O homem é o lobo do homem

Ainda nos desdobramentos imediatos da tragédia de Realengo, nos encontramos com propostas e promessas de ações entre pessoas emocionadas e representantes governamentais.

É assustadora a falta de ética e sensibilidade da mídia no trato com esse episódio, assim como dos “especialistas” com suas opiniões esquemáticas, desumanizadoras. Com certeza, essas pessoas não imaginam o que esse tipo de abordagem irresponsável e leviana pode causar.

A mistura de emoções penosas com cobranças e promessas de possíveis medidas preventivas é perigosa, com a pressa ocupando o lugar da calma indispensável para a decantação dos acontecimentos, da necessária ponderação dos problemas e das propostas para o atendimento dos males acontecidos e da possível prevenção de repetições.

O presidente do Senado, José Sarney, sugeriu que “o governo deve, a partir desse episódio, reforçar a segurança dentro das escolas brasileiras e até mesmo incluir no currículo um item chamado segurança”. O despautério não parou por aí, outras sugestões também foram feitas: instalação de câmeras, detectores de metal, catracas, guaritas, porteiros armados.

Quem ou o quê produziu Wellington? Por que um espetáculo tão macabro, no qual todos somos perdedores? Quem diz que sabe o porquê do acontecido, sinalizando um único fator como a causa de tudo, comete um erro. Estamos todos perplexos, confusos e amedrontados.

Freud em sua correspondência com Lou Andreas-Salomé faz uma curiosa sugestão para uma postura investigativa: “Ao ler um livro, é preciso emitir um facho de intensa escuridão de modo que algo que até então tenha estado obscurecido pelo resplendor da iluminação possa brilhar ainda mais na escuridão“.

Introduzindo a figura de linguagem (oxímoro) que harmoniza dois conceitos opostos em uma só expressão, formando assim um terceiro conceito que dependerá da interpretação do leitor – “resplendor da obscuridade” – Freud valeu-se desse recurso expressivo na abordagem de seus objetos de investigação. Dado que o sentido literal de um oxímoro é absurdo, força-se o leitor a procurar um sentido metafórico que visa a uma apreensão do conhecimento psíquico por meio de um caminho que se movimenta do “não saber” em direção ao “saber”. O significado nesses casos emerge em função da tensão surgida entre uma proposição afirmativa e outra que a nega.

Emitir um facho de intensa escuridão não é uma recomendação prescritiva de algo a ser obtido pela vontade, mas a sugestão de adentrarmos em regiões profundas da mente, desassistidos da iluminação ilusória, obtida pela utilização de conhecimentos prévios. “Luz que obscurece” uma possível percepção do não percebido, não pensado (ou pensável), situado sempre em um plano infra ou suprassensorial.

A realidade deixa muito para a imaginação
(John Lennon)

O acontecido de Realengo com toda sua tristeza, horror que nos apresenta o perigo dos demônios da mente, que, quando amplificados pela força da alavanca do processo grupal, pode destruir o mundo.

Wellington era um condenado ao excesso de realidade de seu abandono e com uma sentença de morte já pronunciada, estando o horror instalado em lugar do trabalho psíquico da imaginação. A partir de então, despossuído de si, passa a ecoar a realidade circundante.

Assim como ninguém chega sozinho ao céu, ninguém constrói sozinho a própria história.

O bullying, definido por agressões sistemáticas físicas ou verbais, não é um fenômeno novo. O que é novidade é o uso generalizado desse termo que acabou por suprimir do cotidiano, uma série de palavras do português que descrevem de forma matizada acontecimentos relacionais. Sinal dos tempos, da falta de intimidade com os sofrimentos, os sentimentos.

Poderia fazer uma longa lista de traduções matizadas para bullying, só apresento algumas: abominação, aborrecimento, acanhar, acovardar, agressão social, ameaçar, amedrontar, antipatia, asco, assombrar, assustar, atemorizar, aversão, birra, crueldade, desamor, desgosto, desprezo, desumanidade, dificuldade, enjoo, enojo, espavorir, estranhamento, exclusão, execração, fastio, horror, hostilidade, impiedade, iniquidade, intimidar, irritação, malquerer, maldade, maleficência, malefício, malfazer, malignidade, maus tratos, náusea, nojo, objeção, ódio, ojeriza, opressão, perversidade, preconceito, raiva, rancor, rechaço, recusa, rejeição, relutância, repelência, repúdio, repugnância, repulsa, repulsão, resistência, ruindade.

Wellington não tinha o poder de se comunicar. “Mal ouvíamos a voz dele, vivia no mundo dele”, contou uma vizinha. “Era muito calado, muito fechado e a galera pegava muito no pé dele, mas não a ponto de ele fazer isso”, disse seu ex-colega Bruno Linhares, 23 anos, se referindo ao massacre. Passava todo o tempo na internet, em jogos eletrônicos. Seu perfil social no Orkut tinha “zero amigos”. Seus dois apelidos, dados pelos colegas de escola: Sherman e Suingue.

O primeiro, dado após a menina mais bonita da turma se jogar em cima dele, fingindo assediá-lo. Tiro certo na esquisitice e dificuldades com relacionamentos, o apelido é referência à figura nerd de Chuck Sherman, “the Sherminator”, do filme American Pie. O filme conta a história de quatro adolescentes que firmam um pacto semanas antes de se formarem no segundo grau de que todos eles deveriam transar com alguma garota antes de se formarem. Uma fala de Chuck Sherman no filme: “Eu sou o Sherminator, um robô do sexo sofisticado enviado de volta no tempo, para mudar o futuro de uma moça de sorte“.

O segundo apelido era referência a seu jeito de caminhar, causado por uma perna menor que a outra, que produzia um balanço, um “suingue”, no dizer debochado dos colegas.

“A gente chorou muito pensando que Wellington matou aquelas 12 crianças em represália pelo que aconteceu com ele quando nós estudávamos juntos”, contou Thiago da Cruz, outro ex-colega, que usou o adjetivo assustador para se referir ao bullying e à chacota a que Wellington foi submetido. Em entrevista à Folha de S.Paulo, reconheceu que não suspeitava do dano que cometeram e acrescentou chorando: “Não era para ninguém ter pago por uma coisa que nós fizemos”.

O que não aparece nos relatos e depoimentos é o que poderia ter sido feito. O retrato pintado por familiares e conhecidos coloca em cores cruas um longo processo de sofrimento mental: o fascínio pelo ataque às torres em Nova York, o desejo de destruir o Cristo Redentor, a reclusão voluntária, a alteração da própria figura – tudo muito indicativo e bem percebido.

Freud, em seu livro Mal-estar na Civilização, de 1930, nos diz que: “… Os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas: pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo. Homo homini lupus“.

Freud, ecoa Hobbes quando este diz que o homem, por natureza, procura ultrapassar todos os seus semelhantes: ele não busca apenas a satisfação de suas necessidades naturais, mas sobretudo as alegrias da vaidade. O maior sofrimento é ser desprezado. Assim sendo, o ofendido procura vingar-se, mas comumente não deseja a morte de seu adversário, mas sim seu cativeiro, a fim de poder ler, em seu olhar atemorizado e submisso, o reconhecimento de sua própria superioridade. É claro que esse é um estado extremamente infeliz. Em definitivo, ninguém está protegido.

Uma dimensão perversa assassina habita em cada um de nós. Temos instintos de agredir e de matar, pouco importam as interpretações que lhe dermos. Importa assumi-la não só individualmente como principalmente no coletivo. Freud bem sugeria: tudo o que cria vínculos entre os seres humanos, tudo o que civiliza, toda a educação assim como toda arte, trabalha contra a agressão e a morte.

Podemos superar essa dilaceração no humano? Foi a pergunta que Einstein colocou em uma carta, de 30 de julho de 1932, a Freud: “Existe a possibilidade de dirigir a evolução psíquica a ponto de tornar os seres humanos mais capazes de resistir à psicose do ódio e da destruição?“. Freud respondeu realisticamente: “Não existe a esperança de suprimir de modo direto a agressividade humana. O que podemos é percorrer vias indiretas, reforçando o princípio de vida (Eros) contra o princípio de morte (Thanatos)“. E termina com uma frase resignada: “Esfaimados pensamos no moinho que tão lentamente mói que poderemos morrer de fome antes de receber a farinha“.

Será esse o nosso destino?


*Médico, psicanalista, analista institucional e diretor de projetos terapêuticos.


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