O estranho movimento das traves

No começo de 2008, o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, comentava, em entrevista à Brasileiros, que a Força Aérea Brasileira (FAB) era “o principal instrumento da diplomacia brasileira”. O comentário se justificava quando o chanceler confirmava ter feito, até março daquele ano, mais de 210 viagens a serviço ao Exterior. Na época, a disposição para o trabalho, fosse em Brasília ou nas sucessivas viagens a todos os cantos do mundo, tinha lhe valido na Casa de Rio Branco o apelido, antes secreto e hoje público, de “Duracelso”, como se fosse movido à pilha. A julgar pelo que aconteceu de 2008 para cá, o chanceler deve ter turbinado suas baterias. O total de viagens acumuladas já passou de 450. Em parte dessas incursões, muitas vezes atuando como bombeiro nas crises, Celso Amorim teve a companhia do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mostrando que não é à toa que o Brasil passou a ser considerado um global player.

A dupla estava, por exemplo, em maio, no Irã, tentando com a Turquia, e conseguindo que o regime dos aiatolás e do presidente Mahmoud Ahmadinejad aceitasse um acordo nuclear que pode afastar a possibilidade de uma crise mundial pior do que o atoleiro em que os EUA se meteram no Afeganistão e no Iraque.
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Alguns dos parceiros internacionais de Celso Amorim, com quem ele mantém contato constante, mudaram. Saíram de cena, por exemplo, George W. Bush e sua secretária de Estado, Condoleezza Rice, substituídos, aparentemente para melhor, por Barack Obama e a poderosa Hillary Clinton. O que não mudou foi a facilidade com que o chanceler – com mais tempo no cargo na história do Brasil – se relaciona com os pesos-pesados da política e da diplomacia mundial. Se Condoleezza era chamada de Condi, apelido usado pelos mais íntimos do ciclo de poder da “Era Bush”, Mrs. Clinton é simplesmente Hillary. Que, claro, o trata de Celso. Mas tudo isso não impede que as crises tenham sido constantes. Enquanto recebia a Brasileiros no final de maio, Amorim (como gostam de chamá-lo jornais e revistas brasileiros que pensam estar, digamos, nos EUA), ou Celso, como o tratam algumas das pessoas mais poderosas do mundo, estava monitorando o segundo tempo da crise do Programa Nuclear do Irã e os desdobramentos do acordo arrancado, aos 45 do segundo tempo, por Brasil e Turquia. E, nos dias que se seguiram à entrevista, sendo, como todo o mundo aliás, surpreendido pelo ataque de Israel a um comboio de navios carregados de ativistas e toneladas de material e equipamentos para a população da Faixa de Gaza. E a rotina de telefonemas para todos os parceiros internacionais se repetiu, ignorando os fusos horários em que se divide o mundo. Com relação a viagens, uma daquelas boas, com um país por dia, estava no forno e seria executada em junho e julho, com a participação de Lula: um périplo africano, percorrendo o continente até a África do Sul, onde o presidente e Celso Amorim estarão presentes na final da Copa do Mundo (esteja ou não na festa a Seleção Brasileira).

Brasileiros – Dois anos atrás, publicamos aqui uma entrevista com o senhor que era uma espécie de balanço de seus seis anos no cargo de chanceler. Agora, além de um novo retrospecto de sua permanência no comando da diplomacia brasileira, precisamos analisar o momento atual, de mais uma crise internacional na qual o Brasil desempenha papel de destaque. Em 2008, o senhor comentava que tratava a então poderosa secretária de Estado dos EUA, Condoleezza Rice, por Condi, indicando muita proximidade. E agora, como é sua relação com a secretária Hillary Clinton?
Celso Amorim –
Veja, os americanos são muito informais nesse aspecto, de modo que não é nenhum mérito ter esse tipo de relação. Vocês se lembram da correspondência entre o Silveira (Antonio Francisco Azeredo da Silveira, ministro das Relações Exteriores no governo Geisel, de 1974 a 1979)e o Kissinger, nos anos 70, com os dois se tratando por dear Henry e dear Antonio. Na verdade, não se fica amigo de um americano imediatamente, mas quando se pode ter uma relação de trabalho mais próxima, o tratamento passa a ser pelo primeiro nome. Assim, chamo a Hillary de Hillary, e ela me chama de Celso. Isso é normal.

Brasileiros – E essa relação sobrevive à polêmica do Irã?
C.A. –
Vamos ver como essa questão do Irã vai ficar. Espero que a nossa relação continue boa, porque a secretária está muito empenhada em um caminho que nós não concordamos, de achar que só as sanções é que farão o Irã se mover. E isso, aliás, ela nos diz com franqueza. Nós, ao contrário, achamos que com diálogo se pode encontrar uma solução. Não temos diferença de objetivos, talvez abordagens diferentes, mas enfim, queremos que o Irã possa ter um programa pacífico, com garantias adequadas para a comunidade internacional. Apenas acreditamos em meios diferentes para chegar a esse objetivo, essencialmente é isso.

Brasileiros – Então os objetivos são os mesmos?
C.A. –
Eu não sei quais são os objetivos últimos, eu não posso ficar julgando intenções dos países. Em relação a esse ponto, sim, são os mesmos. Agora se os EUA têm outros objetivos em relação ao Irã, em relação ao Oriente Médio em geral, aí não estou dizendo que os objetivos são os mesmos. Estou falando que ambos reconhecem que o Irã tem direito a um programa nuclear pacífico.

Brasileiros – No acordo, o limite de enriquecimento de urânio fica entre 20% e 90%?
C.A. –
Para que o urânio enriquecido seja de grau de armamento, tem de ser perto de 90% ou acima de 90% para ser uma arma atômica. Agora, muitos dirão que passar de 20% para 90% é relativamente fácil do ponto de vista técnico, então a questão é a finalidade que está sendo dada. Obviamente, com 3,5% não se pode fazer nada. Com 20% também não se pode fazer nada, desde que o material esteja salvaguardado. Se não houver nenhuma salvaguarda, nenhuma inspeção e se o país – não estou dizendo que seja o caso – mas se o país quiser passar de 20 para 80 ou para 90, provavelmente pode. Quer dizer, não é que seja um processo simples, creio eu, não sou especialista nisso, porque exige nova configuração das cascatas de centrífugas, etc. Mas não deve ser impossível. Eu sempre digo, a melhor garantia de que um programa nuclear está sendo realizado com fins exclusivamente pacíficos, é a presença dos inspetores da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) no país.

Brasileiros – Isso está no nosso acordo?
C.A. –
Eles estão lá, é inviável levar o acordo adiante sem os inspetores da agência, não há a menor dúvida. Nós não inventamos nada, esse acordo foi proposto pelo P5+1 (os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, EUA, Rússia, China, França, Grã-Bretanha e Alemanha), mais especificamente pelo chamado grupo de Viena, que inclui EUA, França e Rússia, que estariam envolvidos diretamente, além da Agência Atômica, no fornecimento de urânio. Eles propuseram esse acordo ao Irã. Por quê? Porque alguns meses antes, o Irã havia pedido para a AIEA ajudá-lo a adquirir no mercado internacional os elementos combustíveis para um reator de pesquisa.

Brasileiros – Os bastões de 20%?
C.A. –
Exatamente, com urânio 20%, mas já transformados em elementos combustíveis, que são utilizados para a produção de isótopos medicinais, basicamente. E é uma obrigação da Agência Atômica ajudar o Irã a conseguir urânio para fins pacíficos. Não apenas o Irã, mas qualquer país e especialmente nesse caso, para fins medicinais. Mas, ao invés de simplesmente procurar atender ao pedido do Irã, os países do P5+1 acharam que havia aí uma oportunidade de conseguir outro tipo de acordo. Uma coisa assim: “Já que o Irã está precisando desses elementos combustíveis e que é um direito dele tentar achar no mercado, vamos fazer um acordo: ao invés de você me pagar com dinheiro ou com petróleo, você me paga com o urânio enriquecido. Seria uma maneira de retirar do país uma parte do urânio enriquecido e, no raciocínio ocidental, que o Irã nunca aceitou, diminuir a chance de o país ter uma bomba em um prazo X ou Y. Então, essa é a essência da coisa. Quando as pessoas afirmam que há muitos problemas no Irã, é verdade, mas, por exemplo, quando foi anunciado que havia uma outra usina nuclear não declarada, isso foi divulgado em setembro, e esse acordo foi formalmente proposto em outubro. Quer dizer, o fato de haver outros problemas não estava impedindo nenhum país, nem os EUA, a continuar buscando uma solução para essa questão e de fazer desse acordo um mecanismo de confiança, que aos poucos permitisse discutir outros temas, que são muitos.

Brasileiros – Aliás, o que está na carta que o Irã mandou é que esse acordo é um mecanismo de criação de confiança.
C.A. –
Explico, esse acordo estava pendente, não avançava, e sempre ouvimos de todos que o acordo era interessante. Então, na realidade, e isso foi reafirmado na carta do presidente Obama ao presidente Lula, esse acordo criava uma oportunidade. Bem, o que empacava eram as dificuldades levantadas pelo Irã que dizia: “Eu não concordo com 1.200 kg, porque o comprador é quem tem de decidir a quantidade, enfim, é quem define as suas necessidades”. Depois, insistia que a troca tem de ser feita no Irã e também dizia: “Nós podemos deixar depositado no Irã, só podemos liberar o nosso urânio de baixo enriquecimento, a 3,5%, quando tivermos recebido os elementos combustíveis”. Essas eram as três dificuldades básicas. E essas três dificuldades foram removidas clara e insofismavelmente. Havia outro ponto, por exemplo, muitas vezes mencionado pela própria Hillary e na carta do presidente Obama: “O Irã diz uma coisa para o Brasil, outra para a Turquia, outra para a China, outra para não sei quem”. Esses e outros problemas, como a remessa do urânio para fora do país ser feita em etapas ou de uma vez, tudo foi resolvido. O certo é que o acordo foi proposto em outubro, não andou, mas nunca foi renegado. É verdade que, de lá para cá, o Irã produziu mais urânio a 3,5% e também começou a produzir uma quantidade ínfima de urânio enriquecido a 20%, depois das desavenças com a Agência Atômica, etc. Agora, nunca nos foi dito, pelo menos de maneira formal, que o acordo não estava mais sobre a mesa. Pelo contrário, várias vezes foi dito que ele continuava viável. Procure as declarações desse Crowley (Philip Crowley, porta-voz do Departamento de Estado americano) que disse que o “agreement is on the table“, “the proposal is on the table“. E o mais importante, o próprio presidente Obama escreve ao presidente Lula dizendo que o acordo continua a ser uma opção. Mas seguem os questionamentos do tipo: “Mas o Irã não aceita 1.200 kg, quer manter o urânio lá, só quer entregar depois de receber o combustível”. Nós fomos lá e negociamos esses pontos, acabou. Os outros, que eu não nego que existam, mas que não eram pré-condições para esse acordo, agora, aparentemente, passaram a virar pré-condições.

Brasileiros – Fica uma sensação de que foram todos apanhados de surpresa. Algo assim: “Como é que deu certo? Como aceitaram as exigências? E agora?”.
C.A. –
Eu acho que eles não acreditavam que fosse dar certo, então diziam que seria a última chance, se não voltariam imediatamente ao curso das sanções. O que aconteceu? Deu certo, mas é difícil admitir até porque outras preocupações que existem, agora passam a ser pré-condições, coisas que não eram. E os EUA resolvem reinvocar coisas que não eram condicionantes, com medo talvez até de perder a aliança que tinham formado. Devem ter negociado, a duras penas, com China e Rússia para que aceitassem sanções. Todos os dias leio sobre a exclusão de uma empresa do país A ou B das listas das sanções unilaterais. Então, eu não sei que negociações eles fizeram para ter essa aceitação, eles podem temer que essa negociação desmorone, então por isso o desejo de fazer rapidamente, enquanto o resultado das negociações deles com esses outros países ainda estavam quentes, digamos.

Brasileiros – No New York Times há um artigo assinado por Roger Cohen, cujo título é America Moves the Goalposts, que compara essa mudança de posição dos EUA em relação ao acordo, a algo como mudar as traves de lugar em pleno jogo.
C.A. –
Isso confirma o nosso ponto de vista, mudaram as traves de lugar. É o mesmo que chutar a bola e ajeitar as traves para a trajetória da bola.

Brasileiros – Como são os europeus em relação a isso?
C.A. –
Esse não é um assunto fácil, eu acho que essas discussões com o Irã vêm de muito tempo. Eu tenho conversado com franceses, mais com Jean-David Levitte (conselheiro do presidente francês Sarkosy e ex-embaixador da França na ONU), porque ele trata mais diretamente desses temas. Tenho conversado com os russos, hoje mesmo falei com o ministro Lavrov (Sergei Lavrov, ministro das Relações Exteriores da Rússia). Eu acho que eles têm a visão um pouco mais matizada do que a norte-americana, tal como está sendo exposta agora, que está mais dura. Primeiro, eles têm suas desconfianças com o Irã, provavelmente com base na história, assim como o Irã tem desconfiança deles também. Eu não sei também sobre as diferenças internas dentro do governo americano, isso não é da minha competência, deixo para os analistas. Faço a minha análise, naturalmente, mas não me cabe expressar.

Brasileiros – Na entrevista de dois anos atrás, o senhor falava em “uma opção e uma visão multipolar do mundo”. Essa visão está cada vez mais clara e evidente?
C.A. –
Isso é multipolaridade em ação e mostra que há resistências a ela. Porque multipolar em clima, tudo bem, até porque clima e polo combinam (risos). Multipolar em comércio, não gostamos muito, mas já que não tem jeito, tudo bem, não há como ignorar o Brasil, a Índia. Mas multipolar em paz e em segurança, isso não dá para admitir.

Brasileiros – Não é difícil defender o Irã?
C.A. –
Mas nós não estamos defendendo o Irã. Claro que o povo iraniano, se você quiser, pode estar sendo defendido para evitar o desastre que houve no Iraque, isso é outra coisa. Mas o nosso objetivo é defender a paz, porque isso é bom para todos. E defender o entendimento, garantir que o Irã não tenha armas nucleares; que a comunidade internacional fique satisfeita com isso, mas que ao mesmo tempo o Irã tenha direito a enriquecimento, como outros países têm. Mas nós não estamos defendendo o Irã, nem temos dito que o Irã tem razão, ao longo de toda disputa. Mas também nós não demonizamos o Irã. Não achamos que só porque uma afirmação vem do Irã, ela já vem contaminada e não vale. Nós vamos examinar os fatos. Por isso, eu disse desde o início, não se trata de confiar ou não no Irã, trata-se de fazer um acordo de tal ordem, que ele objetivamente dê as garantias, talvez não 100%, porque não há como ter 100% de garantia de nada, mas uma garantia razoável de que o programa nuclear iraniano, especificamente o enriquecimento dele, não esteja sendo feito para fins militares.

Brasileiros – Nesse atual maniqueísmo predador pré-eleitoral, no qual as diferenças se acirram, boa parte da imprensa torce contra desde o começo. Questionou-se o fato de nos preocuparmos com o Irã e desprezar, por exemplo, o contencioso das fábricas de papel entre Argentina e Uruguai.
C.A. –
Primeiro, não era um problema nem de longe tão grave quanto esse, e depois em qualquer tema dessa natureza você precisa que as duas partes estejam interessadas que você faça alguma coisa, ou pelo menos revele algum interesse.

Brasileiros – Não era o caso de Uruguai e Argentina?
C.A. –
Naquele momento, o problema das fábricas de papel no Uruguai foi colocado, mas depois, com tempo, está se resolvendo, e graças a Deus está indo bem. Eu não quero aqui ficar fazendo nenhuma revelação histórica, porque são coisas que não interessam, coisas do passado, eu fico feliz que esteja indo bem, mas em certo momento houve uma certa dificuldade de que houvesse essa mediação. Várias vezes indicamos que houvesse desejo…

Brasileiros – Houve sinalização nossa?
C.A. –
Houve sinalizações, mas nós também percebemos limitações e percebemos que íamos criar irritações para relacões bilaterais sem ganho, e que também não era um problema que ia ser tão grave, como na realidade está se resolvendo. Agora, é curioso porque essas pessoas que hoje fazem essas críticas, no início do governo, quando era natural que déssemos prioridade à América do Sul, nos criticavam e diziam por que estávamos perdendo tanto tempo por aqui, quando deveríamos estar brigando pela ALCA. Ou seja, isso também é mudar as traves de lugar. Nós somos membros do Conselho de Segurança, fomos eleitos, não é só o governo Lula que procurou ser eleito, eu fui embaixador no governo do Fernando Henrique Cardoso, o Brasil é o país que mais vezes foi membro do Conselho de Segurança, juntamente com o Japão, fora os membros permanentes. Quando você é eleito para fazer parte do Conselho de Segurança, se supõe que você trate não só de seus interesses regionais, mas dos interesses globais. Eu, aliás, digo com muito orgulho que, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, tive oportunidade, como embaixador, de um certo papel na questão do Iraque, que depois não foi adiante. Lembro de que, na época, foi a primeira vez que se fez na ONU, dentro do Conselho de Segurança, um país presidir três comissões, que foram criadas como resultado de uma ação.

Brasileiros – Isso foi quando?
C.A. –
Isso foi em 1998, 1999. Até andou um pouquinho, depois as coisas se desenvolveram mais. O tipo de argumentação que é usado para provar uma coisa ou outra hoje, a gente lembra do Iraque. Cito a ingenuidade. As pessoas criticam, primeiro era ingênuo achar que o Irã iria aceitar, depois ingênuo achar que vai cumprir, agora mandou a carta. Agora, não era ingênuo o secretário de Estado americano da época, um homem que eu gosto, até aprecio, porque acho que é um homem de bem, o Colin Powell, fazer uma apresentação para aprovar no Conselho de Segurança que o Iraque tinha armas, que nunca foram achadas.

Brasileiros – Desculpe a insistência mas como se pode defender o Irã com tudo que lá acontece em termos de Direitos Humanos?
C.A. –
Não estamos defendendo o Irã, mas o que podemos fazer para ajudar a resolver questões humanitárias, nós fazemos, algumas vezes as coisas funcionam, outras não funcionam. Eu não vou creditar a mim e nem ao Brasil a liberação desse cineasta, porque obviamente depois que Juliette Binoche falou no festival de Cannes, é muito mais provável, que apesar de tudo tenham se sensibilizado com o impacto que isso teve, mas nós estamos falando há algum tempo (referência a entrevista coletiva no festival de cinema de Cannes, em 18 de maio de 2010, onde a atriz francesa se emocionou com relatos sobre a manutenção da prisão do cineasta iraniano Jafar Panahi). Até dei uma rata uma vez, porque li na imprensa internacional que um cineasta tinha sido liberado, achei que era ele, e não era. Isso de certa maneira demonstra que há muito tempo nós estamos empenhados nisso. Primeiro, nós não temos ainda um grau de proximidade que nos permita alguma influência direta no Irã. Mas não posso desconhecer que é um grande país. Não vou citar outros países, porque se eu citar nomes, crio problema para minhas relações diplomáticas. Mas basta você olhar o número de países com os quais os EUA – supondo que sejam padrão do país que escolhe bem seus amigos -, por exemplo, têm relações próximas, íntimas, alianças militares, coisas que nós não temos com o Irã, e países onde são praticadas muitas dessas coisas que você está mencionando e outras mais. Mesmo assim, devo dizer o seguinte, o Presidente Lula, conhecendo ainda relativamente pouco o Presidente Ahmadinejad, teve a abertura, ou a franqueza, digamos o desassombro até, de dizer para ele, “esse seu discurso sobre o holocausto não dá”, quer dizer, a gente não deixa de dizer as coisas quando pode dizer e nas horas que pode dizer. Eu acho que sobre Direitos Humanos, claro, há momentos em que você tem de tomar posições, e não há como deixar de fazer isso, mas eu acho que não é só uma questão de tomar posições, você tem de ter efetividade, ter ações que se traduzam em uma melhora da situação dos Direitos Humanos no país em questão.

Brasileiros – Não tomar posições é mais efetivo?
C.A. –
Não tomar ostensivamente, pelo menos, nos permite falar discretamente, nos permite manter um diálogo com um país.

Brasileiros – Vamos fazer um balanço rápido. Falamos em derrotas e vitórias, obviamente mais vitórias que derrotas. Falamos de duas derrotas, foi o Lamy na OMC e o BID (na eleição para o cargo de diretor-geral da Organização Mundial do Comércio, o embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa foi derrotado pelo francês Pascal Lamy e para a presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento, João Sayad perdeu para o colombiano Alberto Moreno). Teve alguma outra derrota depois?
Celso –
Deve ter tido. Mas um time é campeão com vitórias.

Brasileiros – A conquista das Olimpíadas para o Rio, foi uma das vitórias desse time?
Celso –
Com essas coisas, eu sou muito cuidadoso, porque não quero assumir, dizer que foi por causa do Itamaraty, que a política externa, digamos, do presidente Lula, foi a responsável pela vitória. Mas, no caso das Olimpíadas, que ajudou, ajudou, não tenha a menor dúvida. Quando houve aquela mudança brutal do primeiro para o segundo turno, em que os votos todos vieram para nós, que foram quatro turnos, eu estava imaginando os africanos, os árabes, mesmo aqueles países que já tinham assumido talvez algum outro compromisso com outro país, migrando para o lado do Brasil. Então, acho que isso é uma coisa que tem a ver com a política externa, tem a ver com as embaixadas que abrimos na África, vocês não imaginam como esses países valorizam isso. Sobre as embaixadas, é muito curioso, porque a gente fica acompanhando a mídia, e o que ela diz. No começo, era muita crítica, Lula viajava muito para a África. Outro dia, li em um jornal: “O Brasil está perdendo lugar para a China na África”. Então, agora a África é importante? De novo as traves mudam de lugar.

Brasileiros – Essa simultaneidade das candidaturas brasileiras a organismos internacionais ajuda ou atrapalha? Essa estratégia é a certa?
C.A. –
Na verdade, você não pode competir por tudo, você tem de escolher. Eu acho que estamos indo muito bem. Ficamos com uma das vagas da Corte Internacional de Haia com o juiz Antonio Augusto Cançado Trindade, uma das disputas mais difíceis na esfera das Nações Unidas. Tivemos as inúmeras eleições e reeleições para o Conselho de Segurança, Conselho Econômico-social, Conselho de Direitos Humanos. Como isso não aparece muito, as pessoas não dão importância, mas o Brasil está presente em todos esses órgãos, podendo opinar sobre todos esses assuntos. Talvez fosse mais confortável não estar. Eu acho que um país não pode querer ao mesmo tempo usufruir dos benefícios de ser um parceiro global e não ter os encargos de um parceiro global, em todas as áreas.

Brasileiros – Na verdade, a presença brasileira ocorre em vários campos diferentes, como no caso do Haiti.
C.A. –
A ação no Haiti, onde o Brasil está presente há tempos, mostra bem isso. Quando criaram um comitê gestor para a ajuda internacional, chamaram países ricos e o Brasil. Vem o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) conversar e diz que o Brasil já está criando um novo modelo de cooperação, eles querem usar nosso exemplo para criar uma nova visão, de parceria, diferente da visão clássica de doadores e receptores. É uma coisa nova que estamos fazendo na África, estamos fazendo no Timor Leste, em São Tomé e Príncipe. No Haiti, infelizmente devido à tragédia do terremoto, em uma dimensão muito maior. São presenças importantes, que têm reflexos. Tudo isso é ligado, você não pode querer fazer uma coisa e não fazer outra, não existe esse fato assim, eu vou ser importante para a OMC, mas abro mão aqui de tratar dos temas da paz da segurança. Não pode porque depois as coisas se ligam.

Brasileiros – Em termos de ajuda, de parceira, me lembro de um acordo que foi assinado na Guiné Bissau, durante uma de suas viagens em 2005, onde o Brasil doava dinheiro para a construção de casas para os militares do país e suas famílias, que moravam, havia anos, em barracas.
C.A. –
Esse tipo de ação, claro, tem reflexos positivos. Fizemos uma reunião aqui onde vieram mais de 40 ministros da Agricultura, a maioria de países da África, para conhecer a Embrapa e suas técnicas inovadoras para a Agricultura. E muitos desses ministros se encontraram pela primeira vez aqui no Brasil com seus colegas. Imagine o impacto de nossa iniciativa. E eu acho que eles veem no Brasil um modelo, e também não é mérito. Nosso mérito é saber usar esse potencial que o Brasil tem, que já tinha, e que ficava meio enrustido, porque a gente só olhava para o umbigo, ou então lá para cima, para o Norte. Agora, olhamos um pouco para a frente.

Brasileiros – Quais são os próximos lances na agenda do ministério?
C.A. –
Nós vamos continuar fazendo coisas importantes para integração da América do Sul e da América Latina. Por exemplo, estamos fazendo uma aproximação com o México, que se dizia que trilhava um caminho a parte, que nunca houve. O presidente Lula foi lá mais de uma vez, a mais recente, com grande presença empresarial, já com o Calderón (Felipe Calderón, presidente do México), que deve vir ao Brasil. Tudo isso é importante para consolidar a integração da América Latina e Caribe como um todo. Na verdade, o núcleo principal é o Mercosul, depois é América do Sul, e aí América Latina e Caribe. O Brasil está se voltando para o Caribe. Vejam, outro dia saiu um artigo no New York Times muito preocupado com uma estrada que estamos fazendo entre o Brasil e a Guiana inglesa. “Como um país pequenininho vai se ligar com aquele enorme?”, não chegou a chamar de monstro, mas enorme, que é o Brasil, “e ainda por cima um país de moeda forte, que atrai as pessoas para a fronteira”. Para o Brasil, uma saída para o Caribe é uma coisa muito importante, temos mercados que se abrem, não só os próprios países caribenhos, facilita até o comércio com os EUA, através de Miami. Na África, vamos continuar atuando. O Presidente Lula vai fazer uma viagem importante um pouco antes da final da Copa do Mundo, começando pelo Norte e terminando na África do Sul. Houve, inclusive, um diálogo engraçado que eu vou contar pra vocês entre o presidente Lula e o presidente Calderón. Calderón perguntou: “Você vai a abertura da Copa do Mundo? E o presidente Lula respondeu: “Não, eu vou para a final”. O Calderón falou: ” Nossa, quanta confiança!”. Na realidade, era um duplo sentido porque como o Brasil é sede da Copa de 2014, nós temos de ir lá receber a incumbência. Mas, enfim, antes dessa viagem ele vai fazer uma viagem importante que vai incluir vários países, como Zâmbia, Tanzânia. Dizem aqui no Itamaraty que eu substitui o circuito Elizabeth Arden pelo circuito Autan (risos).

Brasileiros – Nós tínhamos uma relação muito boa com os EUA do Bush, ainda não temos essa relação com EUA do Obama. É muito cedo ainda?

C.A. –
Não. Eu acho que o presidente Obama se dedicou muito a temas internos. Ele começou muito bem, ele logo convidou o presidente Lula para ir lá, teve uma conversa muito franca, ouviu muito o presidente Lula sobre Venezuela, sobre Cuba, sobre a região como um todo. Logo em seguida, houve a reunião de Port of Spain (Trinidad e Tobago) da Cúpula das Américas onde o próprio Obama pediu uma reunião com a Unasul, que a imprensa antes dizia que seria uma agressão aos EUA, pelo fato dela ter forte protagonismo da Venezuelo e do Equador. E a reunião foi muito cordial, positiva, franca. Depois, veio a reunião da OEA onde se aprovou o fim do afastamento de Cuba, que também foi uma coisa muito bem negociada com todos. Passada essa fase inicial, acho que ele foi forçado a se voltar para problemas internos, com prioridades, como a questão da saúde, a questão econômica, a necessidade de apoios, que talvez tenham feito com que a parte internacional não tenha fluido do jeito que nós poderíamos desejar. Mas eu acho que isso é perfeitamente recuperável, porque o Brasil e EUA são dois grandes países. Mas nunca houve nenhuma rusga, isso é preciso dizer, pelo contrário, o diálogo é muito respeitoso.

Brasileiros – Voltando à questão do Irã, onde fica uma impressão de que o diálogo ficou prejudicado, como foram os bastidores?
C.A. –
Olha, é claro que a Hillary estava interessada no tema. Uns 15 dias antes do presidente ir, fui ao Irã e coincidiu com a resposta do presidente Lula à carta do presidente Obama. Eu estava em casa, tinha recebido um telefonema do chanceler chinês, e me avisaram: “A Hillary Clinton queria falar comigo aquela hora ou qualquer outra hora que eu dissesse e o tema era o Irã. Na verdade, quando o acordo foi assinado, a primeira pessoa para quem o presidente Lula ligou foi para o Sarkozy. Mas, como era pelo celular, não dava para usar o intérprete, fui eu que conversei com ele. Em seguida, como ministro, liguei para a Hillary e contei sobre o acordo. Por essas conversas e outras que se seguiram, especialmente com o Sarkozy, percebi que eles não acreditavam que seria possível o acordo, e ficaram surpresos.

Brasileiros – Eles foram tomados pela reversão de expectativas?
C.A. –
Eu acho que todos foram, ninguém acreditava. Na ida à Rússia, antes da viagem ao Irã, o presidente Medvedev, quando a imprensa perguntou sobre expectativa de um acordo, ele disse: “Eu vou ser otimista, 30%”. O Lula falou: “Eu sou otimista, 99,9%”. Até eu tremi na base quando ele falou em 99,9%. Mas enfim, foi uma negociação interessante.

Brasileiros – Ahmadinejad está muito isolado, de repente vai o Lula com todo o seu prestígio internacional, não tem como não aceitar isso.
C.A. –
Claro, é a última chance, se não tiver um acordo por meio da Turquia e do Brasil, não terá de nenhum mais. Ele tem outros países que o apoiam, não preciso mencionar nomes, mas não são países que têm a nossa capacidade de mediação. Daqui para a frente, é preciso boa vontade, ainda há algumas dificuldades para vencer.

Brasileiros – Todos esses fatos, que especialmente o EUA e os parceiros próximos não acreditavam que iriam acontecer, não criaram uma ciumeira geral?
C.A. –
Isso não sei.

Brasileiros – Houve quem anunciou o acordo como “A Turquia anunciou primeiro que o Brasil”. A Turquia capitalizou e nós, não.
C.A. –
No dia em que o acordo poderia ser assinado, o concorrente local desse jornal antecipou, em manchete, que o acordo seria assinado. Eu tinha, no íntimo, certeza de que tínhamos avançado até o acordo, mas não podia anunciar isso. O que aconteceu foi que conversei com um repórter da Folha de S.Paulo e ele interpretou como fato consumado e o jornal abriu manchete. Na verdade, no dia 16 não fizemos anúncio oficial porque não era o caso, o que se mostrou uma decisão acertada, pois no dia seguinte ainda tivemos de discutir. A discussão toda foi no dia 16, mas eu sou muito prudente nessas coisas, não anunciei, mas falei com alguém da Folha, Marcelo Nino, que interpretou como se fosse e botou como manchete no dia seguinte. Não fizemos anúncio oficial porque não cabia, e, aliás, corretamente, porque no dia seguinte já levantaram aqueles outros três pontos, que a gente ainda teve de discutir. A reunião dos presidentes levou ainda 1 hora e meia mais ou menos, porque o Irã também tem suas preocupações, o público interno deles. Para eles, se trata de abdicar de um capital que adquiriram soberanamente em troca de nada, porque não tem nenhuma promessa do lado do ocidente.

Brasileiros – E não pode parecer que eles estão se dobrando ao ocidente.
C.A. –
Lógico. Agora, ou a gente quer fazer isso, enfrentando as dificuldades, sem ingenuidade, mas também sem demonizações, porque a demonização também é uma forma de ingenuidade, porque é um maniqueísmo. Ou a gente tenta fazer dessa maneira, ou tem um outro caminho, que já é o conhecido, que ocorreu no Iraque.

Brasileiros – Voltando para as Américas, qual é o balanço de Honduras?
C.A. –
O nosso objetivo nunca foi defender especificamente A, B ou C. Carlos Zelaya era o Presidente constituído, nós somos contra golpes do Estado, nós e todos os países. Não entendo como as pessoas aqui construíram essa história de que o Brasil estava isolado, porque a condenação ao golpe foi unânime, até os EUA condenaram. Eu diria que um número razoável de países, quase toda a América do Sul continua mantendo uma posição de certa distância. Até compreendo que países como El Salvador, Guatemala, muito próximos, não possam deixar de ter relações. Nós mantivemos lá o nosso encarregado de negócios, enfim, vamos esperar um pouquinho. Acredito nas intenções do Pepe Lobo (Porfírio Lobo Sosa, atual presidente de Honduras), para falar a verdade, pelo que ele fez, pela maneira como ele foi buscar o Zelaya na embaixada do Brasil. Todo mundo dizia que aquilo era um absurdo, mas foi na embaixada do Brasil que se deram as negociações mais importantes.

Brasileiros – Isso aí a imprensa minimizou.
C.A. –
É uma coisa inacreditável, o enviado americano, atual embaixador aqui no Brasil, foi ver o Zelaya na nossa embaixada. Nada teria acontecido, todo esse processo de negociação, caso não tivéssemos feito a coisa certa, que era dar abrigo ao presidente constituído, legalmente eleito. Podemos não ter ficado satisfeitos com o resultado final, mas fizemos o correto.

Brasileiros – Apoiou-se um presidente que tinha sido deposto à moda antiga.
C.A. –
Isso mesmo. Para completar o raciocínio, acho que o Pepe Lobo me parece bem-intencionado, o que ele demonstrou com algumas atitudes, mas o melhor caminho para você realmente ter uma reconciliação nacional, que é deixar o Zelaya voltar como cidadão comum, aparentemente não se consegue, por enquanto.


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