O dia em que o Japão se calou

Para variar, eu estava dando aula de culinária e, por sorte, diferentemente da aula do dia anterior, onde, no mesmo horário ensinava tempurá, naquele dia já tínhamos acabado de cozinhar, quando começou o terremoto.

Tenho experiência em terremotos. Desde que cheguei aqui, há 27 anos, já passei por centenas, sem contar que, se os católicos temem as chamas do inferno e o dia do juízo final, aqui aprendemos a temer o Grande Terremoto de Kanto1 (região de Tóquio)!

Somos treinados a não entrar em pânico, ficar longe de janelas e agachar embaixo de uma mesa.

Depois da sacudida inicial, procurar o abrigo mais próximo, que todos sabem de cor, pois se faz treinamento de evacuação todos os anos, seja no trabalho, na escola ou no bairro.

Desta vez, senti que o tremor era mais longo e bem mais forte (5+ na escala Shindo, usada no Japão2 e que mede a intensidade do tremor em cada região).

Ao ligar a TV (outro gesto mecânico), imediatamente soube que o epicentro era no norte do país. A TV avisava para a população da costa se refugiar nas alturas. Ouvi a sirene de alerta de tsunami, mesmo lá no meio de prédios modernos. Aquela sirene de tsunami me deu calafrios (não havia passado nem 10 minutos dos primeiros tremores).

Descemos as escadas, estávamos no quinto andar de um edifício de oito – apesar de haver eletricidade, os elevadores param imediatamente por medida de segurança -, e saímos para o parque, em frente ao prédio da minha aluna, onde centenas de pessoas se aglomeravam. Todos tentavam telefonar, mas os celulares estavam mudos e ficariam assim até o dia seguinte. Usei o telefone público pela primeira vez depois de anos.

Como normalmente acontece, os metrôs pararam, mas previ que, desta vez, não iriam voltar a funcionar tão cedo e comecei a andar em direção à minha casa. Tinha uns bons 15 km!

Parecia filme de catástrofe dos anos 1980. Milhares de pessoas andando em fila nas grandes artérias de Tóquio e muitos carros parados em um grande congestionamento.

O que era diferente é que parecia que tinham cortado o som. Você não ouvia nenhuma buzina nem gente gritando. Só uma multidão tentando voltar para casa, quase instintivamente.

E fui andando, seguindo a massa, passando por aqueles lugares por onde passo raramente, porque só ando de metrô. Vendo desfilar meus prédios preferidos, como o da escola de Ikebana Sougetsu, o Palácio Imperial, o prédio da Hermés, em Ginza, o mercado de peixe de Tsukiji. Tudo parecia irreal.

Em meio a essa paisagem típica de folheto turístico, eu lia cartazes escritos à mão, colados nas portas de casas residenciais, oferecendo o banheiro ou um copo d’água. Lojas, com a TV ligada para os passantes, mostravam as últimas notícias e imagens.

Os policiais orientavam os pedestres e todos agradeciam polidamente, indo na direção indicada. Nessas três horas e meia de caminhada, enquanto via centenas de pessoas esperarem o farol abrir, apesar de os carros estarem parados, fui me perguntando até onde eu tinha “virado japonesa”. Cheguei aqui em 1984 para estudar doces tradicionais japoneses. Apesar de minha educação completamente brasileira, estudando em colégio estadual e depois fazendo faculdade de Jornalismo, como uma boa descendente de japoneses, ir ao Japão, conhecer a terra dos antepassados, faz parte da formação.

Sempre gostei muito de cozinhar e bastou uma estada em Paris para ceder aos encantos dos doces franceses. Depois de três anos em Paris, resolvi vir ao Japão, onde aprenderia outras técnicas e uma concepção totalmente diferente dos doces ocidentais.

Nesses últimos 27 anos, apesar de alguns períodos fora do Japão, casada com um japonês e com dois filhos japoneses, vi que o tempo que estou aqui já é maior que meu período de Brasil e me pergunto, novamente, até onde me tornei japonesa.

Essa é a pergunta que agora muitos estrangeiros se devem fazer, os que adotaram por uma razão ou outra a vida no Japão. Quando as notícias que vinham de fora começaram a contradizer o que víamos e ouvíamos aqui, foi o momento que muitos fizeram a escolha. Não era algo heroico na proporção de ir morrer pela pátria, mas era partir ou ficar. Ficar significava que você acreditava nas instituições, que conseguia ler um pouco nas entrelinhas – já que os japoneses não são diretos – e que colocava uma boa dose de bom senso nisso tudo.

Conhecendo os cautelosos japoneses – são os últimos a aprovar um novo medicamento, os únicos a colocar hora, além de data de validade, em alguns alimentos -, não seria possível que todos estivessem mentindo ou escondendo algo. Sei que tinha de dar um voto de confiança, já que, confesso, não entendia nada de reatores nucleares nem tinha um amigo físico nuclear.

Hoje, percebo claramente o significado do coletivo, esse coletivo cultuado e ensinado desde bebê, aquele que, quando perguntamos para uma grávida o que ela deseja para o futuro do seu filho, ela não responde que quer que ele seja famoso, bem-sucedido ou o futuro presidente do país, mas, simplesmente: “Seken ni meiwaku kakenai ko” (que ele não prejudique a sociedade).

Na verdade, não acho que os japoneses sejam soldados heroicos ou monges zen. Acho que, na situação atual, todos têm medo e incertezas, mas eles não são de ficar reclamando ou chorando. Nós vamos tentar coletivamente retomar e ir para frente.

MARI HIRATA, UMA BRASILEIRA TOKYOJIN
Embora tenha nascido e crescido no bairro do Brooklin, em São Paulo, Mari Hirata é uma típica tokyojin – nativa de Tóquio. É na grande metrópole que ela vive há 27 anos com o marido japonês e os filhos, Anna e Shohei, de 17 e 20 anos. “Tóquio talvez seja a vila com a qual mais me identifico no Japão e no mundo”, diz ela, que mora no bairro de Koto, a 10 km do centro.
Mari estudou Jornalismo na Escola de Comunicação e Artes da USP (não chegou a se formar, pois viajou ao Japão e não mais voltou ao Brasil). Mas seu gosto pela culinária a levou às salas de aula do Le Cordon Bleu, conceituada escola de gastronomia em Paris, onde viveu, entre idas e vindas, oito anos. Lá, trabalhou em pequenas confeitarias e em restaurantes, como o estrelado L’Arpège.
A primeira vez em que esteve no Japão foi como aprendiz de uma doceira. Mais tarde, quando moraria de forma definitiva no país, voltou a convite da confeitaria oficial da Família Imperial japonesa para a abertura do Toraya Café, versão ocidentalizada, com doces fusion, da tradicional confeitaria Toraya. “Conheci meu marido no Toraya, onde ele é funcionário e faz doces. Ele trabalha lá há 25 anos, o que não significa nada se considerarmos que o Toraya tem mais de 500 anos de história”, afirma.
Hoje, Mari é o que chamam no Japão de Food Cordinator. Ministra cursos de cozinha brasileira para japoneses e de japonesa para brasileiros. Também presta consultoria a restaurantes e empresas, além de escrever artigos e livros – é autora de Minhas Receitas Japonesas (Publifolha), Biscoitos Caseiros (Klaxon) e Pães Caseiros (Klaxon). Sobre sua especialidade na cozinha, ela confessa: “Adoro fazer doces, mas gosto de comer salgados…!”.

¹ Referência ao terremoto de 8,3 graus na escala Richter que aconteceu em 1o de setembro de 1923 na região leste do Japão, chamada Kanto, que inclui Tóquio. Causou a morte de 142.800 pessoas.
² Shindo é uma escala de intensidade de tremor usada pela Agência Meteorológica do Japão que mede a sensação de abalo na superfície em níveis que variam de 0 a 7. Por essa razão, cada área no Japão apresenta um número Shindo diferente em um mesmo terremoto. Essa escala não pode ser comparada com a Richter, pois são parâmetros diferentes. A Richter mede a magnitude do tremor em sua origem (epicentro), com um número único que quantifica o nível de energia liberada pelo sismo.


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