O dia em que Sartre fundiu a cuca

Tudo conspirava a nosso favor. O mundo nos olhava com um misto de admiração e inveja. Precisavam de um campeão de boxe? Nós tínhamos Éder Jofre. Uma campeã de tênis? Nossa Maria Esther Bueno era a deusa de Wimbledon. As mulheres mais belas do mundo? Marta Rocha serve?

Mas tinha mais, muito mais. Nosso Vinicius de Moraes escreveu Orfeu, um francês filmou e nós ganhamos a Palma de Ouro em Cannes. Éramos a terra do falou e disse. Juscelino falou: vou construir Brasília em quatro anos. E construiu.
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Conosco ninguém podosco – era o sentimento que nos dominava, de Norte a Sul, principalmente no Sudeste.

Contagiado por esse clima, Álvaro Moya não perdeu uma noite de sono por ter de inaugurar a nova TV de São Paulo sem estúdio. A torre de transmissão estava lá, na esquina da Paulista com a Consolação. Era o bastante. Com o estúdio se daria um jeito mais tarde. Claro, ele se apoiava numa certeza: os Simonsen eram muito, muito ricos.

“Eles eram riquíssimos! Acho que no Brasil eu nunca tinha visto ninguém tão rico como eles. Porque eles eram ricos em libras esterlinas. Todos os negócios deles eram feitos em bancos ingleses. E o Mario Wallace Simonsen tinha 53 firmas em Zurique, na Suíça. O castelo deles, em Londres, era um negócio! Enorme! Uma vez o Wallinho mostrou uma foto para nós. A foto de um castelo. Todo mundo achou demais. E ele falou: ‘Esse é o castelo dos empregados. O nosso fica um pouco mais pra cima’. Uma coisa é o cara ser rico no Brasil, outra coisa é ser rico em Londres, em Zurique.”

Mal de grana
A festa de inauguração foi improvisada na revendedora Ford de Luis Simonsen, irmão do dono da nova TV, ao lado do Teatro Paulo Eiró no dia previamente marcado: 9 de julho de 1960.

Moya tinha razão: em poucos dias, seus braços direitos Manoel Carlos e Jayme Barcellos descobriram um ótimo local para sede da TV Excelsior: o Teatro Cultura Artística, na Rua Nestor Pestana.

“A Sociedade de Cultura Artística estava mal de dinheiro” conta Moya, “não conseguia pagar um empréstimo da Caixa Econômica Federal. Os credores ficaram contentes quando nos dispusemos a alugar o teatro”.

Poderiam ter comprado, por uma bagatela, algo como cem mil dólares. Mas o patrão – dono da Panair, do Banco Noroeste e maior cafeicultor do País – optou por alugar.

Além de colocar as contas em dia, Moya ainda concordou em manter o calendário de concertos das salas, que seriam transmitidos ao vivo pela TV.

E assim, a 31 de julho, deu-se a nova festa de inauguração da Excelsior, apresentada por Bibi Ferreira. No Cultura Artística.

Nada, nada mesmo, podia dar errado naqueles dias luminosos. Parecia musical da Metro.

Humorista da Suíça
Moya não precisava arrancar os cabelos atrás de talentos. Eles caíam literalmente do céu.

“O José Vasconcelos falou que conhecia um rapaz que tinha estudado na Suíça, era muito culto e que era casado com uma prima dele. A Teresa Austregésilo. Ele tinha voltado há pouco tempo da Suíça e queria ser humorista. Chamamos o Jô para fazer um número no Brasil 60, que era o nosso carro-chefe, apresentado pela Bibi Ferreira e escrito pelo Manoel Carlos. A plateia não achou a menor graça, porque o humor do Jô era muito intelectual. Mas eu e o Maneco adoramos e o contratamos. Ele fez um programa de humor totalmente sozinho, com vários números, fazia aquela dança com os dedinhos e outras coisas muito engraçadas. Dublava filmes de bangue-bangue…”

Moya tinha três redatores principais: Jô Soares, Boni e Manoel Carlos. Eles escreviam o Simonetti Show, programa com a orquestra do maestro Enrico Simonetti. Dois músicos revelaram-se extraordinários humoristas: o guitarrista Edgar e o contrabaixista Capacete.

Manoel Carlos era o mais cabeça:

“Eu li tudo do Sartre que na época estava traduzido. Eu e toda a minha geração. E já havíamos visto pelo menos meia dúzia de vezes o espetáculo Entre Quatro Paredes, no TBC, que é de 1950.”

Saia da lata
Na fusão entre a sala de espetáculos e a TV não foi a sala que se popularizou; a TV se elitizou. Nos menores detalhes. Os cameramen, que sempre trabalharam com qualquer roupa em outras emissoras, tinham de vestir blazer azul, com logotipo, coisa muito fina.

Havia espetáculos dentro e fora do teatro. Moya recorda:

“Quando o Jô chegava na porta do Teatro Cultura Artística, e descia da Romiseta dele (um carro minúsculo, só cabia o motorista), a gente ficava na porta e fazia um barulho de estalar, com o dedo na boca. Aquele barulho de alguma coisa muito apertada saindo de uma lata! Não dava para entender como ele cabia lá dentro. Era uma turma de muitos gozadores: o Leon Eliachar, o Juca Chaves, o Manoel Carlos”.

Moya gostou tanto da festa de inauguração que resolveu transformá-la num programa semanal. O Brasil 60 fez escola. Abriu as portas para os festivais e mostrou a bossa nova a São Paulo. Bibi Ferreira apresentou João Gilberto algumas vezes. Numa delas, ele fez dupla com Orlando Silva.

Juca Chaves cantou com Lamartine Babo. Aracy de Almeida com Pixinguinha. Leonardo Villar entrou em cena com a cruz do O Pagador de Promessas. Anselmo Duarte trouxe a Palma de Ouro.

Na BBC de Londres e na TV de Moscou, Moya aprendeu que entrevistado bom é entrevistado pago. Assim chegava na hora. E tinha de participar do ensaio.

“Não vá”
Só um entrevistado não ensaiou. Nem recebeu cachê. Com a palavra, Manoel Carlos:

“Posso dizer que fui o responsável direto pela entrevista do Sartre na TV. E foi tudo muito simples. O Bento, já meu querido amigo, me falou da vinda do Sartre e disse que seria bom se se conseguisse um lugar amplo para uma entrevista com estudantes e professores. Eu era então coordenador geral da programação da Excelsior, abaixo apenas do Álvaro Moya, diretor artístico. Falei com ele e o Moya, também um artista, também um escritor, sensível à cultura de um modo geral, franqueou o grande auditório, com mais de mil lugares”.

Procedeu-se, então, às negociações. Sartre andava pra cima e pra baixo com Jorge Amado, seu grande amigo e cicerone no Brasil. Quando recebeu o convite de Bento Prado Jr. e de Roberto Schwartz para ir à TV pediu a opinião do escritor.

“Não vá”, respondeu Jorge Amado. “O nível da televisão brasileira é muito baixo, eles vão fazer perguntas ridículas.”

Mas Sartre não aceitou facilmente as verdades do amigo. Falar à TV brasileira não deixava de ser interessante para quem era proibido na TV francesa e estava no Brasil mais ou menos exilado por criticar a política colonialista de De Gaulle na Argélia. Pediu a relação de perguntas à produção do programa para avaliar se aceitaria ou não o convite.

As perguntas foram redigidas por Bento e Schwartz. Sartre aprovou e mostrou a Jorge Amado, que se recusou a comentar, dizendo:

“Se quiser, vá sozinho, eu não irei”.

Os carpinteiros
Quando Sartre estava no camarim do teatro, Moya foi ao seu encontro e lhe disse:

“Os carpinteiros do teatro moram muito longe e por isso vão para casa por volta de cinco da tarde. Mas quando souberam que hoje o senhor seria entrevistado, fizeram questão de ficar até que hora fosse, eles admiram muito suas peças de teatro que ajudaram a montar neste palco”.

Sartre era uma estrela mundial. Talvez poucos brasileiros soubessem muito a respeito de sua filosofia, mas ele era um filósofo. Muitos achavam que ser existencialista era “só fazer o que manda o seu coração”, como ensina a letra de “Chiquita Bacana”. Ou que existencialismo era ter direito a ir pra cama com outras mulheres além da sua.

Seja como for, a noite de 2 de setembro de 1960 foi a mais importante do ano para muita gente, em especial para a elite intelectual de São Paulo:

“O Sérgio Buarque de Hollanda estava lá. Com toda a família. Foi um acontecimento”, diz Moya.

O cenário era uma mesa escura e sem atrativos, feita em madeira de lei. Lado a lado, sentados, os entrevistados, Sartre e Simone de Beauvoir e os entrevistadores: Bento Prado Jr., Roberto Schwartz e Fernando Henrique Cardoso.

Às 9 da noite a entrevista começou, com um texto redigido por Moya e lido por um locutor, avisando que iria ao ar, a seguir, um programa muito especial.

Manoel Carlos:

“Num gesto de ousadia, Moya colocou no ar – direto – Sartre falando por mais de duas horas. Ele e Simone de Beauvoir, vale acrescentar. O Bento foi o interlocutor principal, mas outros estavam lá, como o depois presidente Fernando Henrique Cardoso”.

Olhos de Fidel
As primeiras questões foram as que constavam da relação previamente aprovada por Sartre. Depois, à medida em que o tempo passava, falou-se de tudo.

Os assuntos principais foram a guerra da Argélia pela expulsão dos colonialistas franceses e a revolução cubana. Sartre e Simone tinham recém-chegado de Cuba.

A certa altura, Sartre ponderou:

“Eu estive pessoalmente com Fidel. Ficamos muito próximos, olhos nos olhos. Pude ver que ele tem olhos de pessoa honesta.”

Manoel Carlos:

“Foi um acontecimento, sem dúvida. Os jornais falaram e compareceram, que eu me lembre. O auditório do Cultura Artística, já então estúdio-auditório da Excelsior, ficou lotado, de estudantes em sua maioria, mas com muitos curiosos também, já que Sartre era uma personalidade popular para a época. Não apenas os seus livros, mas ele próprio, como pessoa. Era o que dizia tudo, o que transgredia, o que escandalizava. Era “o existencialista”, que significava mais ou menos “o cara”.

Como é possível?

Bento Prado Jr.:

“Com a mediação do Manoel Carlos e do Alvaro Moya, conseguimos, na TV Excelsior, a primeira aparição do Sartre em televisão. Ele e Simone de Beauvoir aceitaram nossa proposta, já que estavam empenhados numa campanha pró-Cuba e pró-Argélia (então em guerra com a França), e a entrevista seria boa oportunidade de campanha. Participei, como entrevistador, juntamente com Ruy Coelho, Fernando Henrique Cardoso e o próprio Luis Meyer, de um programa que teve a duração extraordinária de três horas”.

Moya:

“Foram cinco horas direto, sem intervalo comercial, todos falando em francês, perguntas e respostas, sem tradução, sem intérprete. Acabou de madrugada”.

Bento Prado Jr.:

“Depois do programa, Sartre nos perguntou: ‘Como é possível que uma empresa capitalista gaste tanto tempo ou dinheiro para que possamos fazer nossa campanha pelo socialismo? ‘. Ao que respondemos: “O senhor sabe… o Brasil… o Brasil é um pouco diferente”.

Manoel Carlos:

“Foi uma noite memorável, em que todos nós saímos de lá para um porre homérico. Deve ter sido no Gigetto, que era em frente à TV Excelsior, reduto de todos nós”.

E Sartre?

“Me parece que ele foi engolfado pelo pessoal da USP, indo para algum lugar.”

Os comunistas

Moya começou a ouvir no dia seguinte.

Primeiro foi o telefone de sua casa. Estava convocado para uma reunião urgente na sede do Banco Noroeste. Só então ele se tocou do que tinha feito:

“Puxa vida, eu botei o Sartre no ar e nem pedi autorização pra direção”.

Comprou o Estadão antes de chegar à reunião com o Rubens Barbalho, um dos diretores do banco.
Barbalho começou atacando:

“Olha, o que aconteceu, como você faz uma coisa dessas?”

“Qual é o problema?”, disse Moya. “Vocês estão achando que eu transformei a TV Excelsior num órgão comunista porque entrevistei o Jean Paul Sartre. Então, tem dois órgãos comunistas aqui em São Paulo: a TV Excelsior e O Estado de S. Paulo“.

Abriu o jornal e, para sua surpresa, havia duas páginas inteiras com a entrevista do Sartre.

Moya deitou e rolou:

“E tem mais: o Estadão não conseguiu entrevistar o Sartre; os repórteres foram lá pro auditório, ficaram anotando a entrevista e publicaram essas duas páginas no Estadão”.

Barbalho baixou a bola:

“Quer saber de uma coisa? São uns padres do Paraná, de direita, que são uns chatos, que pegaram no pé da gente. Mas deixa isso pra lá!”

Manoel Carlos:

“Essa entrevista tão longa e rara foi cultuada a partir de muitos anos depois. Eu mesmo já falei sobre esse assunto cinco, dez, vinte anos após essa noite. Ela demorou para ser descoberta ou redescoberta. A importância daquela noite demorou para ser avaliada”.

SARTRE NO ESTADÃO – “Brasil é democracia e ditadura ao mesmo tempo”
Na edição de sábado, 3 de setembro de 1960, O Estado de S. Paulo traz a cobertu-ra da visita de Jean-Paul Sartre e de Simone Beauvoir a São Paulo.
Há uma entrevista exclusiva feita pelo repórter do jornal a bordo do Convair em que o filósofo viajou do Rio a São Paulo, trechos de uma coletiva no Hotel Excelsior e um pequeno resumo da entrevista na TV Excelsior. Impossível adivinhar se o pequeno espaço dedicado à TV decorreu
da antipatia do jornal à emissora ou de problemas de fechamento, já que a entrevista na TV estendeu-se até a madrugada.
Ou de ambos.
Suas principais declarações publicadas pelo jornal neste dia revelam a percepção aguda que tinha do Brasil e dos países subdesenvolvidos e as relações entre o existencialismo, o socialismo e o anarquismo.

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LEIA MAIS ALEX SOLNIK

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