O direito à identidade

A advogada Viviane Girardi.  Foto: Luiza Sigulem
A advogada Viviane Girardi. Foto: Luiza Sigulem/Brasileiros


Mudar de gênero não é fácil
. Autora de uma dissertação sobre “Famílias contemporâneas, filiação e afeto: a possibilidade jurídica de adoção por homossexuais” (2003), a advogada Viviane Girardi diz que a base do direito é binária: você é homem ou é mulher. Daí as dificuldades que o Judiciário enfrenta para recepcionar e reconhecer identidades fluidas ou em mutação. 

Em geral, os tribunais enfrentam a questão pela ótica da patologia: existe uma anormalidade que precisa ser solucionada. Por isso há uma maior receptividade da Justiça quando a demanda de mudança de sexo ou de gênero está fundamentada em laudos médicos ou psicológicos. 

A cautela do direito diante dos pedidos de reconhecimento de uma nova identidade não é totalmente despropositada: todos os vínculos jurídicos, como casamentos e contratos, se assentam na identidade da pessoa. Mudar o registro de alguém que já foi casado ou teve filhos interfere nos direitos e na identidade dessas outras pessoas. O Judiciário precisa então pesar todos esses direitos antes de decidir somente sob a ótica de uma pessoa  que pretenda apagar sua existência anterior para recomeçar sua vida. 

Hoje todos os avanços na legislação têm ocorrido na esfera do Judiciário. Ao incorporar as cartas internacionais em defesa dos direitos humanos, a Constituição de 1988 elencou a dignidade humana como um valor fundamental do Estado. É em nome dessa dignidade que os tribunais vêm concedendo aos homossexuais e aos transgêneros direitos que antes lhes eram negados.

O sexo e a lei 

O direito sempre considerou as coisas de forma rígida: sexo e identidade eram a mesma coisa e valia o que estava na certidão de nascimento. Se uma pessoa  nasceu fisicamente menina, ela será menina. Nascer mulher ou homem também determinava, automaticamente,  o papel de uma pessoa na sociedade. Essas verdades absolutas começaram a ceder diante de fatos que, por serem dinâmicos, acabaram pressionando o sistema jurídico: sexo e identidade não são necessariamente a mesma coisa. Existe a possibilidade de uma pessoa nascer em um corpo feminino e ter uma identidade masculina. Como então reconhecer o direito de identidade dessa pessoa em uma legislação que sempre foi muito rígida?

A Constituição de 1988 incorporou muito dos valores dos diplomas internacionais, das cartas da Organização das Nações Unidas preocupadas com o ser humano, com os direitos que irradiam da personalidade humana e com a necessidade de tutela desses direitos. A partir daí demandas jurídicas que nascem das questões de gênero acabam tendo uma forma de chegar e de serem recepcionadas pelos tribunais, porque começamos a fundamentar esses pedidos na concretização dos direitos fundamentais que visam à promoção da dignidade da pessoa humana. Essa pessoa que nasce num determinado corpo, mas cujo gênero é de uma outra realidade, tem o direito de  buscar, no tribunal, uma adequação de sua identidade social. Tem direito de ver reconhecida pelo Estado sua identidade plena, ou seja, a adequação de sua identidade psíquica ao seu corpo e à sua apresentação jurídica e social.

A psicologia, a medicina, a antropologia vêm dizendo para o direito: as verdades que vocês têm aí na certidão de nascimento não são tão verdades assim. A pessoa que teve lá uma certidão de nascimento que dizia que ela era menino, mas ela se sente e se apresenta como menina, precisa ter reconhecido seu direito de se apresentar com o que ela entende por sua verdadeira identidade.

 Tudo isso quebra paradigmas do direito. Se essa questão for enfocada só sob o prisma do direito privado, você não consegue encaixar essas pessoas no discurso jurídico. É por isso que a Constituição tem tanto valor para nós, advogados. Você tem, no topo da Constituição, a dignidade como um valor, um princípio fundamental e, abaixo dela, os direitos fundamentais. E dentro dos direitos fundamentais estão os direitos de personalidade. É em cima disso que todos os outros direitos, no que diz respeito ao tratamento das pessoas e de suas reivindicações, devem se estruturar. Se temos essa Constituição, conforme os fatos sociais forem se transformando, nós, operadores do direito,  conseguiremos sempre abarcá-los. Não é preciso ficar mudando a legislação a toda hora. O que é preciso sim é fazer sempre uma leitura do direito privado, uma interpretação da lei segundo os valores, os princípios e os direitos fundamentais.

O direito tem um papel importantíssimo  para as demandas das minorias, como os transgêneros, que são extremamente vulneráveis: reconhecendo seus direitos, o Judiário lhes dá outro status social, tira essas pessoas da sombra, da marginalidade, lhes dá um acesso à cidadania.

É por isso que nossa Constituição é chamada de Constituição Cidadã, porque ela é estruturada sobre a pessoa e os direitos fundamentais. E a Constituição vincula o intérprete: em qualquer decisão, o juiz é obrigado a aplicar a Constituição, goste ou não goste, queira ou não queira.

 As demandas

A demanda que chega para o Judiciário é: eu fiz uma cirurgia de adequação de sexo e quero adequar meus documentos. Então entramos pedindo que o tribunal reconheça a identidade plena dessa pessoa, o nome, o gênero, a forma como ela se identifica e se apresenta. O tribunal entende que ter feito uma cirurgia significa que a pessoa esteve sob a avaliação de uma equipe multidisciplinar para verificar se há realmente uma demanda de transgênero.

Essas ações o tribunal aceita com muito mais facilidade. Porque uma ciência médica está dizendo que se trata de um caso clínico onde houve essa adaptação. Então o direito reconhece a nova identidade. A dificuldade maior é a questão dos transgêneros que não necessariamente fazem a cirurgia, ou então a fazem em outros países, sem as avaliações prévias que o Brasil exige.

O olhar do Judiciário para as questões de transgêneros ainda é o da patologia. Pessoas não operadas ou não medicadas vão precisar de algum laudo, de alguma prova, nem que seja a própria vivência dela ao longo dos anos, para poder ingressar em juízo e demonstrar que sua identidade não condiz com aquela que a certidão de nascimento traz. Que ela sempre viveu, se reconheceu e se apresentou diferentemente do que os seus documentos apontam. Vamos pegar o caso dela. Será que algum juiz teria dificuldade de fazer uma adequação da documentação da Laerte? Tenho a impressão que não. É uma pessoa pública, que trouxe sua história de identidade à publico. Mas uma pessoa comum pode conseguir as testemunhas em seu bairro. O meio social pode confirmar isso, o depoimento da comunidade importa.

 É um tema que tem uma carga de preconceito absurda. A decisão que o Supremo Tribunal Federal deu, dizendo que no Brasil é possível, perante a legislação, o casamento de duas mulheres ou dois homens, foi um avanço muito significativo. Tem novas demandas batendo no Judiciário, como a possibilidade de as pessoas viverem não a dois, mas a três ou a quatro: uma nova forma de arranjo familiar. Aí o direito diz que não, que isso não cabe no seu conceito de família. A base do direito é binária: se você nasceu homem, fez uma cirurgia de adequação, então você é mulher. Só temos essas duas possibilidades. É como se o direito oferecesse uma moldurinha: ou você se encaixa ou está fora.

 Por isso quando os tribunais começam a abrir a possibilidade de reconhecer um direito de identidade baseado na questão de transgêneros ou na questão da sexualidade, é significativamente importante para essas populações vulneráveis. É como se o discurso jurídico falasse: “Estou aberto para todos, você não precisa se encaixar no meu modelinho”. É o sistema jurídico entendendo que existe uma dignidade humana, um direito de personalidade que tem de ser reconhecido. Por isso foi tão importante essa decisão que reconheceu a possibilidade de casamento entre dois homens e entre duas mulheres.

Nessas questões, a bancada religiosa nunca vai deixar as demandas ligadas à sexualidade e à autonomia das pessoas sobre o próprio corpo passarem no Legislativo. Mas o Judiciário tem arsenal para resolver essas demandas porque a sociedade é mais dinâmica do que o direito e do que o Legislativo. Ela está viva e pulsando, e a Constituição dá guarida para novas demandas que digam respeito aos direitos fundamentais, como é o direito de identidade das pessoas. Há uma crítica muito severa: o Judiciário não estaria legislando? Eu prefiro que o Judiciário legisle neste caso, porque, quando se aplica o instrumental que já existe para acolher esses direitos, não é necessário depender de um Legislativo que não se preocupa tanto com os direitos das pessoas e  com as questões da sociedade, mas sim com a com as bancadas e seus interesses.

A segurança jurídica

Se você entra com ações juntando a demonstração de que a pessoa fez a cirurgia de adequação, ou se você tiver laudos de psicólogos e médicos amparando o pedido, o tribunal é sensível à questão. Agora, se você simplesmente chegar e se declarar transgênero, dificilmente vai conseguir ter sucesso, porque o Judiciário, o direito e a sociedade buscam também a segurança jurídica. Não basta uma simples declaração da pessoa, porque alterar a identidade de uma pessoa mexe com pilares bastante rígidos para o direito. O registro civil tem que transmitir  segurança jurídica para a sociedade. Não é a todo momento que se modifica um registro. O registro de nascimento é que diz quem são as pessoas. Toda documentação da vida de uma pessoa parte daí. É o que garante a identidade, o status de casado ou solteiro, os contratos e até a cerdidão de óbito.  

As ações que chegam aqui no escritório são ações de adequação da identidade dessa pessoa. Na certidão de nascimento é que se faz a alteração. A certidão de nascimento é um documento público por excelência. Qualquer pessoa pode buscar minha certidão de nascimento: filha de fulano e fulana, sexo feminino. Então a gente entra com ação para modificar o nome e o sexo nessa certidão de nascimento.

“PREFIRO QUE O JUDICIÁRIO LEGISLE: PARA ACOLHER DIREITOS NÃO É PRECISO DEPENDER DE UM LEGISLATIVO QUE NÃO SE PREOCUPA COM VALORES”

Alguns juízes determinam que você simplesmente anule a certidão de nascimento anterior e faça a adequação da certidão de nascimento, sem nenhuma referência. Mas o próprio interessado, ou então um terceiro, com autorização judicial, pode ter acesso ao que a gente chama de livro, onde é lavrada a certidão e consta a modificação. É uma informação que fica, digamos assim, sob uma proteção maior do Estado porque diz respeito à história e à identidade anterior dessa pessoa.

 O direito ao esquecimento

O “direito ao esquecimento” é a ideia de que não faz sentido se manter ou se disponibilizar fatos publicamente quando eles já não têm mais pertinência com a atualidade ou com a história. Essa falta de interesse público ou até mesmo de um direito individual relevante pode estar em confronto com um direito fundamental de matriz constitucional, o direito de esquecer uma parcela, ou um fato, ou um acontecimento de sua vida.

A questão deve ser verificada caso a caso porque pode haver situações onde exista interesse público em jogo. Quando a pessoa já tem filhos, ou foi casada e opta por reconhecer ou buscar a sua adequação de gênero, após o divórcio, seria justo também apagar esse casamento da história da vida da outra pessoa? Ou tirar da certidão de nascimento daquela criança o pai que ela recebeu? É esse confronto de direitos de uma mesma natureza que o direito também visa solucionar. Qual deve se sobrepor?

Quando a gente requer e a pessoa já fez a adequação de sexo e traz um relato de que não teve casamento ou não existe filiação, é uma questão que passa automaticamente: o juiz entende que não vai ter nenhum outro interesse em jogo. E, assim como ela fez a adequação do corpo físico, tem direito a adequação desse corpo social, dessa apresentação social, que são os documentos. Uma das exigências, quando se ingressa com essas ações, é a apresentação dos antecedentes criminais: o juiz se preocupa com a paz social, em garantir a segurança desse meio social.

Não é uma questão já pacificada, mas a tendência é que apenas a certidão de nascimento dessa pessoa se modifique. A do filho permanece com quem se apresentou como pai e como mãe, porque ela retrata a realidade daquele indivíduo.

Tem uma grande demanda no escritório de ações ligadas à questão dos direitos dos homossexuais, dos casamentos entre mulheres ou entre homens que buscam se realizar como pais. São fatos que vão pressionando o direito. Em um caso nós tínhamos duas mulheres, elas usaram o útero de uma e o óvulo de outra. Foi reconhecido o direito de as duas serem declaradas como mães. Hoje uma pessoa pode ter dois pais e uma mãe, ou duas mães e dois pais. Pode ser uma situação que envolva um pai biológico e um pai que sempre cuidou da criança. E a criança quer ter esses dois pais no registro de nascimento.

Os transgêneros têm de buscar seus direitos. Temos de bater constantemente na porta do Judiciário. Gostem ou não gostem os juízes, eles têm que acabar concedendo. Eles podem até resistir, mas são obrigados a obedecer ao que diz a Constituição: dignidade e igualdade para todos. 


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