O homem que escrevia de trás para frente

Caderno e coragem embaixo do braço, Otacílio José dos Santos atravessou os corredores da Escola Estadual Justino Cardoso, em São Paulo. Entrou na sala repleta de carteiras, escolhendo para si a mais próxima da lousa – a determinação e a catarata nos dois olhos exigiam que assim fosse. Sob o bigode preto salpicado pelo branco da idade, com um sorriso cumprimentou a educadora cinquenta e tantos anos mais nova. Enquanto os colegas do supletivo noturno se ajeitavam em seus lugares, Otacílio precisava ajeitar o próprio acanhamento: “Eu era o mais antigo lá. Parei de estudar aos nove anos. Não foi fácil começar tudo de novo”. Na primeira aula, a professora de português ficou intrigada.

– Seu Otacílio, veja bem… O senhor está começando a copiar as matérias na última página do caderno. Assim vai ser uma desorganização só.
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– Deixa. Faço do meu jeito – respondeu, incomodado.

Ao lembrar-se do episódio vivido há quatro verões, Otacílio, 84 anos, ri a ponto de fechar os olhos já pequeninos. “Quando a pessoa estuda desde criança, sabe arrumar as lições direitinho, né? Eu peguei o bonde andando.” A escrita, utilizando as páginas de trás para frente, refletia a cronologia invertida de sua vida. Octogenário, estava reaprendendo a ser o menino que a pobreza roubou da terceira série. Mas como essa é uma história longa, ele me convida para sentar à mesa da cozinha, invadida pelo chiado da panela e o cheiro do feijão. Estava tão disposto naquela manhã que quase me esqueço: ainda se recupera de uma cirurgia feita às pressas, duas semanas antes, por causa de uma apendicite supurada.

Filho caçula de costureira e agricultor analfabetos, o paraibano Otacílio nasceu na miúda Pilar. Mas foi na cidade de Santa Rita, a pouco mais de 15 km da capital, João Pessoa, que cresceu ao lado dos oito irmãos. “Meu pai não era contra estudar, mas acabava levando os filhos para ajudar na roça. Eu também cheguei a ir, aos cinco anos. Só que minha mãe, mais esclarecida, me encaminhou para o estudo.” Graças a ela, Otacílio e uma irmã podiam pegar a trilha que levava à escola. Esforçavam-se mais pelo temor do chicote da mãe, muito rígida, do que pela palmatória da professora. Nem toda obediência o protegeu do maior castigo que poderia imaginar – a morte do pai o obrigou a abandonar os livros.

Aos nove anos, ele arrumou um emprego como ajudante de pedreiro. “Fiquei dois dias só. O serviço era pesado demais, eu era devagar e gritavam ‘vamos, massa mole!’. Cheguei em casa todo chateado…” Então, foi levado para a indústria de tecelagem onde uma irmã trabalhava. Única criança em meio a duzentos funcionários e máquinas que lhe pareciam gigantescas, descobriu como o algodão puro virava tecido. “Eu ficava perto da minha irmã. Quando meus fios enrolavam, ela me ensinava a desembaraçar.” Se a fiscalização aparecia, o patrão lhe dava o dia de folga. E se a Seleção Brasileira estivesse jogando, era ele quem se “permitia” uma escapada clandestina para ouvir os gols no rádio do bar mais próximo.

Pelas doze horas diárias de trabalho, o garoto recebia como salário uma única moeda, de mil réis. Otacílio entregava sua fortuna à mãe, que lhe devolvia 400 réis. O suficiente para comprar uma bengala de pão e dividi-la com os amigos depois do futebol, onde se esbaldava como ponta-direita. “Ou então eu comprava um pote de doce e comia à vontade. Em casa, como tinha muita gente, cada um só podia pegar um pedacinho”, Otacílio se lambuza nas memórias. Aos 12 anos, teve oportunidade de voltar a estudar. Um irmão que acabara de casar o acolheu em João Pessoa e o matriculou em um colégio estadual. Durante um ano foi aluno empenhado e “puxa-saco”, do tipo que carrega a bolsa da professora. Mas, se sentindo responsável pelo sustento da família, voltou para a tecelagem.

Fios e anos foram trançados, o jovem de dedos compridos casou-se com uma Severina. Virou viúvo e pai depois do parto dela, aos 25 anos. A filha, deixou com a sogra – e a tristeza veio na bagagem de trem para São Paulo. Na metrópole, trabalhou na Alpargatas, em uma metalúrgica e foi contratado como eletricista no Quartel General do Aeroporto Campo de Marte. “Quando entrei no hangar e vi um avião pela primeira vez, tomei um susto. Eles pareciam pequenos no céu. Mas logo aprendi a fazer a manutenção de caças e aeronaves de guerra.” Sempre que não entendia o funcionamento dos sistemas e precisava recorrer aos manuais, em inglês, Otacílio jurava para si mesmo que ainda retomaria os estudos.

Antes, vieram as quatro filhas, fruto do segundo casamento, com Maria Conceição. “Ela era vizinha de minha mãe. Numa visita de férias ao Nordeste, causei aquele alvoroço entre as moças. Rapaz de São Paulo, sabe como é…” Na época, houve só entrosamento. “Mandei umas cartas bem malfeitas, porque eu não sabia escrever, e ela precisava de alguém que lesse, porque nem sabia ler.” Rapidamente, a “moça direita” estava casada, debaixo do teto que o próprio marido construiu em um terreno comprado na Vila Medeiros (onde vive até hoje). É essa mulher companheira que faz os olhos de Otacílio boiarem numa saudade aguada. Há quatro anos, ela morreu, devido a uma pedra na vesícula.

– A falta é grande, seu Otacílio?

– Ô… – É tudo que ele consegue dizer, pigarreando na tentativa de segurar o choro doído.

E foi para preencher o imenso vazio da perda que ele se reergueu inteiro, dirigiu-se até um colégio da prefeitura e matriculou-se no ensino fundamental. “Era um desejo antigo do meu pai e fez com que ele voltasse a viver”, diz a filha Sônia, 54 anos. Apesar de incentivá-lo, ela confessa que teve receio. “Eu pensava: meu Deus, quando ele vir a molecada de boné, falando gíria e palavrão, desrespeitando a professora… não vai dar certo. Até hoje ele bate continência e faz com que a gente peça bênção.” Determinado, Otacílio chegou para o primeiro dia de aula com pontua-lidade militar. Saiu de lá horrorizado: “O que está acontecendo com o mundo? Ninguém quer nada com nada!”. Com a voz baixinha, como se revelasse um segredo, ele lembra que notava os alunos indo fumar maconha no banheiro durante o recreio.

Superadas as abissais diferenças entre as gerações, o aluno mais velho mostrou-se exemplar. “Não me lembro de ele ter faltado um dia sequer. Era calado e muito atento. Copiava cada pontinho que eu colocava na lousa”, diz a ex-professora de inglês Elisabete Lozado, 35 anos. Ainda que o idioma custasse a ser assimilado, Otacílio permitia-se um pouco mais de paciência. Quando notava que algum colega desanimava porque a matéria não “entrava na cabeça”, partilhava sua sabedoria: “Calma, tem coisa que não se aprende num dia só”. Na matemática, encontrou as maiores dificuldades. Fração era explicada a ele pela analogia com tijolos. Mas veio a tal raiz quadrada e ele se pôs a coçar os cabelos rente ao couro. “Fui tocando, perguntando para quem tinha entendido e, quando finalmente consegui resolver uma lição, pensei: opa, agora tô joia.”

História era sua disciplina predileta. Adorava ouvir sobre o período pré-histórico e sobre a origem de conflitos religiosos. Certa vez, Otacílio, que não é nada perguntador devido à tímidez, lançou ao professor uma dúvida: “Por que desde os tempos antigos o pequeno é maltratado pelos grandes e poderosos?”. Naquele momento, percebeu que, para algumas questões, nenhuma resposta parece lógica o bastante. Mesmo assim, de segunda à sexta, das 19h30 às 23h45, ele anotava nas linhas do caderno cada número, palavra, conceito. Sabia que representavam apenas o contorno de infinitas possibilidades que o conhecimento lhe proporcionaria.

Quase cinco anos depois, em julho de 2009, Otacílio vestiu a tradicional beca por cima da camisa de linho comprada para a ocasião. O pátio da escola em que concluiu o ensino médio estava forrado de cadeiras e de colegas. Mais uma vez, ele se sentou lá na frente. Teve seu lugar reservado. Não devido à catarata, já operada, mas ao reconhecimento pela grandeza de sua conquista. Com cinco filhas, quatro netos e três bisnetos, Otacílio apanhou o diploma dizendo que “só queria ganhar esclarecimento e ser orgulho para a família”.

Na família, apenas uma de suas filhas fez o ensino superior. Agora, uma das netas, com 31 anos, avisou que vai retomar a faculdade – havia trancado a matrícula -, porque “não quer ficar para trás, não”. É que, ao final da nossa conversa ao pé do fogão, Otacílio revela que pretende ir além. “Se eu não pifar daqui para frente, vou me formar em Direito.” O feijão fica pronto e a mesa do almoço não tem pratos nem talheres. Apenas os livros e cadernos abertos, sua fonte de estudo todos os dias pela manhã. A maior fome de Otacílio ainda é por conhecimento.


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