Para um bom número de brasileiros que vive no Sul e Sudeste do País, qualquer menção ao sertão nordestino ainda evoca tradicionais imagens de destituição, miséria, abandono e atraso. Invariavelmente, essas amargas lembranças servem apenas para reforçar a opinião de que uma realidade tão implacável e inóspita jamais se renderá a qualquer política pública ou iniciativa privada que vise o desenvolvimento da região. Assim, dentro desse estereótipo nacional, nada é capaz de prosperar perante o sol escaldante, solo seco e os desolados jardins de cactos que dominam a paisagem da caatinga.
Essa visão fatalista ignora, porém, que o sertão nordestino, há séculos, serve de palco para o desenrolar de um grande épico de sobrevivência, construído dia a dia pela ingenuidade natural e obstinação de todas as formas de vida que lá habitam. Formada por uma vegetação altamente adaptada à falta crônica de água, ornada por uma flora típica e própria, a caatinga há muito deixou de ser considerada, pelo menos em termos botânicos, uma simples degeneração da mata atlântica. Na realidade, trata-se de um dos biomas mais especializados do mundo, parte integral e única do extraordinário patrimônio natural brasileiro. Todavia, diferentemente da floresta amazônica, do pantanal e até mesmo do cerrado, a caatinga ainda não encontrou seu espaço próprio na consciência nacional, que vira e mexe prefere rejeitá-la, como se a mesma fosse uma filha a quem se nega paternidade, nome e pensão.
Mas como ignorar essa filha de 71 milhões de hectares (aproximadamente 11% do território nacional) sem ao menos conhecê-la e tentar entender o porquê dessa sua obstinação insana pelo continuar a viver, em condições nas quais a maioria de nós simplesmente se renderia ao inevitável?
Curiosamente, o fascínio que atrai milhares de brasileiros a visitarem as inúmeras e exuberantes praias do Nordeste, esvaie-se em segundos quando o sertão é mencionado como uma nova provável fronteira de desenvolvimento que começa a se desenhar no horizonte futuro do País.
Improvável, respondem de imediato os mais gentis e cautelosos. Impossível, bradam os chamados realistas. Inimaginável, decretam os fatalistas. O que pode crescer e prosperar nesses infindáveis e desolados jardins de cactos, perguntam todos em coro?
Durante uma viagem de alguns dias por muitos recantos extraordinários do interior da Paraíba e do Rio Grande do Norte, eu encontrei a resposta para essa pergunta. E ela não poderia ser mais singela e simples.
São flores, muitas flores, que brotam desses jardins de cactos, outrora abandonados pelo ocaso predito, para colorir a paisagem desse sertão com matizes de esperança e sonho. E é a partir dessas ainda frágeis florescências, tão inesperadas quanto belas, que desabrocha a concreta sensação para quem o visita, que o destino do Nordeste brasileiro, dado em um passado recente como natimorto inviável, pode se transformar em uma inesperada fronteira de desenvolvimento e progresso, com repercussões significativas para todo o Brasil e o mundo. Em bom português, para quem tem olhos e quer ver, o Nordeste pode e tem tudo para se transformar na nossa Califórnia.
Os primeiros sinais do que está por vir podem ser obtidos no interior paraibano, nas primeiras plantações experimentais do pinhão manso (Jatropha curcas), uma planta oleaginosa que cresce nos tabuleiros do sertão, muito bem adaptada à falta d’água crônica. Em um futuro próximo, essa e outras culturas, valendo-se do casamento da moderna biotecnologia com uma nova agricultura do semiárido, podem transformar as terras do sertão na maior usina de biocombustível do mundo. Isso sem falar nos raios do sol, que atingem o solo paraibano em cheio, prontos para iluminar todo o sertão e, no processo, revolucionar o desenvolvimento econômico e social da região.
Do sertão paraibano ao seridó potiguar é um pulo. Mas a paisagem parece a mesma. Grandes vales, cercados por serras imponentes e silenciosas, abrigam açudes que mais parecem imensos pratos rasos d’água. Troncos inquebráveis de Jurema protegem infindáveis campos de capim que, de tão queimados, se confundem com imensas cabeleiras albinas soltas ao vento.
Jardins de cactos resistem ao calor implacável e proliferam por todas as partes. Escoltados por verdadeiras armaduras de juazeiros, crescem até nas fendas das pedras, como que para caçoar dos incautos que duvidam de seus obcecados sonhos de vida. Horas depois de qualquer precipitação, por mais mínima que seja, apressam-se a expor suas flores vermelhas, talvez para convencerem a si mesmos de que ainda estão vivos.
O espanto continua quando tomamos o rumo do litoral norte do Rio Grande do Norte. Incontáveis campos petrolíferos nos guiam
até o extremo norte do Estado. Do nada, surge de repente o Polo Industrial de Guamaré. Construído e operado pela Petrobras, o polo processa petróleo e gás provenientes dos campos terrestres do RN e dos campos marítimos de Ubarana e Agulha. O polo de Guamaré também abriga uma das maiores refinarias de biodiesel do País.
De Guamaré, segue-se imediatamente para as montanhas de sal, esculpidas pelas salinas de Macau. O vento equatorial não dá descanso e justifica a iniciativa de espalhar turbinas eólicas por todo o litoral da região. Respira-se energia renovável por ali.
Já não são jardins de cactos que nos ladeiam, mas sim imensas plantações de frutas que se espalham pelo vale do Rio Açu. Milhares de bananeiras altaneiras movem-se dengosas ao sabor da brisa, definindo os contornos de um oceano verde que ocupa quilômetros e mais quilômetros de terras sertanejas. Esse oceano beneficia-se de artérias de vida, oriundas da gigantesca Barragem Armando Ribeiro Gonçalves, do Açude Açu.
Em Angicos, as fachadas das casas estão recém-pintadas. Como em outras cidades do interior, muitas motocicletas novas cruzam as ruas da cidade carregando casais de namorados. O povo na rua sorri e acena para o carro que traz visitantes do litoral. As crianças se vestem de Ronaldinho e Kaka. Alguns ainda usam camisas do Palmeiras, demonstrando que a fé continua grande no sertão.
No caminho de Angicos para Lajes, a presença constante dos canos da adutora de água que corta o Estado nos acompanha. No meio do caminho, o restaurante do Posto BR serve churrasco misto com arroz, feijão, molho vinagrete, maionese, mandioca e farinha. O melhor frango grelhado dos últimos tempos eu comi ali.
Na nossa última parada, encontramos o vilarejo de Residência, no caminho de Santana do (não dos) Matos. Avistamos apenas uma pequena escola, com duas salas de aula, uma cantina e três minúsculos, mas asseados banheiros: um feminino, um masculino, e um dos professores. Antenas parabólicas pontuavam as poucas casas do entorno.
Da escola surgiu um grupo de alunos que prontamente aceitou trocar conversa fiada conosco. Entre eles, o mais animado era Gustavo. Em alguns minutos, fiquei sabendo que depois de um atropelamento, Gustavo teve de passar meses internado, recuperando-se de uma cirurgia no fêmur fraturado. Dada tanta adversidade, perguntei a Gustavo o que ele queria ser quando crescer. Prontamente, ele me respondeu que pretendia ser cirurgião ortopédico. Viu tanto raios-X no hospital que já sabia reconhecer todos os ossos do corpo. Assim, metade do trabalho ele já domina. Faltavam só alguns detalhes.
Estupefato, perguntei aos colegas de Gustavo o que eles queriam ser quando crescessem. Arqueólogo, respondeu o menino mais próximo. Advogada, disse a menina sorridente de cabelos presos. Dentista, professora, artista, responderam os outros.
Tantos sonhos, tanta esperança, como se um outro líquido mágico começasse a regar a terra vermelha e queimada do sertão.
Como me disse Gustavo, primeiro chegou a água, depois a eletricidade. Daí, chegaram as antenas parabólicas e a televisão. Por isso, do Brasil ele sabe tudo e para tudo ele tem uma opinião. Dos problemas do tráfico aéreo à criminalidade das grandes cidades, Gustavo está a par da agenda nacional.
Para Gustavo, o sertão está muito bom e só tende a melhorar. Afinal de contas, disse ele, não foi daqui de perto que saiu um retirante que virou presidente do Brasil? Assentindo em silêncio, procurei gravar cada detalhe daquela florada humana desabrochando, ali, no lugar onde poucos imaginaram que cactos também desse flor.
*Paulistano e palmeirense de nascença, é professor titular de Neurobiologia e codiretor do Centro de Neuroengenharia da Universidade Duke, na Carolina do Norte (EUA), idealizador e diretor do Instituto Internacional de Neurociências Edmond e Lily Safra em Natal (RN). Faz parte do Conselho Editorial da Brasileiros.
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