O design não descansa

Entre um fuxico de lã aqui, uma treliça de algodão ali, um cordame lá e uma palha acolá, o design brasileiro segue insinuando-se entre os grandes do setor. Foi o que se viu na 49ª edição do Salão Internacional do Móvel, em Milão – a principal quermesse do design industrial e da art-design -, realizada em abril, reunindo os papas da régua e do compasso, os fabricantes de produtos com alta tecnologia e milhares de visitantes. A Feira de Rho, sede da principal mostra e templo absoluto do design moderno – com a estrutura em velas de aço e vidro – abrigou usos e costumes e produtos dos quatro cantos do planeta. Foram 10 mil novos produtos, nascidos em 2.175 empresas italianas e 367 estrangeiras. [nggallery id=14315] O Brasil compareceu com design de qualidade e como mercado a ser conquistado pelas fábricas do setor. E nem as nossas taxas alfandegárias de 80% impedem o desembarque anunciado no País. Entre elas, a Poltrona Frau, Armani Casa e Bisazza.O Salão Internacional do Móvel sinaliza as tendências, refletindo as preocupações e as necessidades da sociedade moderna, tanto ocidental quanto oriental – cada vez mais ocidentalizada. O uso de matérias-primas em sintonia com o meio-ambiente e a fabricação de produtos de maior eficiência e menor consumo de energia estão na ordem do dia.Nesse campo, beleza sozinha não põe mesa. O consumidor está atento à qualidade de vida. A vigilância civil sobre o tema acende um holofote em toda a cadeia produtiva. Assim, a gestão do ciclo da água e o gasto energético na criação de um produto influenciam a opção do cliente e, por isso, viram slogan publicitário, como alardeiam os folders de lançamento. Madeiras com certificado de origem, papelões, plástico e alumínio recicláveis são algumas das matérias-primas utilizadas na fabricação de objetos “verdes”, ainda que multicoloridos. Resina, cimento, cerâmica, serragem misturada aos polipropilenos (espumas, em geral), que dispensam o uso de colas, ajudam a moldar e a concretizar os projetos.O peso da criatividadeA maratona de seis dias de design cobriu a cidade inteira de eventos. Milão virou uma gigantesca embalagem urbana de vernissages e mostras. Cerca de 500 exposições ocuparam lojas e espaços alternativos, incluindo pátios internos e apartamentos vazios de antigos prédios, fábricas abandonadas, campus universitários, praças e calçadas. Uma festa democrática, sem convite, com convidados e anfitriões se misturando nos papéis. Grandes arquitetos e designers circulavam entre uma mostra e outra.Um dos locais nobres de Milão, a Piazza dei Mercanti, acolheu a mostra Rio + Design, com produtos cariocas que ganharam as páginas dos jornais italianos. O setor moveleiro do Rio de Janeiro tenta se impor em um mercado altamente competitivo, que não dá descontos a nenhum tipo de “jeitinho”. “Aqui podemos medir forças com o design internacional e vemos que estamos trabalhando bem”, diz o designer Indio da Costa. “Eu trouxe uma banheira inteligente. Por telefone, você pode preparar o banho.”O design internacional rende homenagem tanto às raízes do artista quanto à globalização. Assim, valorizam-se os elementos locais, genuínos e, ao mesmo tempo, adapta-se à necessidade do cliente, em qualquer idioma. Difícil definir uma “pátria” para um determinado estilo de design.A falta de limites para a imaginação abate fronteiras e tenta avaliar a criatividade por meio da relação custo-peso-benefício. Ao final, a intrigante conta matemática serve para saber se o produto vale quanto pesa, literalmente. A exposição 13.798 gramas de design foi uma das mais curiosas. Quarenta artistas, entre renomados designers e emergentes, trouxeram criações que exibiam um cartaz com o peso real. A cadeira Coral, com ferro retorcido, invenção dos brasileiros irmãos Campana, pesa 21 kg. Assim, calcula-se o custo do quilo do ferro. A diferença entre o preço de venda e da matéria-prima induz a conhecer o valor da criatividade.Já na Feira de Rho, quatro pavilhões foram usados para as novas cozinhas. Versáteis, elegantes, com materiais nobres – aço especial, vidro reforçado e madeira de lei -, escamoteáveis, mimetizadas, as cozinhas brincam de esconde-esconde. Tudo está à vista ou desaparece em poucos segundos, com um simples toque no controle digital e remoto. Estruturas armadas em cima de dispositivos hidráulicos e mecânicos transformam a cozinha em um espaço híbrido. O forno, a pia, o exaustor, o fogão podem sumir atrás de persianas, ármarios ou embaixo da bancada. Não por acaso, a sala de jantar ou de estar, ao final, se fundem em uma espécie de sala-cozinha.Computadores, estantes divisórias, poltronas e sofás chegam bem perto das bocas do fogão. Sem nenhum problema. Os novos fogões são capazes de ferver a água sem esquentar as panelas e nem recorrer a chamas, anulando o risco de incêndio. A ocupação dos espaços por móveis multifuncionais, com um cantinho para a horta caseira, é uma regra doméstica em voga.Bem ao lado da Feira de Rho foi montado o pavilhão do Salão Satélite, destinado a 700 talentos do design com menos de 35 anos de idade, de 55 países. Esses jovens criativos expõem os protótipos, à espera de um industrial que aposte no projeto. Da China ao Brasil, o Salão atrai muitos head-hunters, treinados pelas empresas para farejar bons negócios. O brasileiro Sérgio J. Matos, nascido em Mato Grosso e radicado em Campina Grande (PB), mostrou um banquinho inspirado nos cactos da caatinga. “Meu trabalho é todo voltado para a cultura e a identidade brasileiras”, explica. “Se uma matéria vem de uma região, tento desenvolver o conceito baseado nela.” Sérgio é o autor de outro banquinho, feito com algodão colorido, fruto da pesquisa da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) da Paraíba.Já o quinteto do Alotof Design Group, de São Paulo, expôs uma série de sofás e poltronas confeccionados com fuxicos, redes de pesca e cordames, em uma união ideal da matéria-prima original e indústria local. “Acho que o fator fundamental é esse mix-cultural que a gente tem”, diz Carlos Marcelo Campos Teixeira, um dos membros do grupo.Tradição e modernidadeTão ousados quanto os artesãos, são os industriais. Eles criam ou colocam à disposição a tecnologia necessária para a produção do objeto. “Em contrapartida à pasteurização da China, vemos grandes empresas buscando o hand-made e um caminho novo para a industrialização do artesanato”, diz o arquiteto e designer Pedro Paulo Santoro Franco. Os empresários quebram a cabeça para concretizar os projetos de grandes designers, como o italiano Gaetano Pesce (dividido entre Bahia, Milão e Nova York), o célebre francês Philippe Starck (que diz em alto e bom som: “Chega de comprar o que não nos serve, as casas estão cheias de objetos que não usamos. Proponho alguma coisa que sirva à existência do homem em contínua transformação.”), o inglês Tom Dixon, os brasileiros Sérgio Rodrigues e Fernando e Humberto Campana. Todos acabam virando garotos-propaganda das próprias criações.Os irmãos Campana enfrentaram mais de 50 entrevistas para jornalistas de todo o mundo. Humberto afirma: “Eu digo que trazemos o lado humano do design. Não é aquela coisa de máquinas, de produção de milhares de objetos. Trabalhamos com o slow design, que exige um tempo maior de elaboração, mas traz a humanização. Muitas vezes, se produz uma peça única e que permite ao operário que trabalhe nela, ser o autor do objeto”.Os proprietários da Casa Venini, a mais tradicional fábrica de objetos de vidro da ilha de Murano, queimaram as pestanas para tocar o projeto dos vasos e das luminárias Esperança, dos irmãos Campana. Os artesãos de Murano, trabalhando com fornos a 1.200 °C, transformaram em obras de arte as bonecas de pano da cultura popular paraibana, unindo-as à tradição milenar dos vidros da ilha veneziana. Elas são feitas à mão e respeitam o processo de criação dos irmãos Campana.Semelhante desafio foi o da Corsi Design Factory para produzir 15 peças em resina líquida, incorporando todo o repertório dos brasileiros com o uso de couro, gravetos, piaçava.A imperfeição da natureza influencia os produtos que, em muitos casos, não têm uma textura uniforme e formas geométricas previsíveis, mas jogam com a superfície irregular e a assimetria como diferenciais. Isso sem falar na contaminação de diferentes materiais, como o mosaico de vidro utilizado como detalhe de uma poltrona de veludo, produzido pela Sics, da Itália. Interação e versatilidade são conceitos que abrem a cortina da casa de amanhã. O bom senso recomenda reciclar. Assim surgiram a cadeira feita com garrafas de água mineral (a Sparkling Chair, da Magis) e uma luminária com 180 estilhaços de alumínio anodizado (para evitar arranhões) cortados com raio laser, da italiana Edra.As casas também entram nesse elenco. Elas incorporam a mobilidade sustentável quando nascem, por exemplo, a partir de um contêiner destinado ao ferro velho. Com o preço dos imóveis nas alturas, uma empresa italiana reaproveitou os milhares de contêineres que chegaram da China e, uma vez descarregados, tornam-se inúteis devido ao alto custo de devolvê-los vazios. A tribo urbana descobre com quantos caixotes de ferro se faz uma casa. Depende do tamanho. A casa oferece tudo o que tem uma residência convencional, com a vantagem de poder ser transportada em uma mudança. O mesmo vale para uma casa em forma de cubo, um convite à anarquia urbana. Com 50 m², ela vem dividida em dois andares. No térreo, estão a cozinha, a sala e o lavabo. No andar de cima estão o banheiro e o quarto. O kit custa entre 60 e 80 mil euros e, como os contêineres, pode ser ampliado e conectado a outros cubos.Crise e criatividadeO design faz conta com a crise econômica que varreu para cima do tapete toda a sujeira financeira escondida ao longo de décadas. A aspiração de todo esse pó imundo pode levar tempo. A queda nas vendas de 23% no ano passado obrigou uma boa fatia do setor a diminuir a marcha e as dimensões dos projetos. Por isso, o evento dedicado aos móveis de escritório foi adiado para o próximo ano.Ousadia sem exageros, contenção dos gastos e criatividade ditam as atuais regras. O investimento no bem-estar deixa de ser um luxo e passa a ser essencial. Como determina um único ideograma chinês, crise é igual a oportunidade. Há espaço para experimentar na realização de produtos sem o desejo de grandes surpresas, mas tendo em mente que as variações de um mesmo tema e a ironia são sempre bem-vindas.Os móveis devem durar uma “eternidade”, como reza o conceito absoluto da reciclagem, ou seja, que não tenham de ser jogado fora. Para tanto, precisa de qualidade absoluta do material e de um desenho atemporal.Um dos segredos de uma decoração ao mesmo tempo racional e emocional está em equilibrar móveis “normais” com um objeto único, “caro”. “Sempre haverá gente disponível a pagar um preço alto por um produto exclusivo, mas isso não anula o fato de elaborar um objeto de design a um custo acessível”, explica Antoine Vauthey, o diretor da ECAL, Universidade do Design de Lausanne. Tudo ganha outro contorno quando o designer do ano de 2009, o holandês Maarten Baas, se apresenta em Milão, deitado em uma cama, em um espaço alternativo, no bairro de Lambrate, periferia da cidade, e vende ao mundo, via internet, um “Iphone Analog Digital app”. Em miúdos: um programa para incluir no Iphone um relógio digital, em que os números são pintados, um a um, a cada segundo. Custa 79 centésimos de euro. Resumo da ópera do design lento: tempo dilatado também é dinheiro.

Vídeo com os irmãos Campana


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