O incansável Scliar

Dos escritores brasileiros consagrados, talvez apenas Luis Fernando Veríssimo seja tão prolífico quanto foi o seu conterrâneo Moacyr Scliar. Durante anos, Scliar manteve a invejável média de um livro por ano. Aos 73 anos, o escritor participava de feiras e bienais dedicadas ao livro com a vontade de um estreante. Frequentemente era escalado para os principais eventos literários do País para falar sobre os mais diversos aspectos da literatura. Com seu jeito espontâneo e culto, suas concorridas palestras se transformavam em verdadeiras aulas (na melhor acepção do termo) sobre literatura.
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Do romance ao conto, passando pela crônica, Scliar sempre tinha uma boa história para contar sobre os gêneros que praticou como poucos em quase 50 anos dedicados à literatura. Autor de romances premiados, como os opostos O centauro no jardim e Sonhos Tropicais (adaptado para o cinema), Scliar transitou com a mesma competência pela literatura de tradição realista, de escritores que admirava do século 19, como Balzac, e pela ficção fantástica, tendência que dominou a literatura latino-americana nos anos 1960, quando Scliar estreou como escritor com a coletânea de contos O carnaval dos animais (1968) – livro que ele considerava sua real estreia.

Nascido no coração judaico de Porto Alegre, no bairro Bom Fim, Scliar fez de suas raízes matérias-prima para sua ficção. Tema que lhe rendeu romances como O ciclo das águas, A guerra no Bom Fim e A mulher que escreveu a bíblia. Livros que transformam Scliar em uma referência não-oficial do judaísmo no Brasil. Romances que também trazem outro traço marcante da literatura do escritor: a fusão entre História e ficção. Em seus romances mais célebres, Scliar se utilizou da história do Brasil, principalmente de sua colonização, como pano de fundo para os relatos ficcionais.

A velocidade com que ele criava ficção muitas vezes era vista, por parte da crítica especializada, como um excesso do escritor, que dificilmente passava ano sem publicar. Mas Scliar era um artista inebriado por sua arte. Os contos que escrevia no jornal Folha de S. Paulo, a partir de histórias reais publicadas no próprio jornal eram sintomáticos de como o escritor encarava a literatura: como algo atrelado ao nosso cotidiano e palpável a qualquer cidadão. A literatura, para Scliar, era onipresente, estava onde havia vida. Tudo poderia se transformar em uma boa história. Talvez por isso não pestanejava em aceitar sugestões de editores para novos livros, o que, de certa forma, fazia de Scliar um estranho no ninho da literatura brasileira, na qual a escrita por encomenda ainda é um pecado grave.

Scliar, com sua literatura acessível, mas robusta, também conseguiu agradar dois públicos distintos e, aparentemente, antagônicos: leitores e críticos. Ao mesmo tempo que ganhou prêmios e mais prêmios, era um best-seller. Scliar também foi um dos escritores mais versáteis do nosso tempo: escrevia crônicas e resenhas literárias em jornais e revistas, praticava quase todos os gêneros literários em livro, era um assíduo frequentador de debates, em todas as mídias, e se dedicou ao magistério (foi professor na Universidade de Brown, nos Estados Unidos) e à medicina. Jogava nas 11, batia o escanteio e cabeceava.

Em uma entrevista sobre o método de trabalho de escritores brasileiros, Scliar me explicou de onde tirava tantos e variados temas para seus livros. “As ideias são variadas por causa de minhas múltiplas experiências: sou brasileiro, sou gaúcho, sou filho de imigrantes, sou médico de saúde pública, militei na política…”

Autor de livros que invocam figuras históricas, como Oswaldo Cruz (Sonhos Tropicais), Scliar, no entanto, nunca deixou que a pesquisa histórica “enfraquecesse” a ficção. “Faço pesquisas, mas não para transcrevê-las, o que seria um erro, e sim para me ‘impregnar’ do clima histórico e psicológico de um lugar, de uma época. Um mínimo de veracidade é necessário”.

Membro de nossa instituição literária mais pomposa, Scliar era suficientemente mortal para dialogar com seus pares menos famosos. Em entrevistas, fazia questão de dizer que conhecia e lia seus contemporâneos, a nova geração, principalmente, mas não só aqueles que saíam de seu Estado, o Rio Grande do Sul. Era possível ler textos de Scliar sobre o último romance de Nick Hornby ou as obras completas de Platão. Sempre com o mesmo conhecimento de causa.

Scliar era um escritor popular, adorado pelo público. Um escritor que soube a medida certa entre linguagem acessível e a criatividade narrativa, à qual todo escritor se vê obrigado a buscar. Por isso conquistou em vida respeito de seus pares e muitos leitores. O máximo que um escritor pode querer.

Inquietação criativa


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