O dentista que restaura arte

Nos fundos do antigo Palácio dos Campos Elíseos, que foi sede do governo estadual paulista entre 1915 e 1965 – e transferido para o Morumbi -, uma figura solitária trabalha aos pés de uma escultura demoníaca. O tal diabo, envolvido por uma serpente que lhe serve de rabo, é uma estátua em mármore datada de 1914 e assinada por Cesare Zache. O homem grisalho de jaleco branco é o restaurador Márcio Antonio Leitão. Seus cabelos encanecidos bem penteados e a barba aparada lhe dão um aspecto de um daqueles pintores de boina, criando ao ar livre no bairro parisiense de Montmartre. A voz pausada e os movimentos precisos traem-lhe a formação.

Márcio veio da área de saúde. Primeiro, cursou Odontologia, especializando-se em reabilitação oral e cirurgia bucomaxilo. No Hospital das Clínicas, fez cirurgias de mandíbula. Quando se cansou da área médica, foi para a Europa aperfeiçoar-se em pintura, uma vez que já era um artista laureado, de formação acadêmica, participara do Salão Paulista de Belas Artes, tornando-se membro de júri de seleção de premiação. Ou seja, até então nas horas vagas vinha manejando o pincel com a mesma destreza com que lidava com o bisturi.
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Em Barcelona, sem maior empolgação, matriculou-se em um curso de restauração. Entusiasmou-se. Quando voltou a São Paulo, já voltou restaurador. A mudança de atividade não foi fácil. Levou tempo para entrosar, pois a área é rarefeita e quem trabalha como free lancer precisa ser muito conhecido no mercado. Márcio bateu em muitas portas. Hoje, fica em casa atendendo a ligações. Naturalmente pepinos, uma vez que “se a coisa é fácil, eles mesmos fazem”, diz. Pepinos como o diabo dos Campos Elíseos, onde o restaurador procurava tirar a infiltração de hidrocarboneto do mármore. “Coisa para cara louco, como eu”, salienta. “Porque é preciso ter muita paciência.” Funciona assim: quando o restauro é muito complicado, recorre-se a Márcio.

Além de sua própria empresa, a Restaurum, Márcio trabalha para a CO, a Atryans e, há muitos anos, para a Companhia do Restauro. Ele começou a segunda profissão com obras de arte e objetos antigos e, ainda hoje, tem alguns clientes “do coração” que atende quando consegue ajeitar a agenda. Agora, sua atenção está voltada, em especial, para edificações tombadas pelo Patrimônio Histórico. Segundo Márcio, o Brasil está começando a despertar para o restauro, não pelo lado artístico e cultural, mas pelo fator econômico, uma vez que um valoroso patrimônio estava se perdendo.

É muito trabalho – e árduo. Além do desgaste promovido pelo tempo, vândalos, pixadores, “bem-intencionados” e até mesmo apaixonados, colaboram com todo o entusiasmo para a deterioração das peças públicas.

Entre outros problemas enfrentados, Márcio refez o chafariz e 12 alças dos 14 peixes e 14 vasos em volta do Monumento do Parque da Independência, uma cópia dos jardins do Palácio Versailles, construída em 1922, em homenagem ao Centenário da Independência. No Largo do Arouche, teve de esculpir as duas orelhas de uma cachorra em mármore de Carrara e outro par para a vaquinha da escultura A Menina e o Bezerro. Na entrada do prédio do escritório do prefeito Kassab, criou um nariz novo em granito Mauá para um monumento criado por João Batista Ferri, chamado Guanabara. Por sua conta, Márcio restaurou várias igrejas, entre elas a Nossa Senhora do Ó, dedicando-se apenas à parte original.

“Onde está mexido, não toco”, ressalva. Márcio tem um projeto esperando licitação para restaurar o Conservatório Musical na Avenida São João – onde Mário de Andrade deu aulas. Algo grandioso. Os planos começam pela engenharia, pois preveem rebaixar o piso; e se estendem pela arquitetura, com a criação de restaurante na área inferior. O problema é que, nesse caso, em vez do restauro, a maior preocupação diz respeito ao aproveitamento do espaço. Márcio está preocupado com o forro trabalhado, a aurificação das paredes e as pinturas murais decorativas. Está tudo muito deteriorado.

Segundo Márcio, os projetos de restauro passaram a incluir um historiador e um arqueólogo, pois se encontra muita coisa no em torno, faz parte da história do monumento e da identificação. Ainda assim, ninguém quer contratar restaurador, porque é caro. Para sanar o problema, Márcio criou um projeto que transita na Assembleia Legislativa, apresentado pelo deputado estadual Marcos Martin (PT), propondo a primeira escola superior de restauração do Brasil, um curso de, no mínimo, quatro anos. A ideia principal não é oferecer ensino de extensão a arquitetos e engenheiros, mas formar profissionais entre os jovens que não puderam entrar em uma faculdade ou tiveram de trabalhar cedo. Para isso, ele tem o apoio de ONGs. Por intermédio delas, Márcio pretende conseguir pelo menos 60% de bolsas e tornar obrigatória a contratação em toda obra de um restaurador formado.

Como diz, o restaurador só é chamado na hora dos problemas. Enquanto eles não surgem, as grandes empresas “quebram o galho”, deixando por conta do mestre de obras e seus comandados. Resultado: quem vê de longe acha que está bonitinho. Mas o trabalho logo desbota, cai. Márcio afirma que um bom restaurador tem de entender mais de química do que de arte e lembra que há gerentes de obras que não compreendem o que ele instrui e acabam comprando material inadequado.

Dito isso, o homem grisalho volta a se ocupar do diabo de mármores. Ele passa um hidrofugante no monumento. Explica que o material age sobre pedra, mármore ou argamassa, não como obturador de poros, mas criando uma carga eletrostática negativa. Quando a água bate, ele repele. Não há penetração. Márcio conta que, entre os principais agentes da deterioração estão a água, o Sol, gás carbônico e gás sulfídrico das indústrias. Este último (o H2S) é o pior. Ao juntar-se com água (H20), resulta em ácido sulfúrico (H2SO4).

De longe, a estátua de um cardeal, provavelmente um Richelieu, sem assinatura, observa com um ar superior. Está instalado nos jardins do palacete do cafeicultor Elias Antônio Pacheco e Chaves, projetado pelo arquiteto alemão Matheus Häusler – que se inspirou no Castelo d’Écouen, nas proximidades de Paris – e inaugurado em 1898. No portão principal, que dá para a Avenida Rio Branco, havia um adereço com um E (Elias) e um C (Chaves). Ele foi invertido quando o governo estadual ocupou o casarão, para significar Campos Elíseos. “Champs-Elysées”, explica o restaurador Márcio Antonio Leitão. “Francês era chique.”


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