A psicanálise, assim como a antropologia e a crítica de arte (para não falar na economia), tem uma linguagem própria, nem sempre fácil de compreender. No entanto, muitas vezes a recompensa para quem mergulha nesse universo é grande. É o que acontece com a leitura de Mal-estar, Sofrimento e Sintoma – uma Psicopatologia do Brasil Entre Muros, de Christian Dunker, um livro cuja importância deve crescer muito à medida que for mais e mais discutido. E pode ter a chave ou chaves para o entendimento de nosso mal-estar, numa direção diferente daquela teorizada por Freud em seu clássico O Mal-estar na Civilização.
Fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP (LATESFIP), ao lado de Vladimir Safatle e Nélson da Silva Jr., Dunker é um sujeito alto, grande como suas ideias, ambiciosas, mas sempre expostas com modéstia e generosidade. Na conversa que tivemos em seu consultório, em uma casa simpática no Paraíso, bairro paulistano, o verbo correu solto, entre exclamações, risadas e momentos de profunda reflexão. Dunker, autor também de um livro premiado pelo Jabuti em 2011, Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (Editora Annablume), ressaltou temas de seu livro, como a lógica do condomínio, a brasilidade e a psicanálise enquanto sintoma social e formadora de nossa identidade, e fez uma análise da atual conjuntura, das manifestações de insatisfação e ódio, além de mostrar as relações estreitas entre o neoliberalismo e o surgimento de novos sofrimentos psíquicos a partir dos anos 1970. Também fez questão de dizer que seu livro não é tão difícil assim: “Tem capítulos absolutamente não acadêmicos, eu já sei que vou pagar uma conta por isso. Por exemplo, o capítulo em que eu procuro retomar Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda, misturando com música e literatura. Em termos acadêmicos é criminoso, né, porque o estudioso do Lima Barreto vai dizer que a internação dele não foi bem assim, que não se pode considerar apenas o modernismo paulista, etc. Você comete violações para fazer esse passeio macroscópico e dialogar com um público menos segmentado. Inclusive o capítulo sobre diagnóstico não é para psicanalistas, mas para pessoas ligadas ao direito, educação, medicina”.
Logo na introdução do livro, Dunker traz um conceito-chave para entender grande parte da sua hipótese. Além do “diagnóstico” que conhecemos, aquele da clínica, do reconhecimento de sintomas regulares, de síndromes e distúrbios, jurídico-morais, seria preciso desenvolver uma espécie de “diagnóstica” sobre tudo que envolve seu transbordamento, a expansão desses atos, os raciocínios e estratégias de inserção política, clínica e social do diagnóstico e sua consequente “força de lei”. “O diagnóstico de uma doença grave, por exemplo, não é apenas um fato clínico do qual decorrerá um tratamento médico. Ele também se tornará, eventualmente, um fato econômico, para a pessoa e para a família que o recebe, um problema moral, se a doença possuir valência moral na cultura do paciente…” E sintetiza: “Uma diagnóstica é composta pelos efeitos, pelos sentidos e pelas ‘re-redesignações’ que um diagnóstico pode ter para um sujeito ou para uma comunidade diante do aspecto social de sua patologia. Ela é fundamentalmente uma resposta ética que podemos criar para dar destino ao que a psicanálise chamou de mal-estar”. “Boa clínica é crítica social feita por outros meios.” Esta frase no livro, seria uma provocação, diz o autor: “Uma paráfrase de uma frase do Clausewitz, que diz que a guerra é a política feita por outros meios, ou seja, você faz a guerra para voltar à política e quando a política se esgota você vai para a guerra de novo”.
Sua “diagnóstica” do momento – se é que podemos usar essa expressão – é clara: “Coisas como democracia racial, homem cordial, o nosso sincretismo, o jeitinho brasileiro não estão funcionando mais. Nós demos um passo no sentido de nos tornarmos mais indivíduos”. O problema, explica, é que esses novos indivíduos “acreditam demais no contrato, nas relações institucionalizadas, fazem sua parte, mas não recebem em troca a compensação. Aí vem o ódio”.
Pensando em nossa história, Dunker sugere que houve uma suspensão dos termos do problema: “O mal-estar estava nomeado, tivemos a ditadura militar, a inflação, a miséria, a seca, a fome. Com Fernando Henrique, Lula e Dilma, parte de tudo isso foi resolvida, mudando o contexto. O tipo de polarização que a gente tinha foi resolvido. Nossos problemas se tornaram outros e entendo que a gente não criou ainda um pacto em torno de qual é o novo mal-estar e quais são as narrativas de sofrimento que vão governar e ser legítimas nesse quadro. Um elemento unificador do nosso mal-estar hoje é a violência e a corrupção. Só que não são, até segunda ordem, temas que inspirem de fato uma política. Uma interpretação que eu daria para esse momento é que nós estamos por um lado muito fixados em certas nomeações e nomeações que são obviamente insuficientes. A gente precisa de outras, de uma reinvenção e acho que vai vir, pois estamos em um momento de transição”.
Sendo mais específico, Dunker acredita que “a gente vai ver um tempo novo de divisão social, não no real, mas na representação, das pessoas produzirem uma situação geopolítica parecida com a que o Chile viveu até bem recentemente, de estreitamento do centro e polarização de todos os tipos, inclusive de homens e mulheres. Esse tipo de divisão leva, historicamente, a uma reformulação institucional mais vasta ou a uma anomia, que é uma espécie de transformação desse estado de bagunça em regra, ou seja, não vamos mais nos entender, vamos continuar nos desentendendo até quebrar”.
Mas também é otimista quanto aos jovens: “No apagar das luzes desse projeto, e eu considero que Fernando Henrique, Lula e Dilma, e o Itamar Franco também, são o mesmo projeto, tem uma palavra de ordem que é reveladora: pátria educadora. Pela primeira vez na história, você vai ter uma parte expressiva da sociedade educada. As novas gerações se interessam incrivelmente por política, têm uma lucidez de leitura de cenário impressionante e vão fazer alguma coisa a partir de um outro patamar de cultura. Você tem debate aberto e franco pelo Brasil profundo, em Goiânia, em Itumbiara, em Rio Preto, onde quer que se vá”.
Do ponto de vista da insatisfação atual e do sofrimento, no entanto, o buraco parece estar mais embaixo: “A gente só consegue pedir que prendam os ladrões, acabem com a desordem, criem mais leis”, afirma. E continua: “Não é que isso seja equivocado, mas deixa de lado outras formas de sofrimento que são igualmente importantes e que, sem as quais, você não consegue propriamente reorganizar sua relação com a lei. Nós estamos fetichizados com mais leis, mais códigos, mais regras e obviamente, do outro lado, menos corrupção, menos roubalheira, que é produto de uma autointerpretação baseada excessivamente no contrato, isso tudo é contrato! A psicanálise é também, até certo ponto, uma teoria que parte da primazia da lei e do contrato como determinação dos sintomas e formas de sofrimento. Isso explica por que no Brasil tem tanta psicanálise, de boa e má qualidade, porque ela faz parte de nossa cultura, porque é um sintoma do Brasil. Isso é uma tese do livro. Porque o Brasil tem essa marca de se interpretar como deficitário do ponto de vista de relação com a lei. Isso desde os economistas da década de 1920, os antropólogos do final do século 19, os portugueses que nos colonizaram… Quer dizer, o Brasil é uma terra sem lei e sem rei”.
O regime de contrato, fetichização das leis, individualização, novos sofrimentos estão, de acordo com o autor, relacionados intimamente a uma série de acontecimentos concomitantes, a globalização, o surgimento do neoliberalismo e à determinação do DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), que expurgou a psicanálise da saúde mental. “O neoliberalismo te obriga a sofrer como um indivíduo e tão somente como um indivíduo. Isso é uma novidade. Não tem mais sofrimento coletivo, o sofrimento coletivo é uma coisa anacrônica. E mais: para você conseguir sofrer e ser reconhecido, você tem de sofrer como indivíduo. Ou seja, você tem de sofrer em relação à lei, as formas de tratamento se tornam absurdamente ligadas à produção de contratos. Por exemplo, hoje se você pegar o tratamento básico para anorexia, você vai fazer um contrato com seu médico dizendo que se compromete a comer tantas calorias por dia; se você violar o contrato tantas vezes, você vai ser punido ou perder regalias x e y, e se você violar o contrato no final, você será desligado do serviço. Loucura! É uma maneira de colocar o sofrente como um indivíduo consumidor, que, se viola o contrato, é punido ou não ganha o prêmio, ou seja, se está aplicando a lógica de tratamento, cuidado, atenção ao funcionamento econômico. Curiosamente, você pode definir o neoliberalismo com a suspensão das zonas protegidas. Hoje faz parte dos protocolos pensar: esse cara precisa de um transplante de fígado, mas ele é alcoólatra e alcoólatras costumam recair, então passa o fígado para outro, porque o Estado tem de ter uma boa relação custo/benefício. Daí que o diagnóstico para nós (do LATESFIP) seja um ponto de honra, porque houve a assimilação desse campo, da legitimidade para práticas acintosamente comerciais.”
O livro descreve um grande sintoma que cada vez mais estaria presente na forma de organização social contemporânea, a “lógica do condomínio”. “Nós estamos aqui dentro e nosso pacto produz uma lei local que é capaz de ir contra a lei geral e que nos proporciona mais gozo, mais satisfação, além da segurança objetiva e dos benefícios reais que é a inveja que eu provoco em quem está lá do outro lado do muro.
Aqui, a lei não deve ser entendida apenas como um princípio que nos torna a todos equivalentes, interditando certas coisas e prescrevendo outras. A forma de poder que é característica do síndico reside na decisão de “suspender” a aplicação da lei ou de intensificar sua aplicação conforme a circunstância. É assim que pode haver uma corrupção dentro da lei, uma opressão dentro da lei, uma imoralidade dentro da lei. O condomínio é um caso particular do que Walter Benjamin chamou de estado de exceção, e que gradualmente tornou-se a regra para nossas formas de vida, especialmente depois dos anos 1970. E enquanto isso acontece, a gente tem a inveja como afeto social dominante. Então, você tem Daslu, coisas bizarras em termos de consumo, tênis não sei o quê, operação plástica, a arte negociada de uma certa maneira… O que começa a acontecer é que o condomínio vai ficando menor e menor. A varanda gourmet é um reflexo disso, pois, em algum momento desse processo, a forma condomínio começou a admitir pessoas que não estavam previstas. Então você vai ao aeroporto e tem esse bando de gente viajando; você vai ao shopping center e tem pessoas que não são como você e que estão consumindo; a filha da empregada estuda na PUC com seu filho.”
“A vida em forma de condomínio tem um traço que é assim: só vale o último capítulo. Só vale o carro do ano, a Mercedes do ano, o que você está mostrando em presença. Se você tem ou não, se vai para Miami ou não. Você tem uma redução do tempo para o presente mostrável.” Aparentemente, com a desativação de certos pactos de silêncio (a corrupção estava aí, mas não vinha à tona), teria-se aberto um canal de mudança de lugar, da “inveja” em “ódio”.
Para Dunker, isso inicia, de certa maneira, uma nova época. “Foi se formando no Brasil novas formas de sofrer ligadas à indeterminação. Nem tudo é lei. Tem muita gente que está sofrendo porque não sabe o que vai acontecer e não é nem PT nem PSDB. Não tem lugar nessa geografia, não tem opinião. Está totalmente silenciada nessa configuração, se perguntando quem é e não qual é a lei. Quem ela é na medida em que encontra um outro que também não sabe mais quem é, se é uma pessoa, um animal. Ou seja, ou você sofre porque alguém violou o pacto ou você sofre porque tem um objeto intrusivo. A ressaca moral que vai acontecer depois é, ‘escuta, precisamos repensar o Brasil, precisamos reinventar a história’. Isso, por um lado, e o sentimento de anomia por outro. Vai vir. A ideia de que, bom, acabou o Estado, acabou o governo, etc, contém uma verdade de que alguma coisa acabou. Uma forma de vida acabou. Talvez agora ou daqui a pouco surjam outras formas. Mas, enquanto isso, o que acontece com a angústia, a inveja, o sentimento de injustiça… Tudo isso se polariza no ódio. Você só pode entrar na jogada se for com o ódio.”
Mas e o antídoto? Por onde a gente sai? “Sai pelo encontro na mata. A ideia de um índio andando na mata fechada, que encontra algo na clareira. É a lógica do encontro. No condomínio não tem encontro. A graça do encontro na mata é que ele não se faz por uma lógica do nós e eles, que tem a ver com o ódio.
No encontro com o outro na mata, eu não sei mais quem eu sou; ele pode ser um inimigo ou um amigo, um ser humano ou um extraterrestre; eu que preciso me libertar e dar uma voz a um outro tipo de sofrimento, o sofrimento de indeterminação, que tem a ver com o seguinte: escuta, nós estamos sofrendo por excesso de identidade, larga a mão dessa paixão pela identidade, tem a arte dizendo que outros modos de existência em que você não precisa ser idêntico a si. Você precisa construir uma experiência perspectivista, em que não é preciso um diagnóstico, uma nomeação, branco, preto, classe média ascendente, rico bem resolvido, tanto faz, é possível uma vida que seja menos dependente, menos sedenta de identidade, e mais sedenta de alteridade, de uma espécie de negociação perspectiva que dá a graça do jogo e dá outra forma de sofrer, não mais pelo supereu proibitivo, mas por um supereu baseado na potência e na impotência.
Ou seja, nos falta desesperadamente, constitutivamente, uma coisa que não tem a ver com a lei mas com não saber, com a incerteza, a dúvida, a angústia, suspensão de posição no mundo. E onde está isso? Está na arte. A arte conseguiu se desenvolver e falar de um sofrimento que tem essa chave gramatical. A Marina Abramovi é o encontro na mata.”
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