Os olhos tristes da fita
Rodando no gravador
Uma moça cosendo roupa
Com a linha do Equador
E a voz da Santa dizendo
O que é que eu tô fazendo
Cá em cima desse andor
(Beradêro, no álbum Aos Vivos)
Conheci Chico César por meio do também artista J. Arimatéia Brito, mas depois me lembrei de João Pessoa, a cidade em que Chico tinha uma banda, Banda Jaguaribe. Embora já tivesse outras no Catolé, ele foi guerrilheiro cultural com o grupo Jaguaribe Carne. Chico subiu, subiu o cabelo, subiu sua poetagem e avoou até o sucesso, especialmente com seu primeiro disco – Aos Vivos. Outros chegaram e Chico embrenhou-se como poeta que é e paraibano, apaulistando algo. Nem por isso é menor. Ao contrário, ele nos ensinou muito, relembrando-nos da nossa mistura.
O poeta foi ledor de cordel, comeu com farinha a cultura de uma Paraíba rural e urbana, até as barbas de Sampa e do mundo, já impregnada de “suó” das máquinas, da mídia e do homem amoroso. Juntou-se com diferentes estéticas e, com a sucessão fonográfica, estourou, pipocou.
Hoje, Chico César é secretário da Cultura da Paraíba, sem tempo de dar entrevista. Assim, confiando no que conheço e leio dele, vamos lá, iniciando com seu sucesso estrondoso:
Mama África
Mama África (a minha mãe)
É mãe solteira
E tem que fazer mamadeira
Todo dia
Além de trabalhar
Como empacotadeira
Nas Casas Bahia…
Beraderô
A tinta pinta o asfalto
Enfeita a alma motorista
É a cor na cor da cidade
Batom no lábio nortista
O olhar vê tons tão sudestes
E o beijo que vós me nordestes
Arranha céu da boca paulista
Cadeiras elétricas da baiana
Sentença que o turista cheire
E os sem amor os sem teto
Os sem paixão sem alqueire
No peito dos sem peito uma seta
E a cigana analfabeta
Lendo a mão de Paulo Freire
Mulher, eu Sei
Eu sei como pisar
No coração de uma mulher
Já fui mulher eu sei
Para pisar no coração
de uma mulher
Basta calçar um coturno
Com os pés de anjo noturno
Para pisar no coração
de uma mulher
Sapatilhas de arame
O balé belo infame
Para pisar no coração
de uma mulher
Alpercatas de aço
O amoroso cangaço
Chico César se afirma como poeta já na música, mas escreve poesia nua na sua obra Cantáteis (Editora Gramond, 2005). Os cantos elegíacos de amizade refletem um Chico dos anos 1980/90 em São Paulo, onde ele declara amor pela cidade. Nele, Chico expõe sua cultura literária, seu conhecimento como jornalista que é (e que degusta o mundo nos fatos e na linguagem da arte de Pound, João Cabral ou Dante). Seguem dois exemplos extraídos de Cantáteis:
A fuleiragem, o swing
um triângulo tililingue
o ribombar do zabumba
rambo II, trepada, rumba
coração escrito love…
morte e vida Severina
pro filho de Etelvina
circo césar circunspecto
claríssima Lispector
luz na alma das mulheres
sou cantor não sou alferes…
*É paraibano, mestre e doutor pela ECA-USP. Professor de Teoria Literária na Anhembi Morumbi, professor colaborador da ECA-USP, Fundação Escola de Sociologia e Política-FESP, além de contista e poeta com livros publicados (paulo@brasileiros.com.br).
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