Virando para Noroeste do alto do Terraço Itália, logo se avista um corte entre os prédios. O que na década de 1970 era a maior obra de concreto armado da América Latina, tornou-se um dos grandes problemas urbanísticos da região. O Elevado Costa e Silva, o Minhocão, desafogou o trânsito e tornou mais claustrofóbico o caminho entre a Praça Roosevelt e o Largo Padre Péricles, em São Paulo.
Em maio do ano passado, a mídia divulgou o plano da prefeitura de demolir o Minhocão, com o objetivo de estimular o mercado imobiliário da região. O assunto virou pauta nos bares da Avenida São João e dividiu a opinião dos moradores. Alguns acreditavam que valorizaria as redondezas, levando para longe a bandidagem e os moradores de rua. Outros pensavam que a demolição causaria uma grande confusão, com interrupção de vias, muita poeira e prejuízos para os negócios. E, claro, o problema do deslocamento do trânsito de carros, que talvez fosse transferido para uma nova via sobre a linha de trem que acompanha o Minhocão a cerca de um quilômetro ao norte.
Essa não é a primeira vez que se especula o fim dessa estrutura de concreto na capital paulista. Mas o plano de demolição imediata foi negado pela assessoria de imprensa da prefeitura, que afirmou ainda não estar definido o destino dessa via elevada. O certo é que o Minhocão gera discussões acaloradas sobre o que se deve e o que não se deve fazer em uma cidade grande.
O arquiteto José Alves e sua esposa e sócia Juliana Corradini moram em um apartamento com vista para o Minhocão, onde ele costumava correr todas as noites e usar como caminho para seu escritório. Sócio da Frentes Arquitetura, sempre teve ideias de melhorias para a região e aproveitou para mostrá-las no Prêmio Prestes Maia de Urbanismo de 2006 – Uma Cicatriz Corta a Cidade: Soluções para o Elevado Costa e Silva.
O projeto, que recebeu o primeiro prêmio, consiste principalmente em uma estrutura metálica que fecharia as pistas do Minhocão com um túnel suspenso, que continuaria com sua função de conexão viária Leste-Oeste, porém evitando que seus ruídos chegassem aos moradores vizinhos. No topo, seria construído um parque suspenso e em suas laterais, voltadas para os prédios, seriam montadas galerias de arte. José Alves acredita que, em poucas décadas, não teríamos carros como hoje, e esse espaço coberto poderia ser usado como um prédio, com quadras poliesportivas e galerias de arte, por exemplo.
Totalmente irônico às soluções de transporte de São Paulo, com 500 mil novos carros nas ruas todos os anos, o arquiteto Márcio Kogan criou o projeto chamado “Superminhocão”. Em seu site ele expõe: “O genial Superminhocão vem para encontrar as necessidades da cidade contemporânea e o pensamento urbanístico de seus líderes”. Ele multiplicaria o minhocão por seis, ou seja, mais cinco andares de pistas, umas sobre as outras, terminando no último andar com um parque suspenso.
“Talvez uma das mais graves decisões (em São Paulo) foi a opção pelo transporte rodoviário privado”, acredita Kogan. “O Plano de Avenidas do prefeito Prestes Maia, de 1930, é uma espécie de ícone dessa ideologia. O Elevado Costa e Silva faz parte dessa mentalidade que acabou por enterrar qualquer possibilidade de qualidade de vida na cidade”, complementa o arquiteto Gabriel Kogan.
Segundo o arquiteto e urbanista , ao inaugurar a obra em 1971, Paulo Maluf somente se inseriu no pensar da época, ou seja, priorizar investimento em sistema viário. “A grande questão é como viabilizar a redução da necessidade de um sistema viário como este.” A resposta parece ser unânime entre arquitetos e urbanistas, construção de um sistema de transporte público melhor, ou mais especificamente, abundância de linhas de metrô.
A vida no elevado
Na esquina da São João com a Rua Apas, em um pequeno castelo símbolo da desvalorização da região, causada principalmente pelo Elevado Costa e Silva, uma grande fila de moradores de rua forma-se para desfrutar de mais uma refeição oferecida pela ONG Clube de Mães do Brasil. Era segunda-feira, e sua fundadora e ex-moradora de rua, Maria Eulina, está de saída para uma reunião com o prefeito Gilberto Kassab. Na pauta, o deslocamento da cracolândia para aquela região e uma possível parceria para levar alguns desses jovens para uma clínica de recuperação em Bragança Paulista.
Alguns criticam o Clube de Mães do Brasil por acreditarem que são mais um atrativo para os desassistidos ficarem na região. José Ricardo Alves de Medeiros, 45 anos, diz que Maria Eulina oferece oportunidade para quem quiser mudar de vida, mas muitos só aparecem para comer. Ele mesmo foi ajudado. Depois de passar oito anos nas ruas, viajando de Sul a Norte do Brasil, inclusive dormindo em uma caverna em Itajaí, ganhou um quartinho em um prédio ocupado e trabalha como artesão na ONG.
Já o paulistano Denis Simões de Souza, 29 anos, não pensa em sair das ruas e parar de fumar crack. Inclusive perdeu o skate para a droga. “Fumei ele.” Ele mora sob o elevado há 15 anos e trabalha olhando carros
Vindo de Pernambuco aos 13 anos, com o irmão três anos mais velho, José de Oliveira Silva, 34 anos, acabou nas ruas ao não encontrar um amigo que os abrigaria. Às vezes, dorme sob o minhocão e também prefere a liberdade das ruas, às noites regradas dos albergues.
Empurrando seu carrinho com uma caixa de isopor, Ailton de Jesus Izaú trabalha com reciclagem, catando latinhas e papelão. Ele já fazia isso no Rio de Janeiro e quando veio tentar a sorte em São Paulo, há dez anos, não lhe sobrou outra alternativa além de utilizar o elevado como lar e o castelinho como refeitório. Os 3,5 km do Elevado Costa e Silva viraram um grande teto para muitos moradores de rua, com colchões ou carroças de catadores de lixo.
Vista das janelas
Das janelas dos desvalorizados apartamentos que acompanham as avenidas São João e Amaral Gurgel, os moradores podem observar e, às vezes, ser observados pelos carros e transeuntes do elevado. Aos domingos, quando o Minhocão é fechado para carros e moradores da região aproveitam o parque de asfalto, as janelas dos apartamentos são atrativos para a curiosidade.
As roupas secam expostas nas varandas, onde famílias relaxam em cadeiras de praia, com o concreto armado quase ao alcance das mãos. A criança traz o cachorrinho até a janela de vidro semiaberta para observar o homem que passa de bicicleta sobre a poça de água. Ambulantes com seus carrinhos vendem água de coco e sorvete, bons para os domingos de calor, com vista para os prédios antigos e adornados, como o Terraço Itália e o Copan, formando um grande corredor acinzentado, quase etéreo.
Gisele Cristina de Lima, 24 anos, costumava correr e andar sobre o elevado e agora cuida do filho de 1 ano e meio quando não está trabalhando no call center. Aos 18 anos, ela veio para a capital de Jaguariúna (125 km de São Paulo) com a irmã e logo alugou por 530 reais o pequeno apartamento na esquina da São João com a Amaral Gurgel. No estreito corredor, há dois armários embutidos, um com a máquina de lavar e o outro com a pia. “Fecho a porta e escondo toda a louça suja”, brinca. Da janela da sala, avista-se o elevado, quando faz uma de suas três curvas. Ao entardecer, é possível observar carros transitando na contraluz sobre o aviso ‘DEVAGAR’. Ela já se acostumou com a vista e o ambiente, mesmo nos dias em que não param de passar carros, dormindo em sua cama na sala, ao lado da irmã no sofá. “Acordo às 6h30, abro a janela e já ouço o barulho.”
A baiana Neide Aparecida Francisca, 46 anos, escuta os muitos decibéis de som do elevado há mais de 20 anos e se diz um pouco surda. Fala alto com sua filha, Betânia Reges de Lima, que tem uma pequena loja de móveis usados e seminovos no térreo, onde também dorme improvisadamente com seu marido.
Acostumada ao canto dos pássaros quando morava em Interlagos, Edilen Oliveira, 31 anos, teve de se adaptar à nova realidade, com sua janela do primeiro andar a cerca de 4 m do elevado. Tão perto que ela prefere manter janelas e cortinas fechadas, tanto pelo barulho quanto pela privacidade. “Só tem uma árvore aqui. Estamos no meio do concreto”, reclama. Seu apartamento chamou a atenção da banda CPM22, que filmou o clipe Nossa Música, usando-o como cenário. Também foi usado em minissérie da Rede Globo e Edilen já foi entrevistada para programa televisivo e vídeo-documentário sobre a região. Seu marido um dia estava tomando sua cerveja tranquilamente na varanda, quando viu uma menina se jogar de um prédio em frente. Desde então, fica um pouco preocupado em repetir seu ritual. Outros casos de suicídio e violência na vizinhança do elevado torna o casal cada vez mais isolado. “Antes se vendiam os apartamentos pelo barulho, agora é pela insegurança.”
Das 21 às 6 horas, o Minhocão fica fechado para carros, para garantir um pouco de silêncio durante o sono. Mas alguns moradores reclamam dos traficantes, travestis e prostitutas que sobem o elevado durante a madrugada, chegando a fazer sexo em frente às suas janelas. “Não devia ser fechado. Não me incomoda o barulho”, sugere Evandro Ferreira Costa, 56 anos, dono de uma mecânica na São João. “Tem coisa pior do que carro passando aí em cima.” Ele mora no prédio ao lado desde 1978 e costumava fechar a oficina à uma da manhã. Mas já foi cinco vezes assaltado e agora funciona das 6h40 às 19 horas. Nos dias de jogo de futebol, a violência cresce e ele chega a deixar as portas fechadas por todo o dia. Conta que muitos carros já caíram do elevado na curva em frente de sua mecânica, até que subiram o muro de proteção.
Mas não é só de tragédias que vive o Minhocão. Todo ano, a Corrida de São Silvestre passa por parte de sua extensão, levando os moradores para as janelas. Em uma das edições do evento de cultura popular Revelando São Paulo, uma procissão com bois, cavaleiros, uma fila de carroceiros e percussionistas passaram pela Avenida São João.
Aldo Lezama, 33 anos, já trabalhava com madeira em Cuzco, Peru, quando veio para o Brasil há dois anos, e conseguiu emprego como entalhador de madeira, fazendo principalmente molduras. Trabalha ouvindo música e não se incomoda de ter o elevado como jardim. Do lado de fora, um grupo joga dominó, perto do terminal de ônibus, organizado muitas vezes por Arnaldo Jonas Santana, 61 anos, que, nas horas vagas dos consertos de máquinas de lavar, aproveita para passar o tempo com os amigos.
O elevado é este contraste da cor das pessoas, de suas roupas, tristezas e sorrisos, com o concreto da cidade e o cinza sem fim de seus prédios e pilastras. Nos carnavais, já virou tradição o bloco Agora Vai subir o elevado pelo Largo Padre Péricles cantando suas marchinhas. “Tem muita água na terra da garoa/Vendi o meu Chevette, vou andar só de canoa (…)/Vem mergulhar na multidão/Pega a minha prancha e vem surfar no Minhocão”, a letra de 2010 critica com humor as enchentes na cidade. Com seis anos de vida, em cada edição do bloco, o elevado sustenta mais foliões, que tomam toda sua largura pelas primeiras centenas de metros de seu trajeto. Talvez em nenhum outro momento do ano esse pedaço de São Paulo fique tão colorido e animado, atraindo pessoas de outras regiões, inclusive o casal Dimitre Gallego e Luciana Antunes, da Fluxo Arquitetura, que trabalham em um projeto para torná-lo um parque linear suspenso, afastando as laterais dos prédios e derrubando-o em alguns trechos.
Enquanto mudanças mais dramáticas não ocorrem, grafiteiros espalham suas artes pelas colunas do elevado, tornando-o uma galeria aberta. Em 1998, a Funarte colocou em prática seu projeto Elevado à Arte, que trouxe os artistas plásticos Mauricio Nogueira Lima e Sonia Von Brusky, para pintar as laterais do Minhocão.
Edson Neres da Silva, 32 anos, e João Neto, ou John, 29 anos, trabalham juntos como grafiteiros há 7 anos e foram contratados pelo Hotel Metrópolis, na Avenida São João, para pintar um grande painel com símbolos turísticos da cidade. Um sobre a escada o outro no chão, com spray e foto esquadrinhada nas mãos, eles desenham cada detalhe.
No mesmo mês do anúncio da demolição, os diretores João Sodré, Maira Santi Bühler e Paulo Pastorelo projetaram o documentário Elevado 3.5, que conta a vida de seus moradores, em um grande telão no próprio Minhocão. Um grande espelho de 4 m x 10 m, colocado diante dos olhos dos moradores, dando a eles a oportunidade de enxergarem tanto a sombra da via expressa como suas próprias sombras.
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