O Supremo Tribunal Federal entrou na briga e faz, ainda neste mês de novembro, audiências públicas sobre o fim (ou não) da censura prévia a livros que contam a história de vida de alguém. Há gente de tudo quanto é lado: a favor, contra, em termos. No calor do debate, a reportagem da Brasileiros foi atrás dos bastidores que levaram à proibição das biografias de Roberto Carlos e Noel Rosa. A seguir, Paulo Cesar de Araújo, que assina a publicação sobre o Rei, e Carlos Didier, coautor do livro em torno do compositor de O Feitiço da Vila, contam o que de fato aconteceu
Um dos assuntos mais polêmicos do mês de outubro último pode começar a ter um desfecho no decorrer deste mês de novembro. A ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou a realização de audiência pública (dias 21 e 22) para discutir a necessidade de autorização de personagens para a publicação de biografias. O tema entrou em pauta por causa de ação movida, no ano passado, pela Associação Nacional dos Editores de Livros (ANEL), que questiona o alcance da interpretação dos artigos 20 e 21 (invasão de privacidade e apropriação indébita) do Código Civil. A ANEL alega que os dispositivos conteriam regras incompatíveis com a liberdade de expressão e de informação, ao sobrepor o direito à privacidade, e pede ao STF que dê interpretação conforme a Constituição Federal, de forma a afastar a necessidade de consentimento do biografado para a publicação de obras impressas.
O tema tem sido tratado na imprensa, nas redes sociais e rodas de amigos, desde que o grupo Procure Saber, liderado pela empresária Paula Lavigne e abraçado por artistas da MPB (Roberto Carlos, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Milton Nascimento, Djavan, entre outros), estendeu sua luta pela cobrança de direitos autorais junto ao Escritório de Arrecadação e Distribuição (ECAD) contra a ação da ANEL. Houve reação: especialistas em direitos humanos veem o uso dos artigos 20 e 21 do Código Civil como uma ferramenta capaz de levar o País de volta à censura. Reação até mesmo dentro do Procure Saber. Em artigo no O Globo, de 3 de novembro, Caetano criticou o mudança de posicionamento de Roberto Carlos. Mas isso é outra história.
Não há dados oficiais de quantas biografias estão impedidas de circular, mas sabe-se que trabalhos envolvendo nomes como Lampião, Raul Seixas, Caetano Veloso, Paulo Leminski, João Guimarães Rosa e Gilberto Gil estão suspensos. A reportagem da Brasileiros foi atrás dos detalhes duas histórias vetadas: Roberto Carlos em Detalhes, do jornalista Paulo Cesar de Araújo, publicada pela Editora Planeta, e Noel Rosa – Uma Biografia, de Carlos Didier e João Máximo, lançada pela Editora Universidade de Brasília.
O REI NA CONFUSÃO
A história do professor, jornalista e escritor carioca Paulo Cesar de Araújo poderia ser dividida entre antes e depois de 27 de abril de 2007. Nesse dia, acompanhado dos advogados da Editora Planeta, ele se dirigiu ao Fórum Criminal da Barra Funda, em São Paulo, onde teria uma audiência de conciliação, presidida pelo juiz Térsio Pires. O autor da biografia não autorizada do Rei estava animado. Se o juiz havia proposto um encontro para chegar a um acordo, significava que uma porta para o diálogo estava aberta. Araújo respondia a dois processos movidos pelo famoso cantor e compositor brasileiro, por causa da biografia Roberto Carlos em Detalhes, lançada com grande estardalhaço no dia 2 de dezembro do ano anterior, 2006. O livro foi assunto de capa de revista e elogiado por jornalistas de cadernos de cultura dos principais jornais do País, pela profundidade e competência de pesquisa do autor. Só que a alegria durou pouco. Uma semana depois do lançamento, Roberto Carlos anunciou que tomaria medidas legais para proibir o livro.
Talvez por ingenuidade, Araújo chegou a considerar que aquela seria uma reação momentânea. Afinal, a biografia é altamente positiva e elogiosa. Engano. Em 8 de janeiro de 2007, a Planeta recebeu uma notificação extrajudicial, em que pedia o recolhimento de todos os exemplares distribuídos e a suspensão da venda do livro, sob pena de multa diária de R$ 500 mil. Na sequência, Roberto Carlos entrou com ação cível contra a editora e o autor; e uma criminal contra o autor e o editor, Pascoal Soto. Na primeira, acusou a obra de ser uma biografia não autorizada, que caracterizava invasão de privacidade e apropriação indébita da vida do artista, de acordo com os artigos 20 e 21 do Código Civil. Na segunda, pedia a condenação de Araújo a dois anos de prisão por crimes de injúria e difamação. Nos dois casos, o Rei argumenta que sua história é patrimônio pessoal, e Araújo se apropriou indevidamente da mesma para obter vantagens pessoais.
Na petição, os representantes de Roberto apontaram 14 passagens do livro que, supostamente, invadiam sua intimidade: o acidente que sofreu aos 6 anos, perdendo uma das pernas, os tiros que deu contra supostos marginais, na Avenida São João, em São Paulo, em abril de 1966, quando portava ilegalmente uma arma, os namoros que teve com a cantora Maysa e a atriz Sônia Braga, além de detalhes sobre a morte da mulher Maria Rita. “Note que não me acusaram de calúnia, apenas precisavam justificar a ação e pegaram alguns trechos do livro”, diz Araújo.
A editora divulgou nota que não recolheria o livro. No entanto, em 22 de fevereiro, nova medida judicial proibiu a venda da obra, mas reduzia o valor da multa para R$ 50 mil por dia. A Planeta, então, decidiu interromper a distribuição da biografia, mas, como parte dos exemplares já estava nas livrarias, a editora pedia um tempo para recolhê-los. Os advogados de Roberto Carlos consideraram a medida uma desobediência à determinação do juiz, e o caso que rolava no Rio de Janeiro, passou para São Paulo.
Araújo foi defendido pelo “corpo jurídico” da Planeta, e naquele 27 de abril de 2007 o juiz Tércio Pires entendeu que a biografia devassava a vida do artista. “Naquele momento, percebi que havia sido negado a mim dois direitos sagrados da Justiça: um advogado de defesa e a imparcialidade do juiz. Os advogados que estavam ali cuidavam exclusivamente da editora, e não tive como me defender.” Em outras palavras, a Planeta entregou a obra em troca da retirada do processo contra a editora e o autor. Mas Araújo nunca aceitou o acordo e até hoje briga para ter o livro de volta às livrarias.
Quase 11 mil exemplares da biografia do Rei que estavam no estoque da Planeta foram levados por um caminhão enviado pela assessoria jurídica de Roberto Carlos no dia seguinte à decisão do juiz – a tiragem foi de 60 mil volumes, sendo que 47 mil foram vendidos e 2,5 mil enviados aos jornalistas especializados.
A resposta ao bloqueio judicial chegou poucas horas depois: a íntegra do livro foi jogada na internet para ser baixada gratuitamente. Araújo acredita que essa foi uma reação de pessoas indignadas com o cerceamento do seu livre direito de expressão. Os livros apreendidos continuam no galpão que Roberto Carlos mantém na cidade de Diadema, região metropolitana de São Paulo.Segundo Araújo, os advogados de Roberto anunciaram, durante a audiência, que os exemplares apreendidos seriam queimados. Depois de criticado, inclusive pelo escritor Paulo Coelho, o cantor recuou.
Roberto Carlos em Detalhes é resultado de uma competente pesquisa. Fã de MPB, Araújo sempre se sentiu incomodado com o fato de composições mais populares, chamadas de brega, não despertarem o interesse da academia e fossem historiografadas como fenômenos de massa. Apesar de não fazer parte desse grupo, ele acreditava que o mesmo acontecia em relação a Roberto Carlos. Em março de 1990, para escrever sua monografia de conclusão do curso de Jornalismo, Araújo começou a levantar material em jornais e revistas, além de fazer entrevistas. Aos poucos, direcionou seu trabalho para duas pesquisas: a história da música brega e a censura que seus compositores sofreram durante a ditadura, e uma biografia que mostrasse a importância de Roberto Carlos para a cultura brasileira. A primeira rendeu sua dissertação de mestrado e o livro Eu Não Sou Cachorro Não (Editora Record, 2002).
Quatro anos depois, veio Roberto Carlos em Detalhes. Quando o contrato para lançamento do livro foi assinado com a Planeta, em 2003, o editor Pascoal Soto telefonou para a assessoria do cantor. “Quem trabalha com Roberto nunca diz não, só que não diz sim.” Ou seja, protela, adia qualquer decisão. Alega que o artista está ocupado, em turnê e pede para entrar em contato depois. “Acredito que achavam que a biografia só existiria se ele concordasse. Portanto, não havia o que se preocupar se continuassem me enrolando. E devem ter ficado impressionados com o volume e a força que a biografia ganhou.”
A reportagem entrou em contato com a produtora de Roberto Carlos, a DCSet Promoções, para ouvir a versão do cantor. Foi orientada a procurar o jurídico do artista, por e-mail. A resposta veio dias depois: “Preferimos não nos pronunciar sobre o assunto”. Na TV, no programa Fantástico de 27 de outubro, Roberto Carlos afirmou: “O artista vive uma história, a da sua vida, e se torna dono da mesma. Não é justo que um biógrafo a conte e passe a ser proprietário”.
O POETA DA VILA
O pesquisador, compositor e violinista Carlos Didier, 58 anos, há tempos é apaixonado por Noel Rosa. “Fiquei fascinado por ele quando tinha 11 anos. Em 1975, cheguei a fundar um grupo, o Coisas Nossas, para interpretar os sambas dele.” Entre 1979 e 1980, passou a investigar a vida e a obra do autor de clássicos do samba brasileiro. Entrevistou importantes personagens, como Ismael Silva (parceiro de Noel, em 18 músicas), Cartola, Nássara, Braguinha, Marília Batista, Ademar Casé e amigos da Vila Isabel.
A partir de 1981, Didier se uniu ao jornalista carioca João Máximo para terminar a pesquisa, que recebeu o título Noel Rosa − Uma Biografia, lançada em 1990 pela Editora Universidade de Brasília. Quatro anos depois, porém, os autores decidiram cancelar o contrato com a UnB, alegando não pagamento de direitos autorais. Em 1997, a editora José Olympio se interessou pela reedição da obra, mas foi vetada pela viúva de Noel, dona Lindaura, que não aceitava a revelação de “casamento sem amor” entre ela e o compositor.
Apesar da negativa, a viúva não entrou com ação para proibir o livro – prometeu que faria, caso houvesse uma nova edição. Ela morreu em 2001, mas só em 2007 os autores e a Editora UnB foram processados por danos materiais (uso de fotografias) e morais (publicação dos suicídios da avó e do pai). Quem moveu a ação foram duas sobrinhas-netas de Noel. “Os autores, em clara demonstração de desprezo para com a família de Noel Rosa, para com sua dor, trazem ao conhecimento do público relatos da mais restrita privacidade dos seus familiares”, justificaram os advogados.
O livro, então, ficou parado até o começo deste ano, quando as sobrinhas desistiram do processo, alegando “falta de condições financeiras”. Nem por isso a novela em torno da biografia do poeta está encerrada. Agora, as herdeiras de Noel e o coautor João Máximo negociam o relançamento da obra com a editora Companhia das Letras. Carlos Didier não concorda: prefere a José Olympio. As herdeiras moram em Nova York e não foram localizadas para comentar o assunto.
Didier diz não sentir nenhum desapontamento com o episódio. “O livro está editado com o sebo UnB, o que não é pouca coisa.” Para ele, a discussão em torno da proibição de biografias é uma oportunidade valiosa para o autoconhecimento do País: “Somos avessos ao conhecimento de forma geral, e a questão das biografias é apenas a ponta do iceberg. A meta da nossa elite é o controle da informação, não a produção de conhecimento. Chico, Caetano e Gil são a elite. Ou não?”.
Para ele, fazer alguma modificação no texto original para liberar o livro é algo impensável. Mas admite fazer correções. “Há erros na pesquisa, como no caso de Orestes Barbosa, que não era xenófobo, mas um brasileiro que gostava muito do Brasil. O que só ficou claro depois, com as pesquisas que fiz para meu livro Orestes Barbosa, Repórter, Cronista e Poeta.” Também uma biografia não autorizada, a de Orestes Barbosa foi lançada pela Agir, em 2005, e não sofreu represália.
Enquanto não se resolve o nó feito entre as herdeiras e João Máximo e Didier, o leitor aflito pode conseguir um exemplar de Noel Rosa – Uma Biografia em algum sebo. Pode também se assustar com o preço: R$ 1 mil, em média.
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