O dia em que Villa-Lobos jogou a batuta

A caminho da Avenida Duquesa de Goiás, que eu e muitos da minha geração conhecíamos como a rua do motel Swing, imaginei que iria acontecer o seguinte: eu iria perguntar aos arquitetos por que não começam logo as obras do novo Cultura Artística, já que a grana está certa e além do que tem o valor do seguro, e eles iriam contar para quando está marcado o início dos trabalhos, qual será a construtora, essas coisas.

Reconheci o edifício ao passar em frente. Edifício Duquesa de Goiás. É o da imagem que está no site. A entrada de carro é ótima. Não tem guarita, segurança, cancela, manobrista. Entro direto, meio desconfiado porque tanta informalidade em São Paulo é incomum e estaciono o carro no pátio.
[nggallery id=15420]

LEIA TAMBÉM: O dia em que Sartre fundiu a cuca

O prédio é sustentado por pilotis, o que lembra Le Corbusier, Niemeyer, Rino Levi e o próprio Paulo Bruna, que ocupa um conjunto do edifício que projetou. Um privilegiado.

Grana, que grana?
Em torno da máquina de café expresso, a jovem Camila Zanchetta se faz de desentendida quando comento:

“Quer dizer que grana pra construir já tem, né?”

Se fosse história em quadrinhos, dentro do seu balão haveria um ponto de interrogação.

“Não estou sabendo”, ela diz, enquanto carrega a máquina. (E, pior, está sendo sincera.)

“A empresa X” informo, contente por talvez ser portador de uma informação em primeira mão, “vai dar pra vocês 2,5 milhões de reais, eu li em algum lugar”.

“Dois e meio?” ela se espanta.

“Já é um começo, não é? A obra vai custar quanto?”

“Ainda não sabemos exatamente, o orçamentista está estimando algo entre 65 e 75 milhões de reais.”

Quase caí pra trás. É uma grana preta. Mas é claro, dois e meio realmente não daria pra nada. É um teatro, não um edifício qualquer. Não sei não, mas com esse caminhão de dinheiro que vai custar, este vai ser o teatro mais caro de São Paulo.

“Bom, mas tem o seguro, não é? Quanto foi o seguro?”

“Sete milhões.”

Paulo Bruna se aproxima. “Não tem o dinheiro por ora, mas vai aparecer. Sempre apareceu.”

O nome do teatro
Fiquei preocupado. O projeto foi aprovado em dezembro do ano passado, pela Sociedade de Cultura Artística, e recebeu Lei Rouanet. Foi concebido em apenas quatro meses, depois do incêndio de agosto.

Desde então passaram janeiro, fevereiro, março, abril, maio, estamos em junho e o dinheiro nada? Está difícil assim? Todos os últimos grandes teatros construídos ou reformados, em São Paulo, tiveram de pagar um preço. Abriram mão de seu nome original ou já foram batizados com nome de patrocinador.

O Credicard Hall saiu por 30 milhões de dólares, em 1999. E ainda por cima na noite da inauguração João Gilberto esculhambou a acústica da casa.

O Teatro Paramount, para virar Abril, custou R$ 12 milhões, em 2002.

O Teatro Bourbon, no forno para abrir, consumiu entre R$ 30 e R$ 35 milhões.

Dono do Teatro Frei Caneca, e único amigo dono de teatro que tenho, Sergio D’Antino confirma minhas suspeitas:

“Se custar R$ 70 milhões, o Cultura Artística será o mais caro de São Paulo”.

Vai ser o mais caro se sair do papel, é claro. Mas de onde vai sair a grana? Mudança de nome, nem pensar, a Sociedade de Cultura Artística completa 100 anos em 2012, não é uma entidade que nasceu ontem.

Por outro lado, teatros importantes custam caro. Em 2004, o La Scala de Milão, sem ter de mudar de nome nem nada, foi reformado por 61 milhões de euros. Mas, também, não é só o mais famoso da Itália, mas um dos cinco principais teatros do mundo.

Meus temores são, felizmente, infundados. Não é que falte grana, é que os R$ 75 milhões aprovados na Lei Rouanet foram divididos em duas etapas, uma de R$ 30 e outra de R$ 45 milhões. A conta do Banco do Brasil onde todas as doações devem ser depositadas já está aberta, como exige a Rouanet. Muitas empresas já mostraram interesse em colaborar, uma delas, a Oi, já anunciou aporte de R$ 2 milhões. Quando a conta da primeira etapa ficar completa, abre-se a outra.

Fachada lateral
Sentamos, Camila, Paulo e eu, diante do projeto cujas imagens da fachada e dos interiores são tão realistas que o teatro parece estar concluído.

Criadores do projeto, eles ainda dão tratos à bola. Procuram novos ângulos. Preveem mudanças.

“Estamos em dúvida sobre a fachada lateral”, concordam.

Nada os preocupa.

“Eu entrei no escritório do Rino Levi em 1970”, conta Paulo “num dos momentos mais críticos do Cultura Artística”.

A TV Excelsior, que alugava o teatro desde julho de 1960 por um milhão de cruzeiros por mês – o dobro do que renderia o aluguel a companhias de teatro -, começou, em agosto de 1967, a atrasar os pagamentos e a demitir empregados sem pagar indenização.

A emissora, que tinha sido o anjo salvador do Cultura Artística quando o teatro naufragava em dívidas bancárias, em 1960, agora era o seu coveiro. O governo militar encostara a faca na garganta do podre de rico Mario Wallace Simonsen, que foi perdendo tudo o que tinha, fazendas de café, a companhia aérea Panair e finalmente a Excelsior.

Bangue-bangue
Os lances finais da emissora foram dignos de filme de faroeste. O jornalista Ferreira Netto, que tinha assumido a direção-geral em meio a uma greve de funcionários que só queriam receber, teve de sacar um revólver a fim de acalmar os ânimos.

Quando as autoridades militares assinaram o óbito da TV, em outubro de 1970, Ferreira Netto levou para casa, de lembrança, o cristal graças ao qual a emissora ia para o ar.

A 3 de novembro a ordem de despejo foi cumprida. Rezava o contrato de aluguel que o imóvel seria devolvido no estado em que o locatário o encontrou.

Mas, aqui entre nós, quem esperava receber de volta, em bom estado, um teatro transformado em emissora de TV?

A lista dos estragos era a seguinte:

1. Poltronas em péssimo estado

2. Pequeno auditório completamente destruído, pois fora transformado em estúdio

3. Paredes descascadas, outras derrubadas

4. Acústica prejudicada

5. Pisos estourados

6. Tapetes rasgados

7. Pintura inaproveitável

8. Palco danificado

9. Portas e vitrôs quebrados

10. Sanitários arruinados

Cobrar de quem? A vaca tinha ido para o brejo. Mas havia os avalistas. Igor e Ester Pascovitch morreram com 575 mil cruzeiros, divididos em 21 prestações que iriam até março de 1973. Iriam, mas não foram; a grana dos Pascovitch miou antes.

Elogios
Isso, os 571 mil cruzeiros, era só o começo. O teatro estava irreconhecível, nem sombra do que foi inaugurado a 8 de março de 1950 sob frenéticos aplausos do público e da crítica.

A principal revista de arquitetura, a Acrópole, abriu dez páginas repletas de fotos e elogios. Alguns trechos:

“As cadeiras, desenhadas pelos arquitetos Rino Levi e Roberto Cerqueira César, têm o assento móvel. Esse dispositivo permite ao espectador afastar o assento sem que ele seja obrigado a levantar-se.”

“A mudança de cenas do grande auditório é prevista com duplo sistema, por elevação dos cenários e por meio de um palco giratório.”

“Para cortar a propagação de fogo foi instalada na boca do palco cuja abertura é de 19 por 7,5 metros uma cortina metálica.”

“Agora, o passeio pelo foyer. Passeio? Repouso. Em vez de um gélido ‘passos-perdidos’ é ele um grandioso living-room com seus recantos de intimidade, seus ternos convidativos em torno da mesa baixa de fumar.”

“E, afinal, uma visita aos camarins. São séries e séries de salas e mais salas com seus toucadores claros e cômodos, em que a utilidade rivaliza com a harmonia; e suas salas de banho com as mais confortáveis instalações.”

Custo total da obra: 14,6 milhões de cruzeiros ou 800 mil dólares, dos quais 3,9 milhões em recursos próprios, 5,5 milhões emprestados da Caixa Econômica Federal e mais 1,3 milhão de bancos particulares, total 10,7 milhões. Papagaios, portanto, muitos papagaios.

E os 4 milhões faltantes? Depois se veria.

O dono da poltrona
“Fique proprietário de uma poltrona na sala principal do maior e mais moderno teatro da América do Sul, em construção à Rua Nestor Pestana.”

O anúncio de venda de cadeiras cativas (como fazem hoje os clubes de futebol), publicado n’O Estado de S.Paulo, foi uma das fórmulas encontradas para cobrir o preju. E expôs a pretensão da Sociedade que, como se vê, não era pequena: o seu seria o maior e mais moderno teatro da América do Sul.

Não foi exigido traje de gala na noite de inauguração, o que não comprometeu a elegância dos espectadores. As senhoras não dispensaram chapéus, luvas e bolsas e os homens exibiam cartolas e ternos escuros, com lenços de seda no bolso do paletó. Os três sinais foram aguardados com ansiedade incomum.

A primeira parte ficou a cargo de Camargo Guarnieri que apresentou as três primeiras audições. A mais interessante foi “A Serra do Rola-Moça”. Composta por ele sobre poema de Mario de Andrade, é a história de um casal de recém-casados. Eles cavalgam, cada qual no seu cavalo, à beira de um abismo. “E riam. Como eles riam?/ Riam até sem razão.”

A certa altura, o cavalo da moça tropeça e a derruba no despenhadeiro. O noivo esporeia o cavalo, cai atrás dela. “E a Serra do Rola-Moça/ Rola-Moça se chamou”, finaliza o poeta.

O concerto “de fundo” era o mais esperado. Heitor Villa-Lobos era, no mínimo, a figura musical número 1 do Brasil. Uma lenda viva.

“SALA SÃO PAULO CUSTOU MAIS”
Gérald Perret, superintendente da Sociedade de Cultura Artística, revela que a Sala São Paulo custou mais que o novo teatro:
Brasileiros –Ao custo de R$ 75 milhões, o Cultura Artística será o teatro mais caro de São Paulo?
Gérald Perret –O Teatro Cultura Artística não será o teatro mais caro de São Paulo. Há mais de dez anos, a renovação da Estação Júlio Prestes para a criação da Sala São Paulo custou mais do que isto e o proposto Teatro da Dança, a ser construído em frente à Sala São Paulo, tem um orçamento muitas vezes maior que este. Apesar de não ser o mais caro, será o mais moderno teatro de São Paulo, uma sala multiuso, adaptada aos mais altos padrões técnicos para apresentações musicais, teatrais e de dança.
Brasileiros –Como está o andamento da captação de recursos? Há receptividade?
Os empresários estão dispostos a colaborar?
G. P. – A campanha está seguindo muito bem. Ela foi lançada em um jantar na casa do prefeito Gilberto Kassab, que nos apoiou desde o início, tendo inclusive entrado no teatro devastado juntamente conosco, quando ainda tínhamos que chamar os bombeiros periodicamente para debelar pequenos focos de incêndio. Estamos agora dando seguimento aos contatos deste jantar e vários grupos empresariais já se comprometeram com valores de apoio de ordem de grandeza de sete dígitos. Destes, o grupo Oi Futuro já nos autorizou a divulgar o seu apoio de R$ 2 milhões este ano e R$ 1 milhão no ano que vem. Já temos outros três apoiadores que confirmaram o apoio mas ainda não nos autorizaram a divulgar nomes e valores e diversos outros em negociação.

Sob uma chuva de aplausos ele entrou no palco para empolgar a plateia com os quatro movimentos das Bachianas Brasileiras No 8.

Os três primeiros movimentos foram executados com brilhantismo. Ao levantar a batuta para comandar o início do quarto e último movimento, chamado “A Fuga”, o maestro parou. Os violinistas, prontos para atacar, recolheram os arcos. Começou um burburinho na plateia.

Era um blackout. Cortaram a luz por falta de pagamento? Mas, já??? A caixa de luz não tinha aguentado a carga? Menos mal, logo circulou que o bairro todo tinha apagado.

Depois de meia hora de apagão, o concerto foi cancelado.

O nome da primeira peça do teatro, que estreou a 17 de março, não tinha relação com a situação financeira da entidade, mas revelou-se premonitória: O Fundo do Poço, de Helena Silveira e Jamil Almansur Haddad.

O telhado
A 22 de julho de 1955, o vigia noturno ouve um barulho estranho no telhado. O diagnóstico dos experts é: a estrutura de madeira do teto vergou sob o peso do telhado e podia cair a qualquer momento. Até chegar uma nova estrutura, o telhado foi desmontado, deixando o teatro a céu aberto.

Foram dois meses de muita chuva em São Paulo – agosto e setembro. O mobiliário do teatro, tapeçarias, o ar condicionado, tudo ficou exposto à água. Até a nova estrutura metálica ficar pronta, em outubro, computou-se preju de 5.897.000 cruzeiros.

Isto somado à alta do custo de vida no último ano do governo Juscelino, que obrigou 1/3 dos sócios a não renovar suas assinaturas, instaurou o caos financeiro na Sociedade de Cultura Artística, que não conseguia honrar seus empréstimos bancários.

“Indócil, a credora hipotecária, Caixa Econômica Federal, fez uma interpelação judicial à Sociedade de Cultura Artística sobre o pagamento. O próximo passo seria a execução, o colapso.”

Nesse clima de intensa pressão foi assinado o primeiro contrato, de três anos, com a TV Excelsior.

A reforma
Falida a TV, em apenas dez anos de vida, faltava a Sociedade contabilizar as perdas. Uma grande reforma se impunha. Coube a Rino Levi elaborá-la, mas os números apavoraram a Sociedade. Ele precisava de cinco milhões.

Não estava nos planos da Sociedade passar por mais um suadouro financeiro como o de 1960. Optou-se por uma reforma meia-boca, lenta, gradual e pontual, que demorou sete anos.

Bunker
“A construção, nos anos 1940, também consumiu algo como oito anos” conta Paulo Bruna. “Havia um luminar na prefeitura” continua ele “que temia bombardeios em São Paulo em 1942 e determinou que o teatro deveria ter um bunker, o que impediu por muitos anos a execução da obra”.

O Brasil não tinha siderurgia. Aço americano não se podia importar com os alemães atacando no Atlântico. Durante dois anos o projeto de Rino Levi dormiu nas gavetas do prefeito Prestes Maia, que se tornou famoso por sua sonolência e impressionante semelhança física com o técnico da seleção brasileira de 1958, Vicente Feola, outro dorminhoco contumaz.

Deixo a companhia dos arquitetos. Escureceu lá fora. Enquanto tiro meu carro do pátio, penso nessa gente maravilhosa que nos idos de 1912 se reuniu numa sala de O Estado de S. Paulo para fundar a Sociedade de Cultura Artística com um objetivo bem prosaico: organizar saraus com uma conferência cultural na primeira parte e um pianista na segunda. Um deles se chamava Nestor Pestana. Além de ser um homem culto e agradável, era um galã. Na temporada que passou em São Paulo, a dançarina Isadora Duncan – garantem fontes confiáveis – apaixonou-se por ele.

LEIA MAIS ALEX SOLNIK

www.semcortes.com


Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.