“O dia em que toquei em Montreux”

Kerstin Balcarek

Parece que foi ontem. Corria o ano de 1973. Eu e Fernando ficávamos largados, ouvindo Deep Purple ao vivo, Made in Japan, reproduzido em fita, em um gravador Akai 4000D. Literalmente largados nos sofás do diretório da Faculdade de Comunicações da FAAP, uma das poucas coisas revolucionárias que podíamos fazer naqueles tempos. Na verdade, o disco era para ser gravado durante o Montreux Jazz Festival de 1971, mas um incêndio ocorrido durante o show de Frank Zappa, provocado por “um imbecil com um sinalizador” – familiar, não? –, destruiu o Casino, onde os shows eram apresentados. O Purple alugou um hotel na cidade, gravou o disco Machine Head com a música Smoke on the Water, que falava sobre o incidente, e o deixou ao vivo para o Japão. Ah, Montreux.

Quarenta anos depois, lá estava eu desembarcando em Genebra e tomando o caminho de Montreux, a bordo de uma van Honda do Montreux Jazz Festival. Minha filha, a Tulipa, ia se apresentar lá na noite brasileira. Ela, Gal Costa e Claudia Leitte. Estava lá na van de olhos vidrados, pensando, Tulipa… Montreux… Mesma noite da Gal… Eu aqui… Isto é a Suíça… Devia estar quase babando quando a simpática motorista – Karine é suíça francesa, mas fala alemão, italiano e, comigo, inglês – me perguntou: “Quer fazer o caminho comprido ou o curto?”. O mais longo possível, tentei me fazer entender. Afinal Tulipa, o irmão Gustavo, guitarrista, Caio Lopes, baterista, Márcio Arantes, baixista, Vitor Paranhos, técnico de som, e Heloisa Aidar, produtora, só chegariam no dia seguinte, de trem, direto de Paris. Estavam há um mês fora de casa e Montreux era o último show depois de apresentações na Alemanha, Portugal, Itália e Inglaterra. Iam ficar alguns dias no Brasil e embarcariam para os Estados Unidos, para finalizar a parte euro-americana do Tudo Tanto tour. Devia estar com cara de louco de novo, quando Karine me tocou de leve avisando: “Vamos beirando o lago”.

O lago. O Lago Genebra, que eles chamam Lac Léman, o maior da Europa, é mais comprido que largo (73 km por 12 km, no máximo; em Montreux, muito menos) e é dividido ao meio pela fronteira franco-suíça. Em um extremo, fica Genebra. No outro, Montreux. No meio do caminho, fica Lausanne. Fomos passando, Nyon, Rolle, Morges, Cully, Rivaz, Vevey… e Karine falando. Mostrou a casa dos pais. Estava calor, mas não era sufocante. Charles Chaplin viveu lá. Morreu lá (seu corpo foi sequestrado do túmulo, um rolo).

Passamos pela Villa Le Lac, construída por Charles-Edouard Jeanneret, mais conhecido por Le Corbusier, para os pais em 1923. A casa, hoje uma espécie de museu, fica em Corseaux, perto das vinhas de Lavaux. Essas, sim, são uma loucura. Elas se estendem em terraços por 30 km à margem do lago. Protegidas pela UNESCO, foram desenvolvidas no século 11, mas guardam traços dos romanos! A uva principal de lá é a Chasselas. Prato cheio para amantes de vinho. Aliás, copo. Ou taça.

Prince gravou uma música sobre Lavaux em seu disco de 2010, o 20ten. Não é a toa que seu show em Montreux se chamou He’s Back! Pois vamos ao que interessa. Montreux é uma cidade de 25 mil habitantes – número que aumenta com o festival e o verão. Antes de me levar ao hotel, Karine me mostrou vários escritórios da Nestlé – ela parecia se orgulhar –, o Casino reconstruído, hoje só cassino, a estátua de Freddie Mercury, que comprou um estúdio ali e foi morar na cidade.

O comércio é engraçado porque todas as lojas, seja de roupas ou de comida, têm um instrumento musical na vitrine, geralmente uma guitarra para lembrar o festival. Nosso hotel, o Majestic, embora seja voltado para o lago, dá entrada pela Rue des Alpes, exatamente em frente à estação de trem Gare de Montreux, onde os meninos desembarcariam.

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O hotel, belle époque, foi construí­do em 1870 pelo arquiteto Eugène Jost e reformado em 2010, ou seja, o melhor das duas épocas. Tomar café na varanda do restaurante, térreo para Rue des Alpes, terceiro andar para o lago, é algo. Os alpes do lado francês, as águas plácidas, os castelos nas encostas, Ferraris passando, queijos, frios, frutas, atendentes educados – vários portugueses e portuguesas –, gente bonita e, para completar, passarinhos que bicam seu pão, pousam no seu copo e… cantam. Tulipa definiu bem quando disse: “Estou me sentindo em um filme do Walt Disney, a Branca de Neve vai entrar pela porta a qualquer momento!”.

O Auditório Stravinski fica no terceiro andar do novo prédio erguido para abrigar o festival criado por Claude Nobs, em 1967 – Karine me falou que ele tinha uma casa enorme na encosta, com uma vista incrível, onde costumava recepcionar artistas. Infelizmente, Claude morreu no ano passado e esta edição do festival, a 47a, foi em sua homenagem – o último concerto, em especial, liderado por Quincy Jones. O primeiro artista brasileiro de peso a tocar lá foi Gilberto Gil, em 1978. Criou-se a noite brasileira, que logo virou noite baiana. Foi tanto axé para gringo que a noite foi suspensa em 2009 e 2010 por problemas com drogas e prostituição. Voltou em 2011.

Tentando evitar o frio na barriga que me deu ao entrar no lugar – tenho uma gaveta abarrotada com DVDs Live In Montreux –, dá para analisar assim: parece os nossos antigos festivais de jazz, dos quais, aliás, Nobs era consultor. Um Anhembizão, quero dizer, Palácio das Convenções, que funciona o resto do ano para congressos e similares, lojas de discos, souvenirs, camisetas, pôsteres, sala de imprensa. Um palco externo, Music in the Park, barracas de comida de todos os tipos – o hambúrguer do Holly Cow é demais! Várias salas espalhadas pelo prédio, Montreux Jazz Club, Montreux Jazz Lab, Montreux Jazz Créations, The Rock Cave, pubs, bares, bares privê e a joia da coroa, o Auditorium Stravinski, com capacidade para 3.500 pessoas em pé. Fora isso, um jornal diário, o Montreux Jazz Chronicle, passeio de barco com música, barracas de roupas, de artesanato, e arquitetura de jardim feita com entulho, carros velhos, pneus, carrinhos de supermercado, um barato, muita gente divertida. E qualquer coisa também, diante do calor, é só tirar a roupa e entrar no lago. Uma delícia. Uma festa que durou entre os dias 4 e 21 de julho.

A abertura aconteceu em duas noites com Leonard Cohen. Prince “voltou” em nada menos do que três noites, sem show de abertura. No dia em que cheguei, assisti a George Thorogood and the Destroyers (I’m b-b-baaad! I drink alone!) e ZZ Top. Na véspera da noite brasileira – ou melhor Brasil! – deste ano, foi a vez de Bonnie Raitt e Ben Harper, que trouxe como convidado o gaitista Charlie Musselwhite. No dia seguinte, começaria a maratona Prince. Ou seja, o palco era solo sagrado. Apesar disso, os técnicos e auxiliares não foram muito crentes. A passagem de som, como sempre acontece, foi na ordem inversa da apresentação, a partir das 11 horas da manhã daquele dia 12 de julho, Claudia Leitte, Gal Costa e nós. O que quer dizer que bem na nossa hora todo mundo resolveu almoçar.

Fomos atendidos como cavalheiros, todas as exigências, mesinha para a guitarra lap steel, cadeira, amplificadores incríveis, água e… Sumiram. Ficamos nós com o técnico de monitor, mas tudo rolou às mil maravilhas. Os shows são filmados, gravados, e o artista recebe uma cópia com o material bruto assim que desce do palco. Mais uma tradição de Montreux criada por Nobs. Outra delas é que o DVD, caso haja um, é feito por eles.

Nosso público, mais de meia casa, era mais o público do festival que foi se abrasileirando até virar carnavalesco com direito a travestis no show de Claudia – que, simpática, chamou Tulipa para cantar com ela. Nosso nervosismo foi amenizado pelo companheirismo da banda da Gal, Domenico Lancellotti, Bruno Di Lullo e Pedro Baby, que fizeram a maior festa para a gente antes e depois do show. A banda tocou in ear – com fones de ouvido – pela primeira vez, menos eu e Tulipa, que usamos monitores comuns. E foi um show coeso, preciso, suíço. Toda hora minha vista turvava.

O público de Montreux é curioso. Ouve com atenção e, se gosta, aplaude. Se gosta muito, aplaude mais forte. Em Víbora, o computador com as cordas gravadas, simplesmente não falou. Foram instantes de tensão. Márcio cruzou o palco, achou outro arquivo e colocou para tocar. A música é tensa, o clima fica tenso e o arranjo caminha para uma catarse. Dito e feito. Tulipa quase não conseguia dizer a última palavra da letra, sufocada pela emoção. Mais tarde, ela me disse que só passava pela sua cabeça que Nina Simone, Ella Fitzgerald tinham cantado ali. Um monte de gente da sua vitrola tinha passado por ali.

Confesso que também chorei, engasguei. Mas egoisticamente pensei: “Consegui! Sobrevivi!”. Curiosamente, soube há pouco que Elis Regina não deixava seu show em Montreux ser lançado porque ela achava que não tinha cantado bem. E não cantou porque não parava de pensar em quem já havia passado por ali e ela não passava de uma professorinha gaúcha.

Dizer que foi um sonho realizado é mentira. Nunca ousei sonhar tanto. Mas o fato é que já em São Paulo recebi um telefonema do Fernando, que me disse se sentir representado em Montreux comigo, tocando com a Tulipa. E relembrou aqueles dias em que a gente vivia largado nos sofás da FAAP ouvindo Deep Purple. Parece que foi ontem, mas faz 40 anos. Respondi que tocar no Festival de Montreux é algo, sei lá o que é, mas é bom. Parece que foi ontem, cara. Mas já faz alguns dias.


Comentários

7 respostas para ““O dia em que toquei em Montreux””

  1. Meus parabéns! Já era fissurada nessa coisa de Montreux por causa de Nina, Elis e Chico – discos que decorei. Depois desse belo relato, vou ter que dar um jeito de ir, definitivamente. Pena que perdi o de vocês. Quando sai o DVD? 🙂

  2. “O dia em que toquei em Montreaux” , muito mais que isso!
    O dia em que vc. e seus dois filhos, artistas natos, talentos burilados a base de muito suor. Aqueles que vc.encaminhou pra vida, e que tornaram-se grandes profissionais , que trio ! Parabéns Luiz vc. é um vencedor !
    Simone & Alexandre P. Frade

  3. Arrepiou, Luiz! Na emoção e no texto! Show!

  4. FANTÁSTICOS texto e feito!!

  5. EU JÁ SABIA,UM DIA VOCÊ IA CONSEGUIR,TU MERECE CARA,SOU E SEMPRE FUI SEU FÃ,ABRAÇAÇO LUIZ,VOCÊ É O CARA.

  6. Avatar de marcia lancellotti
    marcia lancellotti

    delícia de ler !!! muito orgulho e admiração, Chagas !♥

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