópolis, 375, no Sumaré, em São Paulo.)

Brasileiros – Você participou do assassinato de Chandler?
A. E. – Não. Eu estava em Osasco nesse período, dedicava-me ao trabalho de fábrica. A VPR foi a organização que recrutou as principais lideranças de Osasco. Foi quase uma terceira força além das cisões da Polop e do Movimento Nacional Revolucionário (MNR). Só de Osasco ela recrutou cerca de 60 a 70 militantes. Eu fui um deles. A organização na época tinha umas 80 pessoas, então o grupo de Osasco tinha um certo peso. Só que não foi uma fusão. Nós fomos recrutados um a um. Tínhamos peso nas discussões internas, mas nenhum membro na direção.

Brasileiros – Você não entrou de cara na direção?
A. E. – De cara, não. No final de 1968, quando um dos membros da Coordenação, o professor João Quartim, foi expulso, o Zé Ibrahim (José Ibrahim, ex-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco) foi cooptado para a direção e vários de nós passamos a fazer parte da Coordenação Urbana. A coordenação era composta por cinco companheiros, mas, no final de janeiro, começo de fevereiro, houve uma onda de prisões grande. Sobrou só um membro da direção geral, o Rui (Valdir Sarapu, ex-Polop, oriundo da região do ABC paulista). Ele me cooptou, ou seja, me convidou a integrar a direção. E nós dois cooptamos o Barreto, formando uma direção provisória de três. Nesse período teríamos que reestruturar nossa forma de organização, abandonar todos os resquícios de liberalismo, tais como chamar companheiros pelo nome, conhecer endereços, faltar ou atrasar em pontos (encontros), marcar pontos em locais conhecidos… Essa fase de transição era difícil, exigia sacrifícios a que nem todos se habituavam. Então, logo em seguida, eu fui forçado a dar uma espécie de golpe de estado dentro da VPR, para salvar a organização. O Barreto era poeta, tocava violão, adorava ir pra Osasco, para fazer serenatas. Procurado como ele era (fora preso durante a greve de julho e ficara mais de três meses na Polícia Federal), corria um risco enorme com suas escapadelas, e colocava toda a organização em risco, pois sua prisão poderia iniciar uma nova onda. Um dia, de madrugada, ele se viu cercado dentro de um táxi por uma batida dos dois lados da ponte Eusébio Matoso. Desceu do táxi com o violão, saiu caminhando devagar, mas perto dos policiais, saiu correndo, com soldados no encalço. Acabou saltando um muro, explicou para a dona da casa o que estava acontecendo, e a mulher foi solidária, dando-lhe refúgio até a polícia se afastar. Não foi preso por isso. Mas nós já o tínhamos proibido de se aproximar de Osasco. Imagina ir fazer serenata para a mesma namorada sendo tão caçado como ele era… Não pela serenata, que é até uma coisa legal, mas porque ele ficava muito exposto. O Rui, por seu lado, também achava que a ditadura, após o Ato Institucional número 5, estava fechando o cerco e ele tinha medo de ser preso e não resistir à tortura. Começou a evitar cobrir pontos, a evitar situações perigosas… confidenciou comigo que temia ser preso e não resistir a torturas. Então, ele me passou a maioria de seus contatos. Eu, então, passara a centralizar os contatos com o pessoal do setor logístico, a quem informava minhas impressões. Os companheiros de formação militar, principalmente, mas não apenas eles, passaram a me pressionar para assumir poderes totais na organização, pelo menos até superarmos a fase de quedas, estancando todas as brechas…

Brasileiros – Quem o pressionava para botar ordem na organização?
A. E. – O pessoal do Logístico, dos grupos de ação, o Nóbrega, o Sílvio ou Matos (o ex-marinheiro Cláudio de Souza Ribeiro), o Darcy (o ex-sargento Darcy Ribeiro), o Mariane (cabo José Mariane Ferreira Alves, os dois últimos, com o soldado Carlos Roberto Zanirato haviam desertado do 4º Regimento de Infantaria, em Osasco, juntamente com o capitão Lamarca). Além deles, defendia essa opção o Elias (o ex-açougueiro João Domingues da Silva), um dos melhores caracteres e um dos nossos mais destacados quadros militares, que assumiu o comando do Grupo Tático de São Paulo. Continuando: aí eu disse ao Rui e ao Barretão que se tratava de uma situação de segurança extrema e que, a partir daquele momento, embora por um período transitório, assumiria o comando sozinho. Disse algo assim: “agora estamos sob regime ditatorial. Serei eu o ditador. Vocês têm alguma dúvida? Vocês vão manter os seus contatos mas vão passar para mim todos os contatos-chaves das coordenações. A partir de agora a espera num ponto será de no máximo cinco minutos, cada um caminhando de um lado da rua. Acabou o liberalismo. Se o outro não te olhar na cara ou abrir os braços, não pare, passe direto. Nome de guerra, esqueçam os nomes reais de colegas e amigos. Vamos alugar aparelhos novos e só vai saber o endereço quem morar neles. Os outros não irão lá, mas, se tiverem que ir, irão de olho fechado”. Estávamos numa guerra, o outro lado era muito mais forte e não media violência, e nós tínhamos que nos precaver. Passada a fase mais difícil, os debates internos voltariam. Faríamos um congresso para eleger uma nova duração. Felizmente deu tudo certo, o regime de exceção durou pouco, menos de dois meses. Em abril de 1969 já fizemos o congresso depois de uma intensa discussão da linha política nas bases, com delegados eleitos, etc. Foi na Praia Grande.

Brasileiros – O Lamarca já estava na VPR a essa altura?
A. E. – Já, já.

Brasileiros – E você mandava no Lamarca?
A. E. – Nesse momento, sim.

Brasileiros – Mas ele não era o capitão, mais velho, etc, com muito mais experiência militar do que você?
A. E. – Sem dúvida. E eu era um moleque. O Lamarca, na verdade, nesse período estava indisponível, guardado em aparelhos. Não podia nem pôr a cara do lado de fora, pois sua fotografia aparecia todos os dias nos jornais, na TV. Por isso ele estava sem uma atuação prática. Ao entrar na VPR, ele imaginava que tivéssemos já um setor camponês forte, bases no campo prontas para começar a guerrilha e que ele estaria deixando o exército da burguesia para se incorporar ao exército do povo. Não tinha, portanto, a expectativa de entrar por cima. Pelo contrário, entrou na organização com o espírito de quem só queria ser um soldado. Capitão ele era do outro exército… (risos) Mas a impressão passada a ele, inclusive pelo Augusto (Onofre Pinto), não correspondia à verdade. Nós não tínhamos esse trabalho todo no campo. Só que do dia pra noite ele se tornou o cara mais procurado do Brasil. No momento em que a organização estava sangrando, sofrendo quedas depois de quedas, ele foi guardado. Eu e a Yara arranjamos um lugar para ele na casa da Heleni Teles Guariba e do professor Ulysses Guariba, filho do general Guariba. A Heleni acabou se tornando militante e foi assassinada pela ditadura. O Ulisses criou os filhos dos dois e hoje é professor de história em Assis, foi reitor da Unesp. O Lamarca ficou guardado na casa deles, onde eu tinha ficado antes. Aí eu saí, falei é legal, o Lamarca ficou lá, isolado.

Brasileiros – Antes desse período a coisa rolava frouxa?
A. E. – Era preciso mudar a cultura da organização, adaptá-la para a guerra. O outro lado decretara o AI-5, a tortura campeava nos porões. Nós tínhamos que nos adaptar à nova realidade.

Brasileiros – Para quem você falou sobre as novas regras, para um grupo grande?
A. E. – Não, falei para os dois e os dois iam avisar o pessoal. Não tinha como fazer reunião com mais de três, no máximo cinco. Em abril, compusemos um comando nacional enxuto, com apenas cinco membros. Quando houve a fusão com a Colina e surgiu a VAR, passaram a ser seis. Depois do congresso de Teresópolis, a VAR voltou a ter cinco comandantes. O número tinha que ser pequeno, para não dar bandeira, por questões de segurança, e pra ser uma instância leve, ágil na tomada de decisões. Mas uma coisa importante, sempre tivemos, exceto aquele curto período, direções colegiadas. Nossas decisões sempre foram tiradas de forma colegiada, após debate democrático amplo e livre.

Brasileiros – Por maioria?
A. E. – Por consenso ou por maioria. Numa organização com essa estrutura a preocupação com a legitimidade é uma constante. A gente discutia muito. Nisso a VPR, e depois a VAR-Palmares, também se diferenciava de outras organizações de esquerda, inclusive da Ação Libertadora Nacional (ALN), que tinha chefe ou um comandante supremo…

Brasileiros – Que era o Carlos Marighella?
A. E. – O Marighella, depois o Toledo (Joaquim Câmara Ferreira, o velho) e, na fase final, o Clemente (o músico Carlos Eugenio Sarmento Coelho da Paz), que era um garoto, mais jovem até do que eu, estudante secundarista no Rio de Janeiro. Nós, não, sempre tivemos direções colegiadas, em todos os níveis, do comando nacional às menores células da base. Tínhamos colegiado de cima até embaixo. Era a coordenação urbana, coordenação operária, coordenação estudantil, coordenação de imprensa.

Brasileiros – Toda essa estrutura respondia à direção?
A. E. – Respondia ao Comando Nacional. Mas este era uma direção colegiada. Mesmo os militantes que estavam organizados em células de quatro ou cinco, que ocupavam um aparelho, a célula era colegiada, tinha vida política, tinha debate político. Não tinham, necessariamente, essa vida política os aliados, os paramilitantes, os que estavam em processo de recrutamento, que tinham vínculo com a organização, mas não participavam da vida democrática interna. Qualquer militante podia escrever documentos, mesmo contrários à linha oficial. Esse documento seria reproduzido pela imprensa e chegaria a todos… O Jamil (o atual economista Ladislas Dowbor), por exemplo, que era da VPR, tinha as teses dele, tinha uma linha mais argelina, todos os documentos dele eram publicados e distribuídos. Ele não tinha sequer um adepto. Era um cara isolado, jamais ninguém foi eleito pelo jamilismo para conferências, congressos. Nem na célula dele ele era majoritário. Mas todos os textos que produziu foram distribuídos a todos os militantes. E olha que ele escrevia muito, era prolífico. Fez no mínimo uns oito ou nove documentos. O Lamarca não gostava muito disso, achava que a gente estava gastando dinheiro precioso com coisa que daria pouco fruto, que seria feita por gabolice. Achava que isso era democratismo, dar espaço ao exibicionismo individual. Mas nós dizíamos a ele, não Ciro (Lamarca também usou outros nomes, como César), isso é um princípio democrático”, pois a democracia interna pra gente era sagrada. Se lutávamos pela democracia na sociedade, como não praticá-la internamente? Esses documentos sempre foram publicados e sempre circularam. Exceto no período ditatorial, nos quarenta e poucos dias. Em fevereiro de 1969. Em março nos sentimos em condições de realizar o congresso, que seria em abril, para eleger uma nova direção e a linha política. Todas as células elegeram seus representantes.

Brasileiros – Em março de 1969 morre Adhemar de Barros…
A. E. –
Não teve nada a ver conosco… (risos) O cofre foi quatro meses depois.

Brasileiros – Ele morreu em Paris, do coração, onde estava acompanhado por Ana Capriglione, o dr. Rui. Ela trouxe o corpo para o Brasil e quis participar do velório na Consolação.
A. E. –
Bom, todos os setores reunidos, quem quis escrever documentos escreveu e houve um processo de eleições de delegados. Fizemos esse congresso na Praia Grande, a gente ficava rodando por ali, alugando casas de Itanhaém até Cidade Ocean. Foi um congresso de dois ou três dias. Foi nele que o Rui (Sarapu) se desligou e foi nomeado para uma função no exterior. Logo não foi eleito pra direção. Eu fui reconduzido para o comando. Foi aí que o Lamarca chegou à direção. Com ele foram eleitos o Claudio Ribeiro, o marinheiro, que tinha uma longa experiência de ações; o Fernando Mesquita, que havia feito economia na USP e hoje parece ser professor de literatura na Federal de Mato Grosso, e era uma liderança estudantil significativa. Foi eleito também um cara novo, que era jornalista e se destacou no congresso, o Mario Japa (Shizuo Ozawa), que hoje é casado com Lia (Maria do Carmo Brito, esposa de Juarez de Brito na época).

Brasileiros – Enquanto isso o que acontecia com a Colina?
A. E. –
No mesmo mês de abril, a Colina também fez uma espécie de conferência com o pessoal do Rio, Minas, Rio Grande do Sul, Bahia, Pernambuco, Goiás e com os deslocados (quadros procurados em outros Estados que viviam organizados no Rio) e deixou de se chamar Colina, pois eles também definiram o caráter socialista da revolução. Se era socialista por que se chamar Comandos de Libertação Nacional? O nome estava errado. A outra razão é que eles definiram como prioridade lá – como nós definimos aqui – a fusão VPR com a ex-Colina. Passaram a se chamar O. (Ó pontinho), ou seja, organização, enquanto esperavam o nome a ser definido com a fusão. E tiraram uma direção de sete. Nós tínhamos cinco na direção. Nesse meio tempo o Juarez, no Rio, coordenava os levantamentos do cofre… Já vinha trabalhando em cima disso.

Brasileiros – Eles não tinham armas e pessoal para fazer a ação, por isso precisavam de vocês?
A. E. –
Para fazer uma ação talvez eles tivessem. Mas a ideia era fazer dois cofres simultaneamente. Para as duas ações simultâneas, talvez não teriam gente treinada em quantidade suficiente. Mas, para isso, não seria necessária a fusão, pois nós emprestaríamos as armas. Nós tínhamos e nossa intimidade e grau de confiança eram grandes o suficiente para que emprestássemos. Mas eles também achavam que talvez fosse mais seguro contar com quadros experientes da VPR, porque a questão não era só fazer a ação. Tinham sofrido quedas importantes em Minas, onde morreu o sargento João Lucas Alves. Tiveram muitos presos, vários militantes haviam sido deslocados para o Rio. Eles tinham um miniexército de “deslocados”, uns 50 mineiros morando no Rio, com despesas de apartamento, alimentação, roupa, gente que era difícil remanejar para outro setor da organização, pois eram procurados pela repressão. No Rio também era fácil alugar apartamentos de temporada, por isso tinham sido deslocados para lá, mas os aluguéis eram muito altos. Então precisava estruturar uma organização nova pra acomodar o pessoal, definir nome, documentos, diplomas falsos, para que todos tivessem uma profissão, pudessem buscar uma inserção social… Até pediram, um pouco antes da fusão, uma força nossa pra “fazer” um banco no Rio (se não me engano, foi o Banco Aliança). Nós até mandamos dois ou três militantes, entre eles o João Domingues, que era o nosso melhor atirador e organizador militar, o Fernando Ruivo e um outro, acho que o Darcy.

Brasileiros – O assalto foi bem-sucedido?
A. E. –
Assalto não, ação. Não foi, não foi. Não houve morte nem nada, mas houve um tiroteio, um companheiro atirou pelo vidro de trás do Volks em que fugiam. Aí tiveram que abandonar o carro, quase todos foram presos… E a arrecadação foi bem inferior ao esperado, não resolvendo o problema de caixa da antiga Colina.

Brasileiros – A Dilma Rousseff tinha papel relevante na organização?
A. E. –
Quase presa em Minas, ela também fora deslocada para o Rio. Em abril, passou a fazer parte da direção da Ó pontinho, junto com o gaúcho Max (Carlos Araújo, seu futuro marido), o Herbert Daniel (Herbert Eustáquio de Carvalho), o Juvenal, o Breno (Carlos Alberto Soares de Freitas, hoje também “desaparecido”), a Lia e o Chico (um médico gaúcho que improvisava a montagem de empresas para a infraestrutura guerrilheira na região do bico-de-papagaio do mapa, a área entre Pará, Maranhão e Goiás).

Brasileiros – Você conheceu a atual ministra na mesma ocasião em que foi apresentado ao Juvenal?
A. E. –
Sim, foi isso. Fizemos duas reuniões para a fusão. Excetuando o Breno, conheci os demais membros da Colina nessa época.

Brasileiros – E quem participou pelo lado da VPR?
A. E. –
Além da tia (mãe do Manoel Dias do Nascimento) e de Joana Teles Cubas, que participavam da estrutura de apoio na cozinha, de Yara e seu irmão Raul, que cuidavam da comunicação externa, participaram os 12 comandantes (os cinco nossos e os sete deles). Cada um dos dois encontros durou de dois a três dias. O segundo já foi em julho. Nele foi sacramentada a fusão.

Brasileiros – O cofre já entrou em pauta nessa hora?
A. E. –
Desde a primeira das duas reuniões. O Juvenal deu o informe de que estava sendo preparada uma grande ação, que deveria render mais de dois milhões de dólares. Sugeriu que o dinheiro teria como origem a corrupção de um possível político, mas não disse nomes. Informações desse tipo jamais eram dadas, por razões de segurança. Jamais se pergunta. E você faz questão de não saber, pois quem não sabe não fala, mesmo sob tortura. Pela minha cabeça não passou que o político poderia ser o Adhemar de Barros, pois a ação seria no Rio. Até imaginei que fosse o Negrão de Lima, o Lacerda, algum general, sei lá… Ele falou ainda, que, com apoio, talvez fosse possível arrecadar o dobro desse valor, fazendo dois cofres, ou até mais, porque haveria dez cofres semelhantes na cidade, guardados por uma polícia particular muito bem armada.O risco maior não seria a polícia, mas esse exército particular.

Brasileiros – Como foi o surgimento da VAR-Palmares?
A. E. –
Discutimos tudo, análise nacional, internacional, linha política. Constatamos uma afinidade essencial e que conviria, portanto, unificar as duas estruturas, e criar um comando comum, um novo nome, etc. Na hora a dirigente mais entusiasmada com a fusão era a Lia, e também o Juvenal, que eram do Rio; eram apoiados de forma mais clara pelo Daniel. A Lia e o Juvenal chegaram a propor que a nova organização tivesse VPR no prefixo e mais Palmares. Era mais ou menos consenso que o nome Palmares deveria ser adotado. Aliás, acho que esse foi o nome mais bonito e sugestivo de organização de esquerda no Brasil… Mais significativo, mais simbólico.

Brasileiros – Quem sugeriu Palmares?
A. E. –
Surgiu na reunião. Com certeza não fui eu o proponente. Pode ter sido o Fernando Mesquita ou o Herbert Daniel, não lembro. A Lia propôs VPR-Palmares e nós, da VPR, reagimos negativamente: “não, isso não, nem vai parecer que surgiu algo novo, que houve uma fusão”. O nome Colina não poderia ser usado, apesar de bonito. Aliás essa era outra característica nossa, a adoção de nomes bonitos. Pensando agora, Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-8) também era um nome interessante, mas era mais descritivo, não estava no mesmo patamar de criatividade. Lembro que o Fernando defendeu o nome VAR-Palmares, argumentando que seria mais sonoro e explicitaria simbolicamente um profundo conteúdo popular. Alguns eram mais entusiasmados com a fusão que outros. A Lia e o Juvenal eram os mais entusiasmados…

Brasileiros – E a Dilma?
A. E. –
Foi favorável, é claro, pois a fusão só poderia ser decidida por consenso, mas a Dilma e o Breno eram politicamente mais exigentes, queriam aprofundar melhor a discussão, afinar melhor os pontos… E ficaram visivelmente constrangidos com o açodamento de alguns de seus pares com a manutenção do nome VPR. Aparentemente a Dilma e o Breno queriam aprofundar mais a discussão para evitar divergências depois. Essa posição nos levou a todos, oriundos da VPR, inclusive eu, a imaginar que teriam reservas à fusão. “Será que esses dois têm alguma restrição a nós?” Para eleger o comando comum, com três membros de cada origem, os sete deles se dividiram e os cinco da VPR votaram nos mesmos nomes. Assim fomos eleitos por unanimidade: o Lamarca, o Cláudio Ribeiro, eu e o Max. O Juvenal e a Lia tiveram somente nove votos. Ou seja, Max, Dilma e Breno não votaram neles.

Brasileiros – O Max já era namorado da Dilma?
A. E. –
Acho que estavam começando. Ele também queria discutir um pouco mais, mas era um cara bem-humorado, divertido, era do nosso time. A Dilma e o Breno, embora também fossem divertidos, tinham um perfil mais intelectual, mais da antiga Polop. O Max não tinha sido da Polop e tinha cara de povão. Por isso, nós seis da VPR votamos nele. Mas, enfim, o que interessa: não houve divergências maiores e saiu-se dali com a direção da organização definida, cuja sede passaria a funcionar no Rio. Então nós três teríamos que nos mudar para o Rio. Primeiro fui eu, nos dias seguintes o César e o Claudio. Decidimos dividir a direção por tarefas práticas. Como a prioridade número um seria a “grande ação”, o cofre, o Juarez ficaria encarregado dela, mas colocamos à sua disposição gente experiente como o João Domingues, o Nóbrega, o Darcy, a Sônia Lafoz, o Maciel. Se fossem confirmadas as previsões do
Juarez, essa ação dispensaria outras ações contra bancos durante um bom tempo. Não que a gente tivesse a ilusão de que o dinheiro seria suficiente para toda a revolução, mas…

Brasileiros – Como é que vocês descobriram o cofre?
A. E. –
Não era um, eram dez cofres! Deveria haver algo em torno de 25 milhões de dólares da corrupção escondidos em várias casas no Rio de Janeiro.

Brasileiros – Vocês conseguiram pegar um só?
A. E. –
Pegamos um só, mas tínhamos os endereços e as fichas de dois. O outro estava num apartamento em Copacabana.

Brasileiros – Aonde vocês conseguiram os endereços?
A. E. –
Um sobrinho da mulher que atendia pelo nome de dr. Rui, que era a Ana Capriglione, secretária do Adhemar de Barros, era nosso militante. Na faculdade havia aderido à Colina, quando passou a informação ao Juarez. Guilherme Schiller Benchimol. Nesses dias alguns jornais publicaram que ela seria amante do Adhemar de Barros…

Brasileiros – Isso todo mundo na imprensa sabia.
A. E. –
Eu sei que era secretária. Pra gente o que importava é que ela controlava talvez os dez, ou pelo menos dois desses dez cofres. Um ficava em Santa Teresa, na casa dela, e outro na casa de um parente em Copacabana. Nós sabíamos desses dois. A intenção era fazer os dois cofres ao mesmo tempo, cronometrado, entrando-se e saindo-se dos dois lugares na mesma hora, sem deixar rastros. Até o último momento a intenção era fazer uma ação simultânea. Mas em Copacabana a operação seria complicada, porque o cofre era maior que a janela, maior do que as portas, foi posto no apartamento durante a construção e então seria necessário destruir as janelas, colocar uma roldana de aço e descer com aquele cofre pelo lado de fora, em plena Copacabana…

Brasileiros – Mas isso chegou a ser planejado?
A. E. –
O plano chegou a ser detalhado, alguns equipamentos, inclusive, foram adquiridos, como as roldanas. Só que tinha um outro problema: o engarrafamento de trânsito em Copacabana nessa época. Então, depois de uma avaliação mais criteriosa, achamos que era muito imprudente e que era melhor ficar com um cofre na mão do que com dois voando…

Brasileiros – Como vocês iam entrar no prédio?
A. E. –
Olha, havia esquemas pra entrar, se sabia o nome do dono, tudo. Pode ser que o esquema fosse o mesmo, fingindo que se tratava de uma investigação da Polícia Federal…

Brasileiros – O pessoal iria entrar normalmente?
A. E. –
Sim, normalmente. Em Santa Teresa, por exemplo, foi assim. Os companheiros chegaram numa perua, um tipo de viatura que era usado pela repressão. Todos foram de paletó, alguns com crachás da Polícia Federal.

Brasileiros – Quem estava na casa engoliu a história?
A. E. –
Engoliram, até que houve a apresentação. Quando todos foram reunidos na sala do andar de cima, depois de amarrados e levados para um quarto, só aí devem ter desconfiado de que se tratava de uma ação de um grupo revolucionário. Uma coisa curiosa: dona Ana Capriglione deu queixa à Polícia, mas, chamada a dar esclarecimentos, disse que estranhava muito porque no cofre só havia documentos de família! Nada de dinheiro. Levou ainda alguns meses para que a repressão descobrisse o conteúdo real do cofre. Nós também imaginávamos que além do dinheiro haveria contratos ou documentos incriminadores que poderiam afetar várias figuras do regime. De fato, havia alguns documentos, um com o nome de Yolanda Costa e Silva (mulher do general presidente Costa e Silva), mas em nenhum deles nós conseguimos provas que evidenciassem a corrupção ou mostrassem vínculos com figurões do regime militar. Por isso os papéis não foram utilizados com a finalidade de propaganda…

Brasileiros – Ana Capriglione estava lá?
A. E. –
Estava. Pelo que sei, pois não participei pessoalmente, foi amarrada, junto com a família.

Brasileiros – Ela foi reconhecida?
A. E. –
Não foi preciso dialogar. O pessoal mostrou o crachá da PF, que era fácil conseguir, qualquer um treme com esse crachá na cara, principalmente guardando em casa um dinheiro suspeito. Ninguém opôs resistência. Nem sei se o Juarez chegou a entrar no andar de cima onde estava o cofre. Quem se apresentou como “chefe da equipe da Polícia Federal” foi o Nóbrega. Ex-sargento, está vivo. É o que tinha mais cara de policial.

Brasileiros – O Carlos Minc você sabe se teve algum papel?
A. E. –
Papel ele teve. Qual foi o papel, o que exatamente fez, se dirigiu o carro, se ficou na segurança (sempre ficava alguém na segurança)…eu não sei.

Brasileiros – Como é que o cofre foi retirado de onde estava?
A. E. –
Tiveram que improvisar uma rampa com caibros, madeira, para que descesse… e ainda assim ele escorregou e caiu no piso térreo.

Brasileiros – Quantos estavam no grupo?
A. E. –
De nove a dez, mais motoristas, mais esquema de segurança, o Wellington Diniz. O cofre teria que ser levado dali para uma casa de subúrbio, onde havia aparelhos de maçarico, um serralheiro esperando. Esse serralheiro teve que serrar o cofre, e ir jogando água, para não estragar o dinheiro. E uma boa parte dele efetivamente ficou molhada, foi secada num varal, etc. Foi uma operação que envolveu um número razoável de pessoas.

Brasileiros – O cara do maçarico, o cara que abriu o cofre, sabia o que tinha lá dentro?
A. E. –
O cara do maçarico é um gaúcho, não pergunte o nome porque eu não sei. Nem o nome de guerra consigo lembrar. Recordo que foi trazido do Rio Grande do Sul. Ele não sabia o que haveria dentro, mas sabia que teria que serrar um cofre. E a única função dele seria serrar o cofre. Assim que terminou sua tarefa, foi retirado do aparelho e embarcou de volta ao Rio Grande. Viajou sem saber quanto dinheiro havia dentro. Há cerca de um ano eu estive com esse operário, na inauguração do Memorial da Resistência, na antiga sede do Dops de São Paulo.

Brasileiros – Sabe o nome dele?
A. E. –
Agora, quando fomos apresentados, ele falou, mas esqueci. Passei por um curso intensivo de esquecimento. Além disso, a gente não conhecia as pessoas pelo nome. A Dilma, por exemplo, eu só conhecia por Wanda, por Luisa. Não conhecia o companheiro dela por Carlos Araújo, mas como Max, ou como Nilo, no período em que meu nome de guerra era Lino. Eu cheguei ao Rio com o nome de Bento, era assim, com um nome ou o outro, que eles também me conheciam. Aliás, eu não sabia sequer o nome da minha companheira, da minha namorada, e ela também não sabia o meu. Fomos descobrir os nossos nomes, e um pouco mais da história de cada um, depois de presos. Numa organização clandestina é assim que funciona.

Brasileiros – Qual foi o teu papel no roubo do cofre?
A. E. –
Praticamente nenhum. Juarez fez o plano, meu papel foi indicar os participantes de São Paulo. No Rio, o comando nacional se reunia duas vezes por semana. Nessas reuniões ouvíamos informes sobre o andamento do plano.

Brasileiros – A Dilma teve alguma atuação?
A. E. –
Nenhuma, porque a Dilma deixou de participar do comando nacional quando houve a fusão. Voltou depois do racha, depois do congresso de Teresópolis iniciado em setembro de 1969.

Brasileiros – Com que antecedência foi marcado o dia do assalto ao cofre?
A. E. –
Eu pelo menos fiquei sabendo algumas semanas antes. No dia em que a ação ocorreu o comando nacional ficou reunido num aparelho da Barra da Tijuca. Fiquei sabendo que era na Barra depois, quando fui alugar uma casa na região e descobri por dentro que se tratava do mesmo local em que nos reuníamos anteriormente. A Barra, aliás, na época era longe e bem menos cara. Não era o que é hoje.

Brasileiros – Vocês tinham algum contato direto com o grupo que participou da ação?
A. E. –
Ainda não havia celulares ou coisas assim. O Juvenal era o responsável. Os cinco ficamos impacientemente esperando por notícias. Ficamos na maior expectativa, torcendo, sem notícias. Mas fomos os primeiros a saber, pois Juvenal e Wellington, que era segurança do Lamarca e vivia no aparelho da Barra com ele, logo depois chegaram e nos contaram. Mas só ficamos sabendo do volume arrecadado depois, acho que no dia seguinte, pois Maurício (nome de guerra) e outros companheiros levaram um bom tempo ainda para contar os dólares e, depois, remover os restos do cofre e do material do aparelho.

Brasileiros – O que foi feito com o cofre depois de tudo?
A. E. –
Acho que as partes do cofre foram arremessadas em algum rio.

Brasileiros – Nunca apareceu?
A. E. –
Os restos do cofre? Acho que não. Mas o local em que ele foi cortado depois a polícia descobriu. Se eu não me confundo, o plano era colocar dentro de um carro e jogar num rio, estava no planejamento. O aparelho seria em seguida abandonado. Você vai deixar lá um cofre cortado ao meio, rastros de 300 e tantos quilos?

Brasileiros – Cada um dos 13 caras que participaram do assalto foi caindo fora logo em seguida?
A. E. –
Qualquer ação era assim. Cada um faz a sua parte e volta pra casa. Ninguém fica por curiosidade ou para se tornar um peso. Trata-se de um risco desnecessário. Cada um era deixado no primeiro lugar seguro que aparecesse. Provavelmente o pessoal que pegou o cofre não tenha ficado mais de cinco minutos perto dele. Não sei como foi, mas a regra era um descer num farol, outro num ponto de ônibus e assim por diante. Só fica quem é necessário para fazer o transbordo, no caso do cofre não dava pra fazer o transbordo na rua, o esquema provável deve ter sido mudança de placa.

Brasileiros – A data do assalto foi 18 de julho?
A. E. –
Foi uma semana e pouco depois da fusão VPR-Colina, que resultou na VAR-Palmares. Na minha cabeça parece que foi no fim de julho ou começo de agosto…

Brasileiros – Como a grana foi repartida? Quanto tempo durou essa grana?
A. E. –
Boa parte acabou sendo apreendida pela polícia. Ou melhor, muitos policiais acabaram se beneficiando. No aparelho da Rua Aquidabã, Lins de Vasconcelos, onde fui preso, havia 12 mil dólares. Jamais constaram dos autos. Nunca ninguém nos interrogou sobre eles, nada…

Brasileiros – Logo em seguida vocês foram presos?
A. E. –
Ao longo de mais ou menos uns dois anos esse dinheiro todo caiu. Fui preso em 21 de novembro, pouco mais de um mês depois do congresso de Teresópolis, quatro meses depois da ação do cofre. Quem fez a prisão, embolsou. Também jamais apareceu uma arma nova, que hoje seria valiosa, que estava no aparelho.

Brasileiros – E que arma era essa que foi apreendida e jamais apareceu?
A. E. –
Era uma pistola Colt 45, a arma com que o capitão Lamarca se formou na Academia Militar e da qual ele cuidava muitíssimo bem. Quando a VAR sofreu o racha do qual surgiu a VPR 2, o Lamarca foi pra VPR 2 e eu fiquei na VAR. Só que a nossa amizade era muito grande. Ele me deu de presente essa arma de recordação. Quando eu caí, ela estava em cima da mesa da Rua Aquidabã, 1.542. Essa arma jamais apareceu no inquérito. Talvez daqui a 10 ou 15 anos ela seja vendida para alguma casa de objetos raros… a arma que pertenceu a Lamarca…

Brasileiros – Eles sabiam que era do Lamarca?
A. E. –
Com certeza descobriram, porque era numerada. Se fosse uma arma comum, seria incorporada ao inquérito.

Brasileiros – Quer dizer que esse dinheiro foi dividido entre vários aparelhos?
A. E. –
Foi dividido em vários aparelhos, guardado em diversos lugares, não me pergunte quais porque essas coisas não se fica sabendo numa organização onde o segredo é a vida. Foi depois objeto de muitas disputas…. depois que houve o racha entre as organizações.

Brasileiros – Você não sabe quem guardou, quanto cada um ficou encarregado de preservar?
A. E. –
Não. Só fiquei sabendo dos malotes que, depois, causaram problemas políticos, quando houve a divisão do espólio em função do racha. Sei que 900 mil dólares foram guardados pelo embaixador da Argélia. O contato com o embaixador era do Juvenal. Mas, para que outros pudessem recuperar o dinheiro, teriam que dizer uma senha e mostrar as duas metades de uma nota de um dólar serrilhada ao meio. Eu e a Lia ficamos cada um com uma das metades e conhecíamos a senha. Não pergunte como era, porque não lembro.

Brasileiros – Quem tinha as metades da nota?
A. E. –
Eu tinha uma metade e a Lia a outra. Para retirar teríamos que ser os dois. Com a minha prisão, a única pessoa que poderia retirar os 900 mil dólares passou a ser o Juvenal, que também não teve como fazê-lo. Sei que depois da prisão da Maria do Carmo, a repressão ficou sabendo do paradeiro desse dinheiro, o que acabou gerando uma crise diplomática com a Argélia. Pelos comentários ouvidos na prisão, parece que o governo argelino, depois de longo quiproquó, acabou passando o numerário para a ditadura. Além disso, sei que a Etiene também havia guardado em casa de amigos outros 300 mil dólares…

Brasileiros – Na sequência do cofre e logo depois o racha da VAR-Palmares o que houve? O racha foi por causa da grana?
A. E. –
Jamais racharíamos por uma razão desse tipo. A questão foi de divergência política, acerca de como fazer e como encaminhar o foco guerrilheiro. Claro que, depois do racha, houve uma disputa em torno do espólio em dinheiro e armas da organização, mas a causa do racha não foi essa.

Brasileiros – O congresso teve a ver alguma coisa com o cofre?
A. E. –
Nada a ver. Claro que o cofre viabilizou materialmente o congresso, mas foi só isso.

Brasileiros – Uma das discussões no congresso foi a respeito da grana do cofre?
A. E. –
Não, não foi. O motivo do congresso foi outro. A conferencia de abril da Ó pontinho (ex-Colina) não tinha tido os procedimentos normais de um congresso, discussão a partir da base, eleição de delegados. Então eles decidiram fazer um congresso posteriormente. Mas, no meio do caminho, houve a fusão. Por isso, a VAR decidiu assumir os compromissos dos companheiros da Colina e agendou o congresso para setembro… Acontece que, no congresso, houve o racha dos 7. Entre os sete estavam o Lamarca, o Darcy, o Moisés, o Cláudio, o Mário Japa, o Lungaretti…

Brasileiros – Você brigou com Lamarca?
A. E. –
Não foi bem com ele. A discussão aconteceu no final da madrugada, depois que os sete haviam decidido rachar, após procurar diferenças políticas importantes, sobretudo com a Dilma e o Breno, e não achar.

Brasileiros – A Dilma foi um dos pivôs da cisão?
A. E. –
Ela e o Breno, como já disse, eram mais articulados, defendiam suas posições com mais ênfase. O congresso, que deveria durar uns seis dias, acabou durando uns 25 ou 26, pois o Lamarca e o Cláudio buscavam as diferenças a todo custo, mas não encontravam. É que ela e o Breno tinham maior estofo teórico e os dissidentes não conseguiam formular com clareza suas posições. Os sete fizeram uma reunião paralela durante a madrugada e decidiram rachar. Depois disso me acordaram, para intimar que os acompanhasse. Entrei na sala em que estavam, uma mesa com oito lugares e uma cadeira vazia, com sete revólveres apontados para o lugar vago. Informaram o que haviam decidido, argumentando que haviam decidido desfazer a fusão, e que eu os acompanharia politicamente. Evidentemente não concordei com isso e tivemos um debate progressivamente mais quente. O caldo entornou quando o Nóbrega falou que o João Domingues seria “uma marionete sua… aquele bostinha que acabou de morrer…”

Brasileiros – Ele tinha morrido?
A. E. –
Tinha acabado de morrer há um mês e pouco. Ele e o Fernando Ruivo tiveram um tiroteio, depois de identificados no Pacaembu. O Ruivo morreu na hora. O João Domingues fugiu com uma bala cravada no peito, mas acabou preso na casa de uma irmã em Osasco. Foi torturado no Hospital Militar, onde recebeu mais três balaços no peito. Era um companheiro de quem eu gostava muito, bastante valoroso, amigo, solidário. Quando foi ofendido daquela maneira, perdi a cabeça, joguei uma caneca de café no Nóbrega. Ele se levantou com uma arma na mão, eu peguei a primeira que consegui. Mas o dia estava clareando, o pessoal da cozinha interferiu, o resto do congresso acordou, desceu e foram postos panos quentes.

Brasileiros – Eu tinha ouvido que houve uma briga entre Lamarca e a Dilma.
A. E. –
Quem falou disse errado. Fora as discussões políticas, civilizadas, o momento emocional foi esse que acabei de lhe narrar.

Brasileiros – E você fez o quê?
A. E. –
Fomos contidos pelo pessoal do deixa-disso, a turma da cozinha e os participantes do congresso que acordaram. O próprio Lamarca contribuiu para o apaziguamento. Claro que o congresso foi interrompido nesse momento. As duas alas passaram então a debater os termos do racha, ou seja, a divisão do espólio. O grupo dos sete pediu somente 250 mil do dinheiro brasileiro da época

Brasileiros – Ainda era o cruzeiro.
A. E. –
Ainda era o cruzeiro? Não era cruzeiro novo? Além disso queriam quase todas as armas. No entendimento, por proposta da VAR, o volume de dinheiro passou a 250 mil dólares e se acertou uma divisão mais equitativa das armas. Mas isso, depois da desmobilização do congresso, não aconteceu, pois a Lia e o Juvenal decidiram participar do racha e recusaram-se a retirar o dinheiro que estava na Embaixada da Argélia. Como eles levaram junto a Inês Etiene, os 300 mil que ela guardara com amigos também não seriam ressarcidos. Em consequência disso, o Mariane, que saíra do quartel com o Lamarca, mas decidira ficar na VAR, e que era o responsável pela nossa armaria, também deliberou não repassar as armas. Foi um momento muito tenso na vida da organização e na história da esquerda brasileira.

ESPINOSA E DILMA X FOLHA

A Folha de S.Paulotentou usar uma entrevista de Antonio Roberto Espinosa à repórter Fernanda Odilla para produzir uma falsa manchete: Grupo da Dilma tentou sequestrar Delfim.
Nem o grupo era da Dilma, nem ela jamais planejou o sequestro. Nem ele ocorreu. Dilma era uma dos seis comandantes da organização. Portanto não era a chefe única como dá a entender a manchete. Além do mais, ela não cuidava da área militar, praia do Espinosa.
O que Espinosa disse de fato – e que o jornal relutou em publicar na seção de cartas, dias depois – é que ele, na condição de comandante nacional militar e um dos seis comandantes da VAR-Palmares, autorizou a seção de São Paulo da organização a fazer levantamentos tendo em vista um possível sequestro do “quadro mais inteligente dos militares”, segundo Espinosa.
Tanto ele quanto Dilma moravam no Rio, mas atuavam em campos diferentes. Ele no militar, ela no ideológico.

Espinosa não tinha por que comunicar Dilma sobre o sequestro. Primeiro, porque ele estava apenas na fase de planos. Depois, guardar segredo era importante. Espinosa desafiou o jornal a colocar o áudio da sua entrevista no site. Teve o apoio do ombudsman, mas a ideia não vingou.
Na mesma matéria, a Folhaestampa uma ficha policial da Dilma que tanto a ministra quanto Espinosa repudiam, tachando-a de falsa. Dilma jamais foi acusada de praticar assaltos durante os interrogatórios, como está ali, garantem os dois.
A ministra tem solicitado que a Folha informe aonde conseguiu a tal ficha. Suspeita que tenha sido produzida há pouco tempo e seja a mesma que circulava na internet desde o final de 2007, denunciada no blog de Celso Lungaretti, ex-militante da VAR-Palmares.

LEIA MAIS ALEX SOLNIK

www.semcortes.com


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