Sérgio Sant’Anna não escreve por meias-palavras, o que não quer dizer que escreva com palavras “inteiras”. Há um grau elevado de ambiguidade e exigência para o leitor que acompanha a maioria de seus textos. Ainda assim, é dos raros escritores experimentais que conseguem aliar complexidade e entretenimento. É um diálogo inteligente que estabelece com o leitor, por vezes sofrido, quase sempre irônico, mas nunca insípido, o que significa que é impossível sair incólume de uma narrativa sua: no mínimo dá-se umas boas risadas; no máximo, queda-se em estupor, perdido ante a insignificância da existência.
Conhecido por histórias pesadas, envolvendo sexo, sordidez, desesperança e amoralidade, além de uma violência que por vezes beira o bizarro, Sant’Anna já ganhou quatro prêmios Jabuti e um segundo lugar no Portugal Telecom, além de outras celebrações de sua obra, também bastante traduzida (até para o tcheco!).
Com o livro mais recente, O Homem-mulher, decidiu buscar certa ternura, sem, no entanto, perder a dureza habitual. Curioso com o movimento dos crossdressers, criou o conto-título, que se desdobra em dois, uma versão curta e seca, ao estilo de Dalton Trevisan, referência confessa, e outra mais alentada, como um remix.
Há histórias de amor e candura, e mesmo algumas epifanias, como o surgimento de uma baleia à beira da praia no Rio de Janeiro, onde ele, mineiro de Belo Horizonte (1941), mora sozinho, longe dos dois filhos e da neta. O humor ferino (o clichê se justifica) também surge com força em pelo menos duas narrativas breves: “O Rigor Formal” mostra a vingança da mulher traída de um escritor famoso e “Antenas da Raça” coloca uma grã-fina em um duelo mortal com uma barata.
Autor principalmente de contos – e não é exagero dizer que, ao lado do mencionado Trevisan e de Rubem Fonseca é um dos maiores do país nesse gênero –, mas também de romances, novelas, peças de teatro e poemas, Sant’Anna considera-se, acima de tudo, um ficcionista. E é como tal que ele deu esta entrevista, em um quarto de hotel em São Paulo.
Brasileiros – O Homem-mulher parece um pouco diferente dos seus livros anteriores, um pouco mais leve. Você concorda?
Sérgio Sant’Anna: Tem a ver. Em alguns casos, como em “Lencinhos”, eu quis escrever algo com ternura, um pouco mais doce, não vou ter vergonha de usar essa palavra. Estava um pouco cansado daquela coisa muito pesada. É claro que, mesmo nesse conto, a coisa acaba descambando, com o episódio da dentista (em que há certa dose de sexo pervertido). É um livro afetivo, eu acho. E as pessoas têm percebido isso, o que é legal.
No caso do conto do título, você fez uma coisa curiosa: duas versões da mesma história. Como foi isso?
Ninguém me cobrou, mas eu falei para mim mesmo: “Não dá para um casal passar por uma aventura amorosa em um cemitério e nunca mais se ver e pronto, isso tem de se estender de alguma forma”. E, ao mesmo tempo, eu não queria que eles se reencontrassem. Cheguei a tentar uns finaizinhos em que eles ficavam juntos para sempre, mas ficava meio tolo. E aí veio aquela segunda versão, que está no fim do livro. Deixar só “O Homem-mulher I” era insatisfatório. Era um caso muito incomum, algo para despertar uma paixão.
Quando li esse conto, com o ator que gosta de se vestir de mulher, me veio logo à cabeça o Laerte. Você pensou nele ao escrever?
Não, porque eu não conheço o Laerte, mas tem a ver, obviamente, porque sei que ele é um crossdresser. Será inexplicável esse negócio de eu querer escrever um personagem que fosse um crossdresser, mas me deu vontade de partir para um tipo de sexualidade que não é bem uma sexualidade. Gostei. É dessas coisas que não se explicam, a gente faz porque quer fazer.
Por que o teatro entra tanto em sua obra? Você chegou a escrever uma peça, Um Romance de Geração.
Mas é fracassada como teatro. A Bia Lessa adaptou, mas me traiu muito. Quer dizer, gostei muito de algumas partes e outras não. Eu ia me esgoelando para botar no papel e ela ia montando. Tentava me ajustar a ela, mas não gosto mais de dividir trabalho, sabe? Cinema é a mesma coisa. O Bossa Nova (adaptação cinematográfica do conto “A Senhorita Simpson”) é uma droga. Não quero agredir o Bruno Barreto, mas aquilo não me diz respeito. Do filme Um Crime Delicado eu gosto mais, porque gosto mais do Beto Brant como diretor, mas não entendo por que ele botou uma mulher sem perna no lugar da mulher coxa do meu livro. Tem A Tragédia Brasileira (1987), que é um dos livros de que mais gosto. Mas é romance e teatro ao mesmo tempo, tem capítulos inteiros em prosa e outros com aquela divisão em diálogos. O que me atrai é a ideia de o personagem estar representando de alguma forma. Não que eu seja frequentador assíduo de teatro; e não me vejo como dramaturgo, porque tenho um lado subjetivo muito grande que o teatro botaria a perder. Mas gosto do clima do teatro. Teve uma época que eu era muito amigo do Antunes Filho. As peças dele me inspiravam muito. Eu assistia a ensaios, conversava muito com ele, é um homem brilhante. E ele é um pouco responsável por A Tragédia Brasileira. Eu me inspirei muito nas montagens de Macunaíma e Eterno Retorno, que acompanhei muito de perto. Depois, não sei por que a gente se afastou.
Um tema delicado, que aparece bastante em sua obra, é o suicídio. Está no conto Um Discurso sobre o Método (de A Senhorita Simpson, 1989), em narrativas como O Gorila, e duas vezes no livro novo. É algo que sempre esteve na sua cabeça?
Sempre esteve, mas agora de formas diferentes. Hoje, eu não pensaria em me suicidar de modo algum. Mas uma vez tentei. Eu tinha uma namorada, saí da casa dela numa ansiedade brutal, não estava cabendo dentro de mim. Fui para casa, onde eu tinha um coquetel de antidepressivos e ansiolíticos. Botei tudo na boca. Mas ela telefonou para lá e ninguém atendeu, obviamente, e ela acabou me socorrendo. Fizeram o diabo comigo, mas felizmente eu não estava consciente. Não me grilo de falar disso porque até coloquei num conto, “A Barca na Noite” (de O Vôo na Madrugada). Está tudo relatado aí. Escrevi esse conto na clínica psiquiátrica.
Você faz análise? Tenho a impressão de que a psicanálise é mencionada em seus textos com certa ironia.
É verdade. Primeiro porque acho que a psicanálise não é boa para a literatura, são duas coisas que não casam bem. Mas às vezes acaba surgindo uma analista nos meus contos. Só que tenho tantos que não saberia dizer em quais. Faço análise uma vez por semana, com a mesma pessoa, há mais de vinte anos. E nem tenho a esperança de algo que se pareça com cura, mas é um diálogo que é importante para mim. Faço com uma mulher. Antes, fazia com um cara, em Belo Horizonte. Tenho até muita saudade dele, porque eu o achava genial. Ele quase não falava, era um negócio estranho. Mas quando falava, acertava na mosca. Era muito observador, tomava notas. Uma vez, quando eu estava sofrendo para burro para escrever Simulacros (romance de 1977), ele me perguntou: “Por que não escrever sem um objetivo preciso?”. E isso foi muito importante para mim.
Como ele, você também tem o hábito de fazer muitas anotações, não é?
Sim, faço direto. Costumo anotar nas páginas em branco do livro que estou lendo e sempre durmo com um papel e uma caneta do lado. Aliás, o verdadeiro conto sobre sonho que escrevi é “O Submarino Alemão”, que está no Concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro, que será relançado agora. Foi muito bom reler esse livro, pois gostei do livro. Não gosto de reler, mas nesse caso tive de fazê-lo para acertar as coisas, e fiquei orgulhoso, é um livro bacana. Tanto é que escolhi esse para reeditar.
Passado esse tempo todo, como você vê o escritor que era na época do Concerto, em 1982, em comparação ao escritor que é hoje?
Olha, em certo sentido me deu uma saudade danada daquele escritor do Concerto. Mas não sei dizer se ele era pior ou melhor do que o de agora. Hoje, com certeza, tenho mais experiência, mais traquejo. Mas o Concerto é um livro muito especial. E ele foi muito mal lançado, por aquela Editora Ática, que só queria saber de livro didático, e por isso o livro não foi bem distribuído. Agora vai ser muito melhor.
Voltando ao Homem-mulher, o conto Amor a Buda é um exemplo claro de outra característica marcante sua como escritor, que é essa fusão de ensaio e ficção, e esse interesse especial em descrever as sensações que uma obra de arte transmite. No caso, você descreve uma escultura do chinês Li Zhang Yang. Foi ideia sua colocá-la na capa?
Sim, vi essa escultura maravilhosa na exposição China Hoje, no CCBB do Rio, em 2007. Fiquei tão fascinado com ela que voltei umas quatro vezes para a exposição, só par revê-la. Ficava dando voltas e voltas em torno dela, provavelmente já pensando em algo para escrever. Isso acontece muito comigo. Se eu entro numa galeria e vejo uma obra, ela me inspira a escrever. No Notas de Manfredo Rangel (1973) tem o conto “Um Dia à Tarde no Museu”, que é só o pessoal vendo obras de arte. Quase ninguém fala dele, mas eu gosto muito desse conto.
É uma escultura bastante sensual, o que faz pensar em mais um tema muito recorrente em sua obra: o sexo. Aliás, você parece ser uma exceção àquela “maldição” comum entre escritores de que é muito difícil escrever uma boa cena de sexo.
Eu não acho difícil mesmo. Estou querendo até pegar mais leve, sabe? Até porque estou mais velho. Mas o sexo é uma coisa tão vital! Acho absolutamente natural que uma pessoa escreva bastante sobre sexo. O crítico Alcir Pécora, que me deu a honra de falar bem desse livro, falou que nunca se escreveu a palavra “boceta” com tanta elegância. Achei muita graça nisso.
E Rigor Formal? É um conto especialmente divertido porque você tira o maior sarro da própria figura do escritor.
É, eu queria mesmo sacanear os escritores; aquela vaidade do escritor, como se ele fosse um cara fodão. E aí tem essa mulher que resolve tirar um sarro em cima dele, ainda mais que ele a trai a três por dois, e então ela dá uma vingança em regra nele, né? Isso aí me seduziu fazer esse negócio de dar uma gozaçãozinha em cima do escritor.
Seu nome deve ser muito lembrado para a Academia Brasileira de Letras. Você pensa nisso?
Ah, a Academia é um negócio tão tolo que nem vale a pena criticar. Eu não ia querer entrar lá. A não ser que eu estivesse muito duro. Aquilo paga? Eu não sei. O Ivan Junqueira chegou a me sondar em uma festa. E eu disse, não, não quero, obrigado. Para começar esse negócio de ter de pedir voto é grotesco. Você sair de casa e ir pedir o voto do José Sarney… Eu acho o José Sarney uma das coisas mais desprezíveis nesse País. E também o que acrescentaria ir para a Academia? Já me disseram que alguns entram lá por causa da solidão. Acho bem capaz. Mas nunca entendi o João Ubaldo ter entrado lá.
Uma vez você declarou que tinha muita dificuldade em escrever diálogos, tanto que em seu primeiro livro, Os Sobreviventes, de 1969, não há diálogo nenhum. Como você passou a dominar essa ferramenta? Foi difícil?
Não, foi uma questão de vida pessoal. Os contos de Os Sobreviventes foram escritos na província, quando eu morava em Belo Horizonte. É um livro muito fechado. Não gosto dele. Mas aí fui morar na França por um tempo e depois nos EUA, em um programa internacional para escritores da Universidade de Iowa. Foi uma experiência muito marcante, não só pela convivência com escritores de várias partes do mundo, mas também com os próprios americanos daquela época, começo dos anos 1970, era todo mundo muito doido. A partir daí, eu queria fazer uma literatura mais rica, mais dinâmica, universal. Se eu não tivesse saído de Belo Horizonte não sei o que teria sido de mim. Bom, eu daria um jeito de sair, né?
Seus primeiros livros – e eu penso especialmente no conto Notas de Manfredo Rangel, Repórter (a Respeito de Kramer) – devem ter chamado a atenção dos censores na ditadura. Você não teve problemas nessa época?
Eu fui de esquerda, mas em 1968 eu já era muito crítico em relação à esquerda brasileira. Mas a questão é que a gente era violentamente contra a ditadura. Eu tinha um emprego na Petrobras, era do sindicato, era ativo politicamente e fui processado e demitido dentro de um inquérito policial-militar. Mas não aconteceu nada de horrível comigo. Como era ainda no governo Castelo Branco, os oficiais que me interrogavam eram até civilizados. Nunca me encostaram a mão, nem fui preso. Diante do que aconteceu com amigos meus, foi bem light. O Zé Carlos da Mata Machado, que estudou comigo na escola de Direito, foi torturado e morto. Um horror.
A metalinguagem, o comentário sobre o próprio ato de escrever ou a literatura também são recorrentes. Isso é uma coisa muito forte para você, sempre.
É, sempre. Tem hora que eu implico comigo mesmo por ter tanto. Eu queria que tivesse menos. Mas na hora acaba saindo. Eu já impliquei um pouco com essa palavra, metalinguagem. Mas isso vem desde o Notas do Manfredo Rangel. Nessa época, eu nem sabia que se usaria tanto a metalinguagem, que se falaria tanto sobre a própria narrativa. Eu achava que estava sendo inovador. Talvez fosse. Mas outro dia eu estava pensando: em Shakespeare tem metalinguagem, no Hamlet. Enfim, é um coisa um pouco sutil. Acho que a literatura tem de ter uma justificativa formal. Por exemplo, o Rubem Fonseca quando escreve do ponto de vista de um marginal, escreve com uma linguagem que é dele, Rubem Fonseca. E isso acho que não funciona. Então tenho de botar a metalinguagem às vezes para justificar o ponto de vista do narrador, né? O narrador é o cara que pensou aquilo.
Tem aquela declaração do Cortázar, muito citada, em que ele diz que o romance ganha por pontos e o conto por nocaute. Como é no seu caso?
Olha, no meu caso seria o seguinte: se tenho um tema e uma linguagem comigo, faço até achar que está legal. Eu não espicharia um trabalho para ter um romance na mão. Nem conseguiria. Não sou romancista mesmo, aquele negócio de seguir uma família através dos séculos não é comigo. Quero fazer a coisa o mais rápido possível.
Você é um escritor experimental e acessível ao mesmo tempo. Você busca essa combinação ou ela surge naturalmente?
Vem naturalmente porque tenho certa preocupação com a comunicação. Não é uma comunicação fácil, mas quero entender e me fazer entendido, apesar de às vezes achar que as pessoas não vão me entender. No Vôo da Madrugada, por exemplo, escrevi um conto que chama “Um Conto Abstrato”, que é para determinados leitores e para mim mesmo. E tem leitores que curtem isso. Escrevo muito para leitores que têm a ver comigo, sabe? E também você solta o conto no mundo e às vezes tem boas surpresas – pessoas que você não esperava que iriam curtir esse tipo de coisa e curtem. Mas eu tinha vontade de escrever um quadro, um conto que fosse puramente abstrato, mas não consegui. A única literatura puramente abstrata e boa que conheço é dos dadaístas. Aquele poema do Hugo Ball, não sei se você conhece, que não tem uma só palavra inteligível, é só sonoridade. E é engraçado, por incrível que pareça.
Você acompanha os lançamentos, a literatura contemporânea?
Acho muito difícil esse negócio de literatura atual, não vejo nada que a caracterize, não vejo nada que me chame atenção. Dos recentes que li, gostei muito do Mil Rosas Roubadas, do Silviano Santiago, em que ele fala do Ezequiel Neves, uma figura muito interessante, que conheci pessoalmente.
Li um comentário em alguma entrevista com você sobre as novas gerações, que estariam mais preocupadas com a carreira, o sucesso…
Estão dizendo isso aí. Acho que é verdade. Mas não acho que isso funcione. Vou ser um pouco moralista: você tem de ser honesto consigo mesmo. Você tem de escrever aquilo que acha que é uma coisa boa e aí solta no mercado – se fizer sucesso, ótimo, não sou contra o sucesso. Meu livro novo mesmo está vendendo bem, mas também porque já sou mais conhecido. Também acho que é um livro atraente, ainda que não seja para qualquer tipo de pessoa.
Você disse que seu filho André Sant’Anna, também escritor (autor de O Paraíso é Bem Bacana, entre outros) é seu primeiro leitor. Como é a relação entre vocês?
A gente troca muita figurinha. Como ele mora em outra cidade, a gente se telefona, manda e-mail. A opinião dele é muito importante para mim, e ele dá opinião nos meus trabalhos desde os 14 anos, quando foi morar comigo. Eu já estava separado, ele foi o primeiro a ir lá para casa, depois minha filha Paula foi também. Tem muita briga, claro, mas nós ficamos muito amigos, uma relação que não é comum entre pai e filho, gosto muito do trabalho dele, ele gosta do meu, se por acaso um tiver uma dúvida fala com o outro, sabe?
Você nota pontos de encontro entre sua obra e a dele?
Olha, aí acho que não. O André partiu para um anarquismo mais radical do que o meu, né? Claro que sempre haverá algum ponto, mas aí já fico numa saia justa para falar isso. Acho que sou um escritor talvez mais elaborado, mais sério, e o André é um escritor mais anárquico mesmo.
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