O contador de histórias

Fotógrafo publicitário desde os anos 1960, o curitibano João Urban conseguiu conciliar, com a mesma eficiência, dois campos da fotografia que parecem distantes e, para muitos, incompatíveis: o trabalho documental e autoral com a fotografia de produtos, direcionada ao mercado publicitário. Essa aparente contradição, Urban explica com uma frase rápida como um clique: “A publicidade bancou o artista”. E quando a publicidade dá uma folga, é a deixa para que o “contador de histórias”, na definição do próprio Urban, entre em cena.

“Entendo que a minha fotografia está muito mais próxima do texto que das artes plásticas; muito mais próxima da poesia e da literatura que das artes visuais. Procuro, sempre, escrever com as minhas imagens, por isso me considero um contador de histórias, não um artista plástico”, diz Urban.
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Nascido em 1943, Urban teve, desde cedo, uma relação próxima com o objeto que ia lhe acompanhar por toda a vida. Influenciado por um tio, fotógrafo amador, logo descobriu as maravilhas que a câmara escura era capaz de revelar. A curiosidade inicial do então garoto foi logo se transformando em coisa séria. Um dos momentos decisivos na trajetória de Urban foi quando ele viu, pela primeira vez, os ensaios fotográficos da Farm Security Administration, o serviço de previdência rural da época da depressão norte-americana. As imagens da pobreza nos rincões norte-americanos, que chegavam aqui por meio dos Anuários da Popular Photography, tiveram o efeito de um soco no estômago para o jovem fotógrafo que, à época, já esboçava uma militância política contra a ditadura militar que se instalara no Brasil em 1964. Formaram-se aí as bases do trabalho de cunho social que Urban desenvolveria ao longo de sua brilhante trajetória como fotógrafo.

“Nessa época, comecei a fotografar peças de teatro de Brecht e passeatas estudantis”, diz Urban, que começava também a ampliar seus conhecimentos fotográficos com a descoberta da mítica revista suíça Camera, editada por Allan Porter. A revista, assim como os Anuários da Popular Photography, foi decisiva para reforçar sua vocação pela fotografia documental. “A Camera, com certeza, foi minha verdadeira escola de fotografia. Lia todos os artigos, sem descartar nenhum.” Foi por meio da revista suíça que o autodidata Urban conheceu melhor o trabalho de ícones como Henri Cartier-Bresson e de um nome que seria, durante anos, sua maior influência: August Sander. Alemão nascido em 1876, Sander foi responsável por um trabalho bastante original com operários em seus locais de trabalho, uma fotografia que buscava revelar os estratos sociais da Alemanha do início do século XX. Perseguido pelos nazistas, o fotógrafo teve grande parte de sua produção destruída pela polícia de Hitler. Considerado um dos grandes retratistas da história, Sander e sua fotografia de corte sociológico já podem ser percebidos, como influência, nos retratos em preto e branco dos boias-frias, primeiro trabalho de fôlego de Urban e mote de sua estreia em livro, no ano de 1984. Por uma dessas coincidências inexplicáveis, Boias-frias – Tageluhner in Suden Brazilien sai primeiramente na Alemanha, por uma pequena editora, dedicada à publicação de trabalhos sobre a América Latina, chamada Edition Diá. O fã de Sander começava a ser reconhecido justamente na terra onde o ídolo fez história.

“Eu tinha exposto na Bienal de Veneza, na seção de jovens fotógrafos, e mostrei o catálogo para o meu futuro editor. Ele se interessou e o livro foi publicado na Alemanha e na Suíça”, explica. Apesar do tratamento gráfico do livro ter ficado aquém do esperado, a edição serviu como uma espécie de cartão de visitas para futuros trabalhos. Quatro anos depois, Boias-frias ganharia edição nacional, editada pela Imprensa Oficial do Paraná. O ensaio, que lhe consumiu cinco anos de trabalho, de 1976 a 1980, além de revelar a vida sofredora de trabalhadores braçais, é também um registro importante de um momento de ruptura na economia do Paraná, um Estado essencialmente agrícola. Em meados dos anos 1970, o Paraná vive seu mais radical êxodo rural, com milhões de pessoas saindo do campo e indo para as cidades, sobretudo para a capital Curitiba, que em pouco tempo quase dobrou sua população. Com as plantações de café dizimadas pela geada de 1975 e o sistema de colonato em crise por conta da mecanização da lavoura, agricultores abandonaram suas terras para tentar a sobrevivência nas cidades. Os retratos dos boias-frias congelam esse período, em que trabalhadores procuram um novo espaço em um momento de reorganização social.

Para Nego Miranda, outro grande nome da fotografia paranaense, o olhar aguçado para questões sociais é o grande diferencial de Urban. “O João é, sem dúvida, a grande referência da fotografia no Paraná. Assim como os grandes mestres, ele tem um olhar único, que capta coisas que passam despercebidas pela maioria das pessoas. Além disso, seu campo de visão está voltado unicamente para o homem”, diz Miranda.

O jornalista José Carlos Fernandes, que comandou o caderno cultural do jornal Gazeta do Povo, o principal diário do Paraná, segue a mesma linha de Miranda ao enumerar as qualidades da fotografia de Urban. “O João é um sujeito bastante fiel a seu estilo documental, mas surpreende no tema. De minha parte, gosto da série sobre manifestações religiosas populares. É um assunto aparentemente fácil, mas deve ser uma lenha fugir dos clichês. E ele consegue, já que as fotos trazem uma certa ordem, uma organização, que faz todos aqueles santos parecerem membros de uma convenção de RH”, diz o jornalista, referindo-se ao ensaio Aparecidas, publicado em livro em 2002.

Poloneses
Assim como Bresson é associado ao “momento decisivo” e Sebastião Salgado aos garimpeiros cheios de lama de Serra Pelada, é praticamente impossível falar de João Urban e não se lembrar dos imigrantes poloneses do Sul do Brasil. Os ensaios sobre os “polacos” não são apenas o seu trabalho mais conhecido, mas também o mais revelador da alma desse descendente de poloneses que foi criado em meio a costumes antigos trazidos da terra natal dos pais.

Na casa em que recebeu a reportagem da Brasileiros, uma antiga construção polonesa erguida pelo próprio pai e hoje transformada em estúdio, Urban montou seu primeiro ateliê. Hoje, praticamente incorporado ao centro de Curitiba, o antigo bairro do Campo da Galícia era, nos anos 1940, quase que uma filial de Varsóvia no Brasil. Pelas ruas de terra, o que se escutava nas esquinas e nos pequenos comércios era gente falando polonês. Em casa, a língua materna dos pais e avós dividia as atenções com o português. Dona Janina, matriarca dos Urban, se desdobrava entre a confecção de pierogi, os irresistíveis pasteizinhos de ricota e batata, e peças de teatro que escrevia em polonês.

Foi nesse contexto, entre a valorização da cultura polonesa e as transformações dos novos tempos, que Urban cresceu. O período em que era “comissário político” apenas retardou, momentaneamente, o desejo de resgatar reminiscências da infância. Após o fim da série com os boias-frias, Urban volta o olhar para seus ancestrais, em um trabalho que marcaria de modo definitivo sua condição de fotógrafo preocupado com o resgate da memória.

E, por fina ironia, aquele que ficaria conhecido como o seu principal trabalho autoral, nasceu de uma encomenda. Mais uma vez, o publicitário dava uma mãozinha para o artista. Por conta da vinda do Papa João Paulo II ao Brasil, em 1980, Urban foi escalado por um banco estatal, o Badep (extinto em 1991), para fazer fotografias de imigrantes poloneses que viviam no Paraná. Começava ali, despretensiosamente, um trabalho que se estenderia por mais de duas décadas.

“Minha primeira experiência fotografando os ‘polacos’ foi em Tomás Coelho, uma colônia fundada em 1876, pertinho de Curitiba. Ali, comecei a resgatar coisas da minha infância que me levaram a outros lugares”. De Tomás Coelho, Urban foi para Cruz Machado, no extremo sul do Estado, onde uma grande colônia de poloneses e ucranianos vivia ainda como se estivesse no Leste europeu. Nesses lugares, além de fazer uma viagem sentimental ao próprio passado, Urban encontrou o ambiente e os personagens propícios para ir fundo ao que chama de “fotografia de enfrentamento”. Ali, frente a frente com parte de sua história, o fotógrafo partia para um trabalho pautado em uma relação de troca com o fotografado, o que o levaria a uma “fotografia de retrato”.

“Eu só faço fotografias consentidas, em que estabeleço um envolvimento epidérmico com o personagem. Existe uma troca entre quem fotografa e quem é fotografado”, explica Urban. E é por meio dessa troca que o fotógrafo consegue revelar a simplicidade daqueles imigrantes que não conservam apenas o sobrenome complicado, mas também uma série de pequenos hábitos, como a fervorosa fé no catolicismo, herdados dos pais.

Mas, para desenvolver uma fotografia tão intimista e próxima dos personagens, a origem “polaca” do fotógrafo foi imprescindível. “Todos os poloneses me conheciam, sabiam o que eu estava procurando e colaboravam na hora de fotografar. No trabalho com os tropeiros foi a mesma coisa. Eles me acolheram e por isso pude desenvolver os retratos de acordo com a minha preferência.” No caso dos poloneses, o contato foi tão intenso, que algumas pessoas foram fotografadas em mais de uma ocasião ao longo dos anos. “No trabalho feito com os imigrantes poloneses, o João se envolve de maneira profunda. Ali está a tônica de seu trabalho, em que o ensaio parte de uma pesquisa séria, anterior ao ato fotográfico”, diz Rosely Nakagawa, curadora do projeto Encontros com a fotografia. Curadora de prestígio, Rosely acompanha o trabalho de Urban desde os anos 1980, quando ambos estavam envolvidos com as “Semanas de Fotografia da Funarte”, uma espécie de feira itinerante que rodava as principais capitais do País e com o objetivo de aproximar fotógrafos de diferentes regiões.

Entre idas e vindas, Urban dedicou 24 anos ao projeto dos poloneses. A partir da exposição inicial, realizada quando o Papa esteve no Brasil, muitos outros projetos se desenvolveram. Inclusive uma exposição, em 1988, na própria Polônia, patrocinada pelo consulado polonês no Brasil. Dessa experiência nasceu, em 2004, o livro Tui i Tam – Memória da imigração polonesa (Edições Mirabilia) – tui i tam, aqui e lá, em polonês. O livro reúne as imagens dos anos de peregrinação de Urban pelos labirintos da memória polonesa no Brasil e também os registros de sua passagem pela Polônia.

Com mais de dez livros publicados e dezenas de mostras, entre individuais e coletivas, no currículo, aos 66 anos João Urban está em plena atividade. Além da participação no projeto da Fnac, o curitibano esteve, em setembro, na capital paraguaia para uma retrospectiva de sua obra. Este ano lançou, também, o livro Mar e mata – a serra, a floresta e a baía (Aguaforte Hipereditora), em que registra imagens da região litorânea do Paraná. Por ora, deixando de lado a fotografia publicitária, Urban terá mais tempo para seus trabalhos autorais. “Agora estou totalmente à disposição dos documentários. Vou fazer aquilo que sempre me deu tesão”, afirma.


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