O gênero no divã

A comédia autobiográfica Eu, Mamãe e os Meninos (2014), de Guillaume Gallienne – que além de escrever o roteiro, dirigiu e atuou –, foi um dos mais premiados filmes de 2014 nos festivais de cinema europeus. Havia, como aponta o título, uma estranha separação cotidiana entre os meninos de um lado e Guillaume do outro. Com base nisso, Guillaume cresceu convencido de que era menina. Adolescente, se apaixonou por um rapaz heterossexual, e a dor do amor não correspondido não demorou a chegar. Ao tentar consolá-lo, outra nomeação veio da mãe: ele era gay e podia ser feliz assim. Dócil, Guillaume fez então algumas tentativas nesse sentido. Mas, o erotismo não compareceu nessa chave e o que sempre lhe pareceu óbvio foi por água abaixo: a suposta preferência erótica por homens levou consigo a certeza de sua identidade feminina. Guillaume não sabia mais nem quem desejava nem quem era. Não se encaixava mais no que a mãe dizia dele. Sua ambiguidade sexual e de gênero eram antes de tudo fruto da submissão incondicional à mãe. Diante da força dessa mulher era, arriscado demais tomar qualquer partido em matéria sexual. A identificação feminina era, na verdade, outra forma de amar intensamente as mulheres e seu mundo. Guillaume hesita, sofre, luta, mas no final acaba juntando coragem para sair do armário e se assumir como heterossexual.

Analogamente ao que esse filme mostra, na clínica psicanalítica as questões de orientação sexual e de gênero também não se conjugam no imperativo. Elas se narram em sequências de equívocos, em guinadas imprevisíveis que viram a verdade de ponta-cabeça, ou, pelo menos, aquilo que cada um toma como tal. As normas sociais são levadas em conta, é claro, fazem parte da trama de conflitos, mas isso não significa que sejam tomadas como um ideal a ser atingido de modo absoluto. Pelo contrário, os ideais são sempre o que cai por terra numa análise. O que importa, como no caso de Guillaume, é o processo pelo qual cada sujeito descobre e reconhece o seu próprio desejo, independentemente de quem ele crê que seja. Essa espécie de “saída do armário ao contrário” de Guillaume é, contudo, uma cômica contrapartida da sofrida experiência da maioria dos que não reconhecem no gênero biológico ou na heterossexualidade compulsória o caminho de sua identidade e seus desejos. Além disso, uma série de outras questões colocam atualmente as opções homossexuais e transexuais em conflito frontal com normas sociais e jurídicas até há pouco aceitas sem muita problematização. Por exemplo, a partir de que idade uma criança trans deve ser reconhecida e ter direito de fazer um tratamento químico ou cirúrgico? Os casais gays e transexuais podem ter ou adotar filhos? Um homem trans pode gestar e amamentar um bebê? A todas essas perguntas, a sociedade sempre respondeu com um não, mas, pela primeira vez na história de nossa cultura, um espaço de discussão oficial foi aberto. É nesse contexto que a psicanálise, como teoria do sujeito e da cultura, e que os psicanalistas, como clínicos, são chamados a se posicionar. Como dito acima, trata-se para a psicanálise de ajudar o sujeito a reconhecer o que deseja, ainda que por vezes isso não coincida nem com o que ele espera de si nem com as chamadas normas sociais. Mas quais são os pressupostos teóricos dessa posição? Como foram construídos? Até que ponto tais teorias estão mesmo em uma posição diferente daquela das normas vigentes? Essas são as principais questões que atravessam a discussão sobre o gênero na psicanálise. Comecemos por Freud, naturalmente.

Freud explica?

A primeira coisa importante a notar é que há em Freud uma marcada diferença de desenvolvimento entre sua teoria da sexualidade e sua teoria de gênero. A sua teoria da sexualidade é, na verdade, uma teoria do erotismo, ou seja, visa entender três elementos deste último: primeiramente, a origem dos objetos eróticos (com quem me satisfaço); em segundo lugar, aquela dos alvos eróticos (como me satisfaço); e, finalmente, aquela dos lugares eróticos do corpo (onde me satisfaço). A radical inovação de sua teoria foi retirar esses três elementos da vida erótica de uma compreensão biológica, pré-determinada e inseri-las em uma lógica que alia as excitações corporais –  as pulsões em linguagem técnica – com as fantasias que, para Freud, são construídas na infância. Ademais, Freud insistia que toda sexualidade humana se desdobraria a partir do que ele chamou de bissexualidade primária: todos os bebês teriam inicialmente tendências pulsionais para ambos os sexos, sendo a construção da sexualidade adulta – seja ela hetero, seja homo – um apagamento parcial dessa espécie de primeira androginia estrutural.

Essa inserção da vida erótica no campo do corpo e das fantasias teve o mérito incontestável de despatologizar os então chamados “desvios sexuais” e dar-lhes um sentido histórico, a ser construído por cada sujeito. Motivo pelo qual Freud figura entre os pioneiros da despatologização da homossexualidade, dado que compreende que não há ligação necessária entre a pulsão, que se satisfaz das mais diversas maneiras, e seu objeto, que é sempre contingente. Até hoje, essa visão da vida erótica como sendo fundada sobre a contingência das experiências orienta a clínica psicanalítica, onde espera-se que cada um reconstrua a história de sua própria fantasia.

O TEMPO TROUXE OUTRAS IDEIAS SOBRE GÊNERO EM PSICANÁLISE. A CONTRIBUIÇÃO MAIS IMPORTANTE FOI O CONCEITO DE IDENTIDADE DE GÊNERO 

Contudo – e sempre há um contudo em matéria de sexualidade –, se, de um lado, Freud propôs bastante cedo, em 1905, uma teoria revolucionária sobre a sexualidade humana, completamente desvinculada da ideia de uma determinação biológica dos interesses sexuais, por outro lado, suas hipóteses sobre a constituição de gênero demoraram a surgir e permaneceram inconclusas. De fato, sua teoria sobre o que hoje chamamos identidade de gênero (Quem sou? Com que grupo me identifico – o dos homens ou o das mulheres?) precisou de um longo amadurecimento de outro aspecto de sua obra, a saber sua teoria sobre a identificação. Foi apenas em 1924 que Freud se deteve na questão da feminilidade, isto é, não somente o erotismo próprio da mulher, como também de sua identidade feminina. Essa teoria compreende supostos traços diferenciais das mulheres (recato, passividade, afetividade, vaidade) como efeito das experiências e fantasias da menina sobre seu próprio corpo a partir das diferenças anatômicas entre os sexos. Observa Freud que essa diferença é interpretada como falta consumada do pênis pela menina e como ameaça de castração pelo menino. Trata-se evidentemente de “interpretações”, ainda que comuns, e não de “percepções”, já que no corpo anatômico de uma mulher nada falta. Claro está que tais traços da alma feminina são construções sociais, e este é o ponto mais frágil e criticável de sua teoria. Assim, ele não tem sido poupado pelas feministas nesse ponto e, convenhamos, com razão. Pois, apesar de avanços inegáveis presentes em sua teoria, muitas de suas conclusões sobre a feminilidade são, sem dúvida, irrefletidamente retomadas dos valores patriarcais de sua época e cultura, como, por exemplo, aquela que diz que a satisfação do desejo da mulher se daria apenas pela experiência de ter um filho homem. Nesse sentido, Freud fez um movimento quase inverso ao que realizou em sua desconstrução da vida erótica. Pois, se nesse caso retirou as diferenças sexuais do campo patológico, no caso de sua teoria sobre a feminilidade, tal como apontaram Michel Foucault e Thomas Laqueur, ele construiu um discurso que legitimava cientificamente os ideais sociais da época para a mulher. Façamos, contudo, justiça à sua teoria: essa e outras formas datadas e preconceituosas de Freud pensar a mulher não significam que ele fosse misógino do ponto de vista político. Ele defendera, por exemplo, direitos da mulher, tais como liberdade sexual antes do casamento, a educação e o voto. Enfim, foi um homem à frente de seu tempo, mas inserido nas contradições de sua época.

Precisamente o tempo trouxe outras ideias sobre o gênero em psicanálise. A contribuição mais importante foi o conceito de identidade de gênero, que nasce de um psicanalista-psiquiatra norte-americano, Robert Stoller, que trabalhava com pacientes intersexo e transexuais.
Stoller criticava a ideia freudiana de que o gênero seria exclusivamente uma construção psicológica feita a partir da constatação da diferença anatômica: ele inclui aí a questão do ambiente e uma “força biológica”, ainda a se descobrir. Lembremos que esse distanciamento do pai da psicanálise se assentava também em uma espécie de reação à radicalidade das ideias do colega John Money, para quem o gênero seria, sobretudo, um papel, e que – tal como um idioma – poderíamos “aprendê-lo” em um contexto exclusivamente cultural.

De toda forma, a ideia de uma identidade de gênero se expande rapidamente e sai do domínio de uma psiquiatria que era, ainda que orientada pela psicanálise, bastante patologizante no que diz respeito à transexualidade. Foi Gayle Rubin, teórica feminista, quem se apropriou do conceito de gênero nos anos de 1980, subvertendo seu lugar de instrumento diagnosticador para aquele de uma noção teórica e política que poderia ajudar o feminismo. Para Rubin, apesar das críticas, a psicanálise seria um sistema conceitual interessante para se pensar como uma criança originalmente bissexual aos poucos se tornaria sexuada por uma série complexa de processos, donde sua conhecida afirmação: “A psicanálise é uma teoria feminista manquée”. Foi só depois dessa espécie de desvio pelo feminismo e pelas teorias queer que a psicanálise voltou a se interessar pelo gênero.

Lacan complica?

Como é sabido, foi a partir dos desdobramentos da teoria do psicanalista francês Jacques Lacan – ao romper mais claramente com alguns resquícios de um “biologismo” em Freud – que as questões do psiquismo passaram a ser discutidas em um plano puramente linguístico, já nos anos de 1950. Lacan pensará, portanto, a diferença entre homens e mulheres não no registro biológico ou social, mas a partir de diferentes lógicas de estar no mundo: homens seriam aquelas pessoas que enxergam a si mesmos e as outras ao seu redor a partir de uma lógica de totalidade, traduzida, por exemplo, na expressão “homem não chora, ou nas vulgatas de generalização – por vezes bastante machistas – “toda mulher…”. Ou seja, quem pensa o mundo a partir de categorias fixas pode ser chamado de homem, ao passo que mulheres seriam aquelas pessoas que não se limitam a esse tipo de binarismo tudo/nada, todos/nenhum e, por isso, questionariam essa lógica linear e totalizante.

Há para Lacan também a ideia segundo a qual homem e mulher (e potencialmente todo o espectro de gêneros apresentados pela contemporaneidade) são semblantes, ou seja, meias-verdades, um tanto encenadas. Nesse sentido, mesmo que não percebamos, ter um gênero é sempre ter um gênero para alguém ou, mais precisamente, exercermos um gênero sempre com uma pitada de ficção, uma vez que qualquer suposto núcleo da identidade é, para a psicanálise, desconhecido e até mesmo vazio. E aqui, apesar das diferenças, a psicanálise se aproxima de outra teórica queer, Judith Butler, para quem o gênero não se constitui como uma identidade, mas é sobretudo um ato performativo, no qual repetições amparadas por normas sociais dariam a aparência de fixidez dos gêneros.

Mas notemos que, em psicanálise, nenhum desses quadros explicativos é propriamente biológico, tampouco social ou político, por mais que esses elementos possam vir a ter papéis relevantes. Trata-se sobremaneira de teorias para pensar fenômenos clínicos e não descobrir qual seria a “verdade do sexo”, ideia que a psicanálise busca, justamente, criticar. De toda forma, é importante sublinhar que para a psicanálise lacaniana o gênero deve ser sobretudo pensado a partir do que chamamos de fantasia: uma maneira singular por meio da qual o sujeito reconhece a si mesmo a partir do lugar que lhe é dado no discurso do outro. Dito de outra forma, cada sujeito tem uma espécie de óculos particulares com os quais enxerga, sempre de uma forma um tanto distorcida, o mundo e a si próprio. A questão é que suas lentes são, na verdade, os outros que o cercam e seus discursos: compreendemos a realidade sempre por procuração, a partir de nosso contexto e do lugar que acreditamos ocupar na família, na comunidade, nos relacionamentos, etc. Tomemos um exemplo de como tal ideia se aplica ao gênero.

O sofrimento que uma pessoa trans enfrenta ao ser impedida, por exemplo, de usar um nome próprio que corresponda ao seu gênero é não apenas social, mas psíquico, pois, na medida em que a comunidade não reconhece seu desejo, torna-se muito difícil viver a individualidade a partir de sua fantasia que, apesar de ser sempre singular, inclui e necessita do outro para se estruturar. Notemos que o mesmo mecanismo está em jogo para pessoas não trans, com a diferença de que é muito mais raro socialmente que seu gênero venha a ser desmentido com essa força ou intensidade. Em outras palavras, o gênero não é uma essência, nem biológica, nem social e nem mesmo psicológica: ele está sempre entre o que eu penso que sou e o lugar em que o outro diz que eu estou.

Assim sendo, a psicanálise teria pouco a dizer sobre o gênero enquanto categoria política, social ou biomédica, já que suas teorias do gênero se referem ao desejo que, para nós, é majoritariamente desconhecido. Por mais que um homem misógino seja um produto do patriarcado e perpetue violências e estereótipos, caso ele busque uma psicanálise será preciso compreender igualmente as fantasias que, singularmente, sustentam essa posição. Uma tese mais vulgarmente conhecida é aquela de que a homofobia seria um desejo homossexual recalcado. Sim, observa-se isso na clínica, mas não enquanto uma regra.

A TESE CONHECIDA DE QUE A HOMOFOBIA SERIA UM DESEJO HOMOSSEXUAL RECALCADO É OBSERVADA NA CLÍNICA, MAS NÃO ENQUANTO UMA REGRA 

Na clínica, escutam-se individualidades e não categorias gerais das quais os sujeitos seriam casos específicos. Isso vale tanto para Toc, borderline, TDAH, e outros enquadres psicopatológicos da moda, quanto para “homens”, “mulheres”, “cis”1 e “trans”: uma análise parte do individual para o geral, nunca o contrário. É por isso que o gênero é e ao mesmo tempo não é uma questão para a psicanálise: o é na medida em que ninguém narra a sua história excluindo a dimensão do gênero, pois vivemos em um mundo no qual o gênero é (ainda?) um marcador relevante de diferenças. No entanto, a psicanálise vê com desconfiança essas certezas que os sujeitos têm sobre si. Por mais que a identidade possa ter uma importância política do ponto de vista estratégico, por exemplo, na reivindicação de direitos ou na denúncia de formas de opressão, o caminho de uma análise passa por se desprender da paixão que se tem por uma identidade, seja ela qual for. Do mesmo modo, se o gênero for pensado como uma identidade ideal conhecida, ele será questionado no divã – para pessoas cis, trans e todo o amplo espectro de sexualidades e gêneros. Talvez uma relação menos alienada e preocupada com o nosso próprio gênero (e com o gênero do outro, como defendem alguns ferrenhos críticos da dita “ideologia de gênero”) passe por ignorá-lo um pouco enquanto ideal para poder vivê-lo como mais um misterioso traço, que pode estar sujeito tanto a uma estabilidade curiosa quanto a reviravoltas inesperadas: se há uma verdade do gênero, nossa aposta é que ela é, sobretudo, inconsciente.

1Cisgênero ou simplesmente cis é o termo utilizado para designar pessoas que se identificam com seu gênero biológico, ou seja, o oposto de trans.

 


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