O homem que prendeu o Homem – Parte final

Afresco do século 19 de Judas traindo Jesus, na Igreja de Altlerchenfelder, Viena - Foto: Renata Sedmakova
Afresco do século 19 de Judas traindo Jesus, na Igreja de Altlerchenfelder, Viena – Foto: Renata Sedmakova

Resumo dos dois capítulos anteriores: estamos em Jerusalém. Pôncios Pilatos contratou Marius Albertus, detetive da época, para localizar Jesus que estava dando prejuízo ao Império Romano ali no sul, transformando água em vinho, multiplicando pães, curando doentes e ressuscitando outros. Marius descobriu a casa dos pais de Jesus, passando-se por fiscal do Imposto de Renda. Jesus teria restituição. Dona Maria Doceira indicou a jovem Maria Madalena (modelo, atriz e pedicure), pois ela deveria saber por onde andava o filho do Homem. Madalena indicou João Doleiro que estava preso,mas o detetive tinha boas relações na Polícia Federal romana.

Brasileiros – Quer dizer que o senhor não teve dificuldade nenhuma para falar com o Doleiro?

Marius enchendo seu cachimbo.

Marius Albertus: Nenhuma. Alguns dólares ao carcereiro. Falamos sobre Jesus. Logo ele foi dizendo que o filho do Homem não tinha nada a ver com a Petrobras. Eram fofocas. Mas me indicou um seu amigo que também era amigo do meu procurado. E que eles se reuniam na adega da Marta, irmã de Lázaro.

Ele já havia ressuscitado Lázaro?
Segundo Pôncio Pilatos, sim. E ele me falou que o amigo dele, através de uma delação premiada, poderia entregar o homem. Porque eles andavam sempre em treze e era difícil saber quem era quem. E me disse mais: que eles eram uma empresa muito bem organizada. E me explicou o que era uma delação premiada. O jornalista sabe o que é? Eu achei aquilo o máximo.

Sim, eu sei o que é. Eles fazem a delação premiada e depois… Melhor eu calar a boca.
É, é melhor.

Como se chamava o amigo do Doleiro, que era amigo de Jesus?
Judas. Judas Escariotes. Devia ser grego, né?, com um sobrenome desse.

Aí você foi para a adega?
Sim, cheguei lá como quem não quer nada.

Entra a Uvula Uvalorum, esposa de Marius Albertus, com uma bandeja e um cafezinho para nós três e um pão de queijo de cabra maravilhoso. Bebemos, comemos. Ele: “Onde eu estava mesmo?”. A mulher: “Tá vendo como tá esquecendo tudo? Precisa procurar um neurologista romano”. “Quieta, criatura”.

O senhor estava falando que chegou na adega como quem não queria nada. Tinha três homens discutindo com um sujeito que parecia pintor.
Sim, uma mesa vazia, sentei lá. A dona, que devia ser dona Marta, veio falar comigo.

“O senhor não repara na discussão, não. São todos amigos. Aquele com o pincel é um grande pintor romano e quer fazer um quadro com Jesus e seus apóstolos comendo pão e bebendo vinho. E ele não quer que seja numa mesa redonda como todas daqui. O senhor vai beber o que?”

“Pode ser uma taça de vinho da casa?”

“Algum aperitivinho, um tira gosto?”

“Tem vulva de camela a passarinho?”

“É a especialidade da casa.”

O pintor falava mais alto:

“A mesa tem que ser retangular e comprida.”

Um deles:

“E posso saber porque não pode ser redonda?”

“Pode! Se for redonda uns vão ficar de costas no quadro. Alguém quer ficar de costas e não entrar para a história.”

Os outros três foram para um canto e cochicharam. Voltaram:

“Marta, dá para arrumar uma mesa retangular e grande? O seu Leonardo tá insistindo e nós achamos que ele tem razão.”

Marta, que estava me servindo o vinho:

“É só ir lá no Zezinho Carpinteiro que ele resolve isso. Fala que é para nós e o filho dele. (e, para mim) A vulva tá fritando, vem logo.”

“Obrigado, minha senhora, um daqueles cavalheiros é Judas?”

“Sim, aquele fumando cigarro com filtro.”

“Eu poderia falar com ele?”

“Claro, a quem devo anunciar?”

“Um amigo, apenas isto.”

Ela grita:

“Escári!”

Faz sinal para ele vir. Ele chega. Me levanto, me apresento, ofereço uma cadeira, ele se senta. E fala para os outros.

“E sobre a morte, eu prefiro a cruz a forca. A cruz pode virar um símbolo muito mais importante, um logotipo para a nossa empesa que pode durar milhares de anos. Conversem com o pessoal da fábrica INRI.”

– Aí virou para mim.”

“Pois não.”

“Preciso falar com você, mas é longe daqui. Sabe um bom lugar?”

“Do que se trata?”

“Quem me indicou foi o João Doleiro.”

“Estou começando a entender. Me espere na esquina da Sócrates com a avenida Platão dentro de uma hora.”

Chegou a isca de vulva de camela frita. Uma coisa de louco.

Aí eu perguntei:

Foi para lá esperar?
Primeiro passei no Palácio para saber com o governador quanto que podia oferecer ao homem. Para a delação premiada, tá acompanhando? Dessa vez, Pôncio me atendeu de prima. Expliquei para ele o encontro que teria.

“Oferece para ele trinta milhões.”

“Tudo isso?”

“Depois a gente suicida ele.”

“E se ele achar pouco?”

“Uma puta casa em Alexandria, toda de vidro com vista para o Mediterrâneo. Com Jacuzzi, não se esqueça.”

“Pode deixar.”

Dona Uvula Uvulorum entrou de novo com mais cafezinho.

“Saia daqui mulher. Tu queres é ouvir o fim da história que eu nunca te contei. Vai fazer seu tricô.”

Leonardo da Vinci, "A última ceia" (1495-1498) - Foto: Domínio público / wikimedia commons
Leonardo da Vinci, “A última ceia” (1495-1498) – Foto: Domínio público / wikimedia commons

Nossa, que mau humor!

Saí. Eu estava com uma sacolinha com os trinta milhões. Naquela época a inflação estava muito alta e trinta milhões cabiam num saquinho. Você deve ter visto no desenho do Leo.

Sim, sim. Aí, foi para a esquina da Rua Sócrates com a Avenida Platão.
Sim, mas não era Rua Sócrates, era Praça Sócrates. Cheguei lá e não vi o Escariotes. Mas um sujeito de uns 30 e pouco anos foi se aproximando de mim. Estranho, parecia que tinha uma aura em torno dele.

Loiro, de olhos azuis?
Não, não, mais para mouro, cabelo quase ruim, baixo, atarracado. Esse negócio de loiro de olhos azuis é coisa de americano, do cinema americano. Mas era ele, o filho do Homem. Quase tremi.

– Achastes que Judas iria me trair?

Eu fiquei sem fala, o olhar dele era penetrante, mas não duro. Ele passava uma candura, uma alegria, uma paz. Enfim, amor.

Quer dizer que Judas não o entregou?
Não, parece que foi o Tiago, não sei direito. Você não vai acreditar, mas ele me convidou para tomar um sorvete ali na esquina.

Jesus gostava de sorvete?
Creme de tâmaras.

O velhinho começou a chorar.

Por isso que eu mandei a minha esposa sair. Ela não pode saber que eu virei cristão. Estão matando cristões até hoje. Mas eu vou a missa nas catacumbas. Minha mulher acha que eu vou me encontrar com alguma amante, coitada. Mas fica na dela. Ela fala demais, tenho medo.

Mas Cristo te convenceu assim rapidinho?
Rapidinho. E disse para eu entregar o dinheiro para a APAE. E que faria Pilatos esquecer que havia me conhecido, me contratado e tudo que a gente tinha conversado. No dia da Santa Ceia, eu fiquei numa mesa ao lado, sentado com a Marta vendo o Leonardo trabalhar.

A Maria Madalena estava mesmo na mesa?
Sim, à direita do filho do Homem. Mas não vá pensar besteira, não. Era ela que fazia as atas das reuniões. Só isso.

E por que Judas está meio recuado?
João Evangelista havia soltado um pum. Um santo pum, com todo o respeito.

Ele ficou me olhando.

– Você não vai acreditar na minha história, né?

Acho que não. Ia tudo muito bem, mas um pum na Santa Ceia?
 Juro, cara, eu ouvi. O Leonardo até olhou para a Marta, meio envergonhado. Não foi um puta pum, mas foi um pum. Não vai publicar a minha história, né?

Preciso conversar primeiro com o diretor de redação. Talvez sem o pum.
Mas sem o pum não tem a menor graça.

A revista é séria, seu Marius Albertus! Mas me diga, na pintura do Leonardo da Vinci, o Judas está segurando um saquinho. Não seriam os 30 dinheiros?

Ele disse baixinho:

– Maconha. Mas não esparrama…

 


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