A aba do chapéu encobre a sobrancelha larga e grossa. Os olhos se mexem em um olhar ao mesmo tempo desconfiado e compassado. Na mão direita, e só nela, dedos de unhas longas seguram a palha e o fumo que queima, formando uma espessa nuvem de fumaça. Ele fez pacto com o cão. É o que todos dizem.

Debaixo do braço a viola, eterna companheira, “com quem me casei”, diz seguro, firme, apaixonado. A cada dois dias troca as cordas, que alisa com a flanela a cada música. Acaricia a boca da danada como quem toca as partes íntimas de uma mulher. E ela geme em suas mãos, agradecida por tanto carinho.
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Vinícius Alves, natural de São João da Boa Vista, interior de São Paulo, é esse personagem misterioso. Ex-roqueiro da banda Luzes do Blecaute, tornou-se violeiro pelas mãos de Ivan Vilela, professor de viola caipira – o único – de uma universidade no Brasil (ECA/USP). De “guitarrista medíocre”, como se auto-avalia, transformou-se em um dos maiores virtuoses da viola caipira. Ele fez pacto com o capeta. É o que todos dizem.

Só pode ser. De outro modo, como explicar a viola que tocava em ritmo alucinado enquanto a outra mão fazia a percussão no tampo? Isso tudo no Prêmio Syngenta de Música Instrumental de Viola. Os que viam não conseguiram associar olhos e ouvidos. Lá nos fundos de Piracicaba, antes da piapara grelhada na Rua do Porto, a viola era tocada com uma mão só, freneticamente. Ele fez um pacto para cada dedo, todos dizem.

“Tem gente que nasce com o dom de Deus, não precisa fazer pacto. Se fizer, perde”, avisa. São cinco pares de cordas que ressoam em mais de 20 afinações diferentes. Afinações que tocam as almas e os espíritos, aquilo que temos de mais profundo. E há dois nomes sugestivos: rio abaixo e cebolão. O cebolão é coisa do interior de São Paulo. O violeiro toca e todo mundo chora compulsivamente com aquele som que verte como lágrimas O rio abaixo, explica, “é tocado pelo capeta. Ele desce o rio e quer ver as moças entregando sua alma para ele. Toca bonito… macio. Não há mulher que não se jogue na água atrás daquela coisa gostosa, daquele prazer, daquela vontade de ser acariciada nos ouvidos pela música bonita. Entregam-se como os marinheiros do passado se rendiam às sereias”.

Cabe a pergunta se em tempos tão modernos, tecnológicos, essa misticidade ainda existe. E Vinícius não vacila: “Mais do que nunca. A cada dia o mundo é menos racional”. Tá, homem! E é mais fácil fazer música hoje, com toda essa tecnologia? “Pra viola, em termos. Temos tecnologia para reproduzir o que é audível para os ouvidos. Falta aquilo que reproduza o que é ouvido pela alma”, sentencia. Todos dizem, ele tem pacto com os poetas. Um gole de cachaça. Presenteia com um fumo de corda das Minas Gerais. Se fez pacto, não diz. E vai embora, com andar lento, macio. Um andar reverente de cemitério.


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