O doce veneno do humor brasileiro

Autores de clássicos da literatura brasileira, Aluísio Azevedo e Raul Pompéia tinham em comum mais do que a maestria na composição de tramas e diálogos. Além das palavras, eles tinham o domínio sobre o traço humorístico das caricaturas. Esse lado menos conhecido dos criadores de O Cortiço e O Ateneu é uma das curiosidades de História da Caricatura Brasileira, de Luciano Magno (pseudônimo de Lucio Muruci). Fruto de 25 anos de pesquisa, o livro é o primeiro de uma série que pretende contar a história do desenho de humor (caricatura, charge e cartum) no Brasil – dos precursores até nossos dias.

Baseando-se em papiros expostos no Museu de Turim e no Museu Britânico, historiadores costumam reconhecer as origens da caricatura na arte egípcia e também nas imagens de paródias chistosas, pintadas em vasos gregos e em graffiti de Roma e Pompeia. Mas é na Itália do século 16 que essa arte ganha nome. Caricatura vem de caricare, que significa carregar, exagerar, acentuar – o termo teria sido cunhado pelos irmãos Carracci, que trabalhavam na Academia de Bolonha. É nos desenhos preservados de Annibale Carracci (1560-1609) – o filho mais notório dessa família de artistas – que se encontra o nascimento do humor como um segmento no universo das belas artes.

O humor gráfico de sátira cotidiana e política como conhecemos hoje está ligado à imprensa europeia do início do século 19, quando se estabelece definitivamente, inclusive no Brasil. A tradição nacional na arte da caricatura é consolidada junto com o velho mundo, entre as décadas de 1820 e 30. É a esse momento que o primeiro volume de A História da Caricatura Brasileira se dedica.

No Brasil, a arte da caricatura tem na charge A Companhia e o Cujo (1837), de autoria do gaúcho Manuel de Araújo Porto-Alegre, a certidão de nascimento oficial, segundo grande parte dos especialistas. Magno oferece um dado inédito, identificando no traço de antecessores a Porto-Alegre (todos anônimos que publicavam em pequenos periódicos) a origem da caricatura. Ou seja, antecipa em 15 anos os primeiros registros do humor gráfico no País.

Gênero anárquico e inconformista por natureza, não é de estranhar que os primeiros registros remetam à efervescência do debate em torno da Independência do Brasil e das movimentações e insurgências que refletiam os desejos patrióticos de um povo por uma nação livre. É justamente no ano da Proclamação da Independência, no desenho que estampa a edição inaugural do jornal pernambucano O Maribondo, de posição pró-Independência, que aparece a primeira charge feita no Brasil. De autoria anônima, a ilustração mostra um homem corcunda que tenta fugir de um enxame de marimbondos. Não há nela nenhuma personalidade pública. No entanto, comunica uma questão política: a corcunda faz referência àqueles que se curvavam frente à coroa e os insetos representam os brasileiros revoltosos. A descoberta só indica que a caricatura já existia no Brasil, mas não tira Porto-Alegre do posto de patrono da arte.  “Esses registros foram feitos por artistas desconhecidos, que provavelmente não viam aquilo como algo sério. Tanto que não assinavam. Foi Porto-Alegre quem apresentou a caricatura no Brasil como ofício das artes. Ele é o nosso primeiro caricaturista declarado e também o primeiro a lançar um periódico exclusivo sobre o tema, A Lanterna Mágica”, afirma.

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A obra também resgata nomes importantes, como Leopoldo Heck, Carneiro Vilela, Luis Távora e Mauricio Jobim. Entre eles, merece atenção o trabalho de A.P. Caldas. Autor das caricaturas publicadas no jornal O Torniquete, que teve apenas nove edições em 1878, Caldas desenvolveu um estilo pautado pela originalidade, como A Página Enigmática, misturando natureza e retrato. Artista à frente de seu tempo com suas caricaturas, seu delírio criativo beira o surrealismo.

O livro deixa claro a colaboração de artistas europeus radicados no País. É o caso do português Bordalo Pinheiro e do italiano Angelo Agostini, que teve papel fundamental na luta pela Proclamação da República, Abolição da Escravatura e  grandes campanhas políticas da época. Fundador da Revista Ilustrada – “A bíblia da abolição do povo que não sabe ler”, disse na época Joaquim Nabuco –, é também autor de As Aventuras de Nhô Quim ou Impressões de uma Viagem à Corte, série pioneira de histórias em quadrinhos. Publicada em capítulos em 1869, foi a primeira novela gráfica brasileira, projeto que dá prosseguimento em As Aventuras de Zé Caipora, obra marcada pela brasilidade do autor.

A série completa deverá ter sete volumes, o próximo, batizado de Guerras, Diplomacia e Questões Nacionais no Século XIX, deve ser lançado nos próximos meses. Será voltado para a campanha abolicionista, à questão religiosa, à República, à Guerra do Paraguai, ao Carnaval e ao jogo do bicho. Que venham os novos volumes!


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