Em 1933, aos 30 anos de idade, Pierre Verger saiu pelo mundo com uma câmera na mão e nenhuma ideia na cabeça. Fugia do abafamento familiar e da mesmice de uma cidade que, no entanto, sempre se caraterizou por uma buliçosa efervescência cultural. Na companhia do pintor Eugène Huni e de uma Rolleiflex, trocou Paris pelas ilhas dos Mares do Sul, a “Polinésia feliz” celebrada e retratada por Paul Gauguin.
Verger não tinha nenhum projeto, a não ser fotografar, a esmo, sem compromisso artístico, nem mesmo documental. Buscava, diz o antropólogo francês Jérôme Souty, autor de Pierre Fatumbi Verger: do Olhar Livre ao Conhecimento Iniciático (Editora Terceiro Nome, 448 páginas), “um modo de vida desapegado”, podendo percorrer os recantos da Terra como um observador quase oculto. “Quando tiro fotos, não sou eu quem fotografa, é algo dentro de mim que aperta o disparador”, explicava. “Não procuro fazer um belo enquadramento: o lugar das pessoas e das coisas parece evidente no visor.”
Esmerando-se nesse grau zero de interferência, fazendo-se de invisíveis, ele e sua câmera, o impenitente viajor observava a cena passivamente, como se a vida que retratava não lhe pertencesse. Nisso, lembra outro clássico das lentes, o americano Walker Evans (1903-1975), a quem chegou a conhecer numa passagem por Chicago, em 1946.
[nggallery id=14778]
Verger trafegava ao sabor de “um instinto que, sem sabermos, controla nossos atos e nos faz agir por impulsos repentinos em que a razão não entra”. Quando a razão se retira, é a emoção que assume. Chegou ao Brasil em 1947, depois de morar um ano em Buenos Aires e quatro, no Peru. Primeiro, o Recife, depois Salvador. Ali, Verger foi sacudido pela paixão que lhe consumiria as cinco décadas seguintes: o negro e a culltura afrobrasileira. Ele próprio, em carta ao antropólogo Alfred Métraux, estranhou a fanática adesão de “um filho de burguês europeu”. Fez de Salvador seu lar até sua morte, em 1996, aos 93 anos. Os estudos afros prosperavam na Bahia quando Verger desembarcou por lá. Verger acrescentou a eles sua câmera e sua curiosidade. Descobriu o candomblé e seus ritos coloridos e frenéticos. Passou a se vestir à africana. Na trilha original da cultura iorubá, cruzou o oceano e mergulhou nas raízes. Longas temporadas no Golfo da Guiné, em Daomé (hoje, Benin). Aprendeu sobre ervas e raízes. Contrariando o código do distanciamento acadêmico, buscou a imersão incondicional no mundo que o fascinava. Na Nigéria, iniciou-se na adivinhação por Ifá. Cabeça feita, renasceu simbolicamente com o nome Fatumbi (“Ifá me deu à luz de novo”). No Axé Opô Afonjá, de Mãe Senhora, assumiu funções nobres de babalaô.
Fotógrafo sempre, botânico eventual, etnólogo relutante (a escrita e a teoria não o encantavam, embora tenha deixado livros fundamentais) – um branco com a alma de um negro. Jorge Amado, que também podia aspirar a tal distinção, disse certa vez de Verger: “De tão extraordinário, parece uma invenção”.
Deixe um comentário