O jardim das delícias terrenas

No dia 31 de março de 1520, Fernão de Magalhães desembarcou na gelada Bahía de San Julian e estabeleceu contato com os tehuelches. Eram homens grandes. Andavam com o corpo enrolado em peles. E também os pés, como grandes patas. Magalhães assim os chamou de Patagones, relata Pigafetta, seu escrivão. Até hoje, persiste em nossas mentes a imagem de homens grandes numa terra longínqua.

Paco Sanchen é um tehuelche, puro sangue. Patagão, nasceu em Puerto Chacabuco, Chile. Lá, o tempo é sempre frio, chuvoso e ventoso. O inverno é gelado e muito escuro. Ademais, há terremotos na região. Em Puerto Chacabuco, se vêm poucos homens pelas ruas, nenhuma mulher. A vida é duríssima. Por lá param os navios que vão para a geleira San Rafael, Punta Arenas, Ushuaia e os que passarão o Cabo Horn, rumo ao Atlântico. Paco trabalhou anos nas operações do porto. Embarque e desembarque. Um trabalho pesado, barulhento e molhado. Aquilo era o inferno.

No dia 21 de abril 2007, veio o grande terremoto. Sete na Richter. A Terra rosnou. Como nunca. O mundo tremeu e tudo caiu. Porque ali não havia paz, em poucas semanas ele embarcou de taifeiro em um navio da McCormack. Rumo à Flórida. Com escalas na Argentina e no Brasil.

No navio, fez muitas perguntas e, por fim, um único plano. Informado e resoluto, depois de trinta dias, pediu adiantamento. Iria fazer compras em Fortaleza. Desceu e foi pra Jericoacoara. De jardineira. No navio, disseram que ele havia sido assassinado e zarparam.

Ele chegou em Jericoacoara ao entardecer. Encantado, viu o povoado cheio de velas, coqueiros e música. Gente alegre descalça na areia cálida. Gente de toda parte do mundo. Um manto de felicidade cobria a pequena vila. Nunca viu tanta mulher. Aliás, nem sabia que havia tanta mulher. Ainda mais daquele jeito.

Sentiu que havia acertado. Talvez houvesse para ele um lugar ali. Ficou encantado com as praias, as dunas, a brisa e as lagoas. E o verde das lagoas? E a temperatura da água? Ademais, conviviam pessoas, cachorros, gatos, vacas e jegues. Todos soltos, felizes em harmonia. O paraíso.

Em poucos meses, arrumou seu canto no Beco Doce. Fazia ceviche para os restaurantes. Andava pelas praias, dunas e lagoas. Nadava. Todo dia, irmanado, aplaudia o pôr-do-sol. Viveu um ano em paz.

Mas, um dia, aprendeu massagem com Melina, a grega. O olho dela brilhou quando soube que ele era um patagão. Na hora, ele viu que havia magia naquilo. Havia aura. Não demorou muito e pendurou em sua porta a placa Patagonische Massage – Native Masseur. Até um japonês entenderia aquilo. Foi tiro e queda.
Em pouco tempo estava lotado. Das dez às sete. O patagão atendia o imaginário – não só o imaginário – de espanholas, francesas, alemãs, suecas e holandesas. Uma atrás da outra. Não dava mais para ver o pôr-do-sol. Nem lagoas, nem praia, nem duna. Ademais, bebia toda noite. Caipirinha. Uma atrás da outra. Começaram os rolos, os rabichos e as encrencas. Ficava arrebentado.

Aconselhado pela vizinha, procurou auxílio do Barão, um filósofo, consultor espiritual, que morava na Principal. O patagão falou de seu passado, sua vida e seu problema. Que vergonha, dizer que tinha problema! O Barão ouviu tudo serenamente. Puxou um Petrarca da prateleira e leu: quem busca a paz, que evite a mulher, fonte perpétua de conflito e aborrecimento. Mas, o Barão não parou aí. Emanou sapiência por mais meia hora. O patagão entendeu tudo.

Hoje, ele está bem. Não pensa mais em paz, inferno e paraíso, estas bobagens. Só atende três por dia. Toma Tequila Sunrise e dorme cedo.

Fazer o quê?

*Marcos Rodrigues é engenheiro civil, professor titular da Escola Politécnica da USP e dedica-se também à literatura.


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