O folião de Nova York

Joe Oros, designer iconista da Ford americana nos anos 1960, e Lee Iacocca, o mágico do marketing, idealizaram o Mustang. Trata-se de um carro seminal em vários níveis. Sozinho, diga-se, criou a classe Pony Cars, designação correspondente aos cupês esportivos, com longos capôs e traseiras curtas. Seu lançamento, em 1964, sacudiu as raízes do mundo automobilístico, além de todas as ramificações derivadas desse chavão. O que se quer dizer é que o Mustang, seguindo a Teoria do Caos, provocou reações e consequências inesperadas ao ponto da absurdidade. Pegue-se um exemplo disparatado: o veículo serviu de condução para um rapazinho duro, do bairro paulistano do Brás, para um império empresarial com faturamento estimado em US$ 70 milhões anuais. E ainda, seu nome, João de Matos, foi alçado à categoria de sinônimo da brasilidade em Nova York e outras freguesias americanas.

A prova mais concreta dessa condição vem sendo dada há 25 anos com o chamado Brazil Day Festival. Uma festa de rua com show musical, comércio de toneladas de acarajés e que reúne anualmente, aproximadamente, 1,5 milhão de pessoas. Espremem-se nos quatro quarteirões da 46th Street, que compreendem a chamada Little Brazil. O rebatizado da via foi, por sinal, conquistado graças aos esforços de João de Matos. As estimativas de público são do Departamento de Polícia de Nova York. Trata-se de uma multidão mais de três vezes superior àquela aglomerada no famoso Woodstock. E não tem nada de Joe Cocker, Jimi Hendrix ou The Who. Os artistas são todos brasucas. A festa deste ano, realizada em 6 de setembro, contou com as participações de músicos como Carlinhos Brown, Elba Ramalho, Victor e Leo, Alcione, Arlindo Cruz e Marcelo D2.

É possível que Matos, hoje com 62 anos, seja o Mustang da comunidade brasileira nos EUA. Ambos experimentam sucesso renitente, ainda que com altos e baixos. Matos chegou à terra um ano depois do carro, em 1965. É verdade que sem o glamour do lançamento bombástico do veículo da Ford. Mais precisamente, o imigrante caiu no asfalto de Miami com uma mão na frente e outra atrás. No bolso, porém, carregava um tesouro incalculado hoje em dia: uma carta de “chamado de responsabilidade”. O que implicava uma documentação garantindo a permanência legal daquele mocinho de 18 anos em território americano, pelo tempo que desejasse. “Um amigo, que morava legalmente aqui, enviou um comprovante de imposto de renda para o corpo consular americano em São Paulo, e se responsabilizava por meu sustento nos EUA”, diz Matos.
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Esperava-se, então, curta temporada nessa aventura. O que ele queria mesmo era comprar um Mustang. “Na época, as leis do Brasil permitiam que se importasse, com baixos impostos, um veículo comprado no exterior há seis meses ou mais”. Só que, enquanto ele deslizava o possante, modelo 1965, pelo cenário art déco de South Beach, as regras – como sempre – mudaram abaixo do Equador. Seriam necessários cinco anos de posse para que o “Pony” fosse rodar pela rua Bresser, no Brás. Máquina e piloto, portanto, ficaram parados no box de Miami.

O jeito foi arregaçar as mangas – bem arregaçadas – e lavar pratos. Lembre-se de que este é o homem hoje dono das churrascarias Plataforma (na rua 59) – considerada uma das dez melhores de Nova York, terra do legendário bife do Peter Lugar – e da Riodízio (em Tribeca). Vale dizer, que a esponja e o detergente não eram condizentes com o american way of life pretendido pelo jovem. As estradas da América têm perpétua abertura aos aventureiros. Imploravam, então, pelas borrachas dos pneus de um Mustang. E o destino de sonhos, claro, era Hollywood. João encheu o carro de amigos e foi para a Califórnia.

Justifica-se: estrelas e celebridades sempre foram parte fundamental da vida de João. A atração é inegável há anos. Quem vai a seu escritório no número 14 da rua 46, em Manhattan, verá uma galeria com proporções de museu da imagem, repleta de fotos do dono da casa com figurões da política, esporte, moda, teatro e música. O homem parece estar constantemente roçando cotovelos com gente famosa. Os encontros simplesmente acontecem. Por exemplo, em Sunset Strip, Los Angeles, ele ajudou a tirar da sarjeta um Jim Morrison caído de bêbado – como, aliás, era normal para o crooner da banda The Doors. Também deu a sorte de ver o último concerto dos Beatles, em 1966, na Costa Oeste.

Mas, como sempre, era preciso capital para manter o tanque do Mustang razoavelmente cheio. Só que desta vez não houve o incômodo dos saponá-ceos nas mãos úmidas. “Nós chegamos na cidade e ficamos numa casa, cuja rua havia uma fábrica de isopor. Fui bater na porta e ganhei um emprego.” Deu sorte no setor dos poliestirenos, e virou gerente de produção, comandando 120 operários. Pressupõe-se que eram ilegais e, portanto, fora das cogitações para postos de chefia. Empolgado com seu novo status, foi buscar diploma de técnico em plásticos no Plastic Institute of Los Angeles.

Porém, a brincadeira com matéria plástica duraria apenas até 1970. Dona Crecência de Matos, saudosa, foi visitar o filho e decretou o fim do exílio voluntário. E sabe como é mãe italiana, principalmente se for nascida na Sicília – opiniões adquirem caráter de ordens peremptórias. João foi obrigado a trocar Beverly Hills pelo Brás.

Voltou a ser o zagueiro central habilidoso (na própria opinião imodesta) do aguerrido time do Flamengo do Brás. Chegou sem o Mustang – vendido há tempos em terras ianques -, mas continuava entusiasmado com as corridas. Principalmente de Emerson Fittipaldi, cuja carreira ele acompanhara desde os tempos que se aboletava no velho curvão de Interlagos para torcer pelo ídolo em formação. Hoje, é claro, os dois são amigos íntimos. O relacionamento de João com pilotos – de Mario Andretti a Raul Boesel – é o subproduto mais claro de sua paixão pelo automobilismo. Um amor que o levaria aos circuitos mais distantes das competições de Fórmula 1 e Indy. Trata-se de uma característica genética, pois seu irmão Francisco – o Chico Matos, que também tem trajetória particular de sucesso nos States – foi piloto de prova da Volkswagen no Brasil, e chegou a ocupar posição entre os boxes de equipes da Fórmula Indy.

O Brasil de 1970, porém, não era exatamente o lugar em que um zagueiro central, fã de corridas e técnico em plásticos, fosse amealhar fortunas. A estada paulistana foi curta, deu tempo apenas para que João visse a Seleção levantar o caneco do Tri. O ufanismo resultante dessa conquista não serviu de âncora para Matos. Principalmente quando um mercador de pedras preciosas o convidou para acompanhá-lo em um périplo americano para venda do tesouro. Como o homem não falava inglês, João serviria de intérprete. Rodaram todos os cantões dos Estados Unidos continental. Não conseguiram desencalhar uma única esmeralda, água marinha ou topázio. As andanças terminaram em Nova York, na 47th Street – a rua dos diamantes. Ali, o mais bobo, conserta relógio no escuro, vestindo luvas de boxe.

João havia namorado uma moça, cujo irmão era dono de uma loja local. Foi bater à sua porta. O amigo mercador foi convencido a deixar sua carga em consignação. A partir daí, os mascates pegaram o avião e voltaram para o Brasil. Nunca mais veriam o brilho das pedras ou o dinheiro de vendas.

O tempo foi passando em São Paulo e a falta de notícias da rua 47 gritava por uma ação. O mercador pagou passagem, deu um dinheirinho para João e o despachou para Nova York. O dono da loja começou um longo período de embromação. Ao cabo de um mês, o cobrador avisou que estava sem dinheiro e queria as pedras presto! “Ele me disse que tinha um apartamento no Queens, onde morava uma irmã e que era para eu mudar para lá. Assim não precisaria pagar hotel. Também ficou combinado que eu receberia US$ 100 por semana para as despesas.” Começaria deste modo uma carreira atrás do volante para Matos. Não em um bólido de corridas, mas em táxis e caminhões. Ele nunca mais voltaria por muito tempo ao Brasil.

“Eu estava no lugar certo na hora certa”, diz o ex-chofer de praça. “Conheci o Silvio Santos. Passei a fazer compras de equipamentos eletrônicos para ele e enviar para o Brasil. Com o tempo, apareceu a oportunidade, em 1973, de me tornar sócio da BACC (Brazilian American Cultural Center). O Silvio me deu US$ 5 mil para isso, e nunca mais quis saber de reembolso.” O mineiro Benito Romero havia fundado a empresa como uma promotora de eventos culturais envolvendo o Brasil. Mas não demorou muito para que Matos visse o potencial da casa como agência de viagens especializada em destinos brasileiros. A Varig começou a dar descontos especiais para a firma, que repassava os abatimentos para a freguesia. A sociedade com Romero se defez e hoje a BACC é a maior vendedora de passagens para o Brasil no mundo. Seus escritórios estão espalhados pelos Estados Unidos e Europa.

Para melhor promover a empresa, João comprou o jornal The Brasilians – com “s” para reforçar as raízes. Há 26 anos, a publicação mensal – de 34 anos – está sob seu comando e do editor Edilberto Mendes. Passou de veículo, basicamente de marketing, para um dos informativos mais importantes na colônia. Com tiragem de 100 mil exemplares, e assinaturas a US$ 10, o periódico tem editorial no qual não cabem as más notícias do Brasil. Para o publisher, o país é maravilhoso e não precisa de críticas.

A BACC, portanto, não abandonou de vez sua vocação original de promoções culturais. É a empresa que custeia a festa dos brasileiros em setembro, sem exigir o benefício de lucro – ainda que tenha feito um acordo recente com a Rede Globo para copatrocínio. A emissora transmite a folia patriótica para 150 países, e empresta artistas para esquentar o programa. “A história desse evento começa com um show promovido por meu irmão Chico. Fizemos a primeira apresentação da Gal Costa em Nova York, e que seria também o retorno da MPB aos palcos da cidade, depois daquele concerto da Bossa Nova nos anos 1960. Em seguida, trouxemos a Maria Bethânia. Não lucramos um centavo com os shows e as pessoas ainda reclamaram do preço dos ingresso, US$ 35. Foi aí que disse: ‘Vamos fazer o show de graça, na rua’. Falei com o Lulu Santos, ele topou e foi o primeiro a tocar no Brazilian Day, que nasceu assim”, diz João.

É evidente que a ausência de lucros é relativa. A promoção impulsiona cada vez mais a imagem de João e suas empresas, dando ainda mais valia dos ganhos políticos. Não houve um único prefeito da cidade que não foi bater a cabeça no congá desse terreiro. A ponto de Rudy Giuliani ter rebatizado parte da rua 46 com o nome Little Brazil.

Durante sua escalada ao poder, João casou-se, divorciou-se e enviuvou. Antes disso, adotou a filha, Françoise, 33, de sua esposa, e teve Claudine, 30, que são – segundo ele – seus maiores feitos. A primeira trabalha na BACC e a segunda era sócia da modelo Naomi Campbell, em uma agência de Relações Públicas, até casar-se com Raphael De Niro, filho do ator Robert, e montar com ele uma corretora de imóveis de luxo.

De olho no apetite pantagruélico americano, Matos montou também o Empório Brasil, ainda na rua 46, que a princípio vendia produtos brasileiros à colônia, mas rapidamente passou a servir refeições com cardápio envolvendo feijoadas, muquecas e frango com quiabo. O sucesso da empreitada o incentivou a investir numa superchurrascaria. Para isso, percorreu o território americano em busca de um frigorífico que aceitasse cortar as carnes do modo brasileiro. Foi uma saga à procura da picanha inexistente. Encontrou o santo graal no sul dos EUA. Também importou os maquinários para fabricar uma perfeita linguiça à brasileira. Testou receitas durante seis meses, até aprovar uma ideal. Em 1996, abriu as portas da Plataforma, na rua 49, com sucesso tão rápido e absoluto, que ganhou imediatamente a aprovação do crítico do New York Times. Vende hoje 13 mil refeições mensais, acompanhadas de 10 mil caipirinhas. Almoços de preço fixo estão a US$ 35,95 e jantares valem US$ 56,95. Isso em meio à crise na qual os restaurantes estão dando bife quase de graça na região. Os preços podem ser salgados, mas o rodízio é perfeito. Tanto que de Gisele Bündchen, passando por Fernando Henrique Cardoso, até Bill Clinton e George Clooney, foram traçar maminhas e lombos dos espetos corridos. Os garçons ali – todos devidamente documentados – faturam semanalmente US$ 2.000 de gorjetas.

Com esse sucesso, não é de se estranhar que João investisse US$ 2 milhões em outra casa. A nova churrascaria está ancorada no setor endinheirado de Tribeca, ao sul de Manhattan, e recebeu o nome Riodízio. “O sistema ali é um pouco diferente. Eu não quis criar uma outra churrascaria Plataforma. Aprendi que franchisings criam espectativas de padrões que, às vezes, não podem se repetir em outros lugares. A Riodízio, portanto, é um mundo a parte”, diz João.

Como o Mustang, o homem envelheceu bem, mas sofisticou-se e continua a rodar poderoso pelos quadrantes de Nova York. Só que hoje em dia, Matos prefere os volantes alemães da Mercedes e da BMW. Afinal, há muito tempo ele deixou de pertencer à rapaziada do Brás.


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