Ainda que determinados setores da sociedade e alguns pessimistas tradicionais aleguem o contrário, é inegável que o Brasil vive o maior período democrático de sua história: 25 anos, iniciado na eleição presidencial de 1989, quando praticamente a totalidade da população do País – excluída dos processos decisórios em quase toda a história brasileira – pode escolher o seu governante nas urnas. De lá para cá, vários episódios fortaleceram o espírito democrático, como as duas manifestações de rua significativas deste espaço de tempo, os Caras Pintadas e os protestos de junho de 2013; o impeachment do presidente Fernando Collor de Melo, em 1992, com a sucessão para seu vice, Itamar Franco, feita de forma segura; pequenos e grandes escândalos de corrupção, principalmente, na esfera legislativa; o retorno das Forças Armadas para os quartéis e a presença cada vez maior de movimentos sociais nas discussões políticas.
Na edição de outubro de Brasileiros, você, leitor, vai ler uma reportagem completa sobre as características da nossa democracia, bem como o que podemos esperar do futuro. A eleição do mês que vem será a sétima consecutiva de forma direta, fato inédito na história do Brasil, mesmo depois de 192 anos de independência e 124 de república.
Abaixo, o doutor em História pela UNICAMP e analista da Assembleia Legislativa de São Paulo, Dainis Karepovs, um dos ouvidos por Brasileiros, fala sobre o assunto:
Brasileiros – Dá pra dizer que vivemos o maior período democrático da história do Brasil, contabilizando eleições programadas e sufrágio?
Dainis Karepovs: Sim, é possível. A nossa democracia ainda sofre com alguns percalços, eu diria, mas vive uma solidez nunca antes vista, e isso é um fato. Seria bom – obviamente – que algumas figuras pudessem ser trocadas naquele dia 14 de novembro de 1889 (risos). Mas eu diria que, em nossa história, sempre convivemos com essas chamadas revoluções, exceção feita a 1964, que nós dizemos que são momentos de transição a frio. A gente nunca teve algo como uma Revolução Francesa, algo onde as nossas elites colocassem alguns limites que não pudessem ser cruzados. A gente nunca colocou no chip das elites essas coisas, então as mudanças sempre foram feitas a frio, negociadas lá em cima. Isso vem lá de 1889, depois aconteceu em 1930, o fim dos militares é bastante assim também, dando a impressão que as coisas mudaram, mas não mudaram tanto. Esse período que a gente está, efetivamente, deixou algumas coisas para trás, em termos de estrutura que havia naquela época pré-64. Em particular eu vejo o papel das Forças Armadas, aquela coisa de golpe militar, ainda que tenha muita gente especulando essa possibilidade usando o Judiciário como uma nova forma de tomar o poder, mas mesmo assim não é uma coisa que prospere muito aqui no Brasil. Na época do Mensalão muito foi falado sobre essa questão, acharam que isso iria prosperar depois com a figura do Joaquim Barbosa, dos caras que estavam por trás dele, usando o Judiciário como forma de avançar sobre os outros poderes e criar constrangimento, como aconteceu no Paraguai, com Fernando Lugo, ou em alguns países da América Central. Mas essa prospecção não durou muito, e isso, sob certo ponto de vista, é um avanço da nossa sociedade. Também acho que a questão do desenvolvimento econômico e, por consequência, material, do povo brasileiro nos últimos 10, 15 anos, fez com as pessoas também tivessem um acesso muito maior a informação, e então elas começaram a se dar conta de que as manipulações já não eram tão fáceis de realizar como antigamente. As coisas não são mais como eram em termos de mudanças de regime com bases apenas em ameaças veladas. É um ganho enorme que a gente conquistou nesse período de democracia atual, que vem desde a Constituição de 1988 até hoje.
Brasileiros – Além das eleições programadas e do maior número de pessoas votando em seus candidatos, o que mais configura este período como o mais democrático da história brasileira?
Dainis Karepovs: Primeiramente, as instituições são sólidas e, portanto, os rituais que permitem que essas instituições tenham continuidade são permanentes. Isso é importante para a maior parte das pessoas, mesmo que certos setores pressionem por uma maior rapidez dessas instituições se baseando no que chamam de tempos modernos. Logicamente, os poderes têm seu tempo, até para refletirem sobre as coisas com maturidade. Mesmo que os processos precisem ser mais ágeis, não pode substituir os momentos de discussão. Alguns setores – sob esse pretexto – acham que precisam ser criados mecanismos mais rápidos de discussão, quando na verdade eles querem subtrair essa parte do processo. Desses argumentos surgem as ideias de discutir mais rapidamente as leis no Legislativo, por exemplo, e outras bobagens que ouvimos há muito tempo. Mas para a população, especificamente, a imagem forte das instituições e a periodicidade com que se realizam eleições são muito importantes. Associado a isso, há ainda uma solidez econômica que alcançamos, porque por mais que exista a tentativa de desatrelar uma coisa da outra, a economia mexe com o dia-dia das pessoas e, se elas não têm uma estabilidade material, elas não vão conseguir desassociar o insucesso financeiro da política, ainda mais em um mundo globalizado como o que vivemos hoje. Assim, elas tendem a considerar muito suas situações materiais quando vão observar os rumos do País em qualquer sentido. Eu acho que a democracia brasileira conseguiu – nesses últimos quinze, vinte anos – fazer isso acontecer. Claro que é importante lembrar que, num primeiro período, tivemos uma turbulência no governo Fernando Collor de Melo, um pouquinho no mandato do Itamar Franco, pegando também algo do Fernando Henrique Cardoso no poder, que mesmo com o Plano Real teve que pedir ajuda ao FMI, mas nos últimos 15 anos as atitudes sólidas dos governos fizeram com que os brasileiros atingissem esse nível. A relação entre estabilidade material e as instituições sólidas, portanto, são determinantes para a forma como as pessoas vão viver o espírito democrático. Especificamente sobre estas instituições, é evidente que elas precisam ser aperfeiçoadas, como o Judiciário, por exemplo, onde membros do STF são indicados pela presidente, aqui em São Paulo tem juízes de tribunais de contas que são indicados pelo governador, o financiamento de campanhas eleitorais por empresas, quem vai fazer as reformas políticas, já que os deputados não vão cortar a própria carne, enfim, essas coisas precisam ser melhoradas. De qualquer maneira, nós temos uma situação razoavelmente boa.
Brasileiros – Comparado com aquele período democrático entre 1945 e 1964, há alguma semelhança?
Dainis Karepovs: Na verdade, eu diria que a gente aprende por manuais que aquele período não era tão democrático quanto se supõe. Primeiro porque não havia completa liberdade política, já que os partidos políticos não eram livres. Os partidos de esquerda, por exemplo, eram clandestinos, e em decorrência disso, o DOPS funcionava a todo vapor, mesmo antes do golpe militar de 1964. A atuação da polícia política era grande, tanto no sentido de espionar como de repressão brutal a esses grupos, quase do mesmo modo em que ela atuava no Estado Novo. Esse período democrático pode ser lembrado apenas pelas eleições para presidente, algo que não tinha na ditadura do Getúlio Vargas, mas esse “democrático” era só algo para efeitos didáticos, porque para efeitos práticos não era o que se vivenciava. Hoje há legalidade de partidos, as instituições funcionam, os analfabetos votam, o que não era permitido entre 1945 e 1964, há também, mesmo em menor volume, um Judiciário que funciona melhor, sem tantas alianças políticas como naquele tempo, ainda que a gente veja um Judiciário que funcione com amizades e que seja repleto de outros problemas, mas que transmite um sentido bem mais acentuado à palavra ‘justiça” comparado com aquela época. O Judiciário no chamado “período democrático”, ou seja, de 45 até o golpe, existia realmente para defender os interesses de poderosos, e hoje ele consegue dar conta de suas tarefas com um senso mais republicano. Para alguns poderes, como o Legislativo e Executivo, existem políticas de transparência de seus atos, outra distinção daquele tempo, ainda que isso não aconteça no Judiciário atual, que continua sendo uma caixa-preta.
Brasileiros – O Judiciário brasileiro tem problemas?
Dainis Karepovs: O Judiciário brasileiro ainda precisa cruzar a madrugada do dia 14 para o dia 15 de novembro de 1889, porque continua no tempo do império português. Mesmo que seja difícil não apontar uma série de avanços no seu funcionamento, esse comportamento imperial ficou escancarado com o Joaquim Barbosa. É inimaginável ver alguém como ele sendo a imagem do poder judiciário, exalando rancor o tempo todo, não pode ter um cara como ele tomando as decisões. Eu acho que o Lula deve se arrepender até a medula em ter escolhido aquele cara. É inacreditável como um cara daquele possa ser a principal figura do Judiciário. Ele tem limitações técnicas, eu ouço depoimentos de pessoas que apontam as limitações, que falam como ele era suprido por assessores, mesmo que as pessoas não percebessem isso. Também a forma como ele conduzia os trabalhos. Veja isso: o cara se aposenta e no dia seguinte está fazendo consultoria para trabalhar nas brechas do sistema que ele conhecia por ter trabalhado lá dentro. É um horror! O Judiciário precisa realmente cruzar a madrugada do dia 14 para o dia 15, porque ainda está no dia 14.
Brasileiros – Associando o Judiciário com eleições, o fato do partido da Marina Silva não ter sido legalizado para o pleito deste ano configura uma dessas arbitrariedades?
Dainis Karepovs: Não acho. O partido da Marina – até onde eu posso perceber – foi resultado da dificuldade que ela teve de organizar seus próprios aliados, sua militância, uma dificuldade dela e do grupo dela. Não pareceu ser algo com o Judiciário, que até me pareceu ser republicano neste episódio. Ela teve o prazo dela e não cumpriu.
Brasileiros – Você estava falando dos partidos de esquerda antes do golpe de 1964. Sendo clandestinos, como era a representação deles na sociedade?
Dainis Karepovs: Era basicamente o Partido Comunista, porque os outros eram muito pequenos. A forma utilizada era eleger representantes por meio de outras legendas, em acordos que ele fazia. No caso do Partido Comunista, que tinha poucos parlamentares, cerca de três ou quatro, eram sempre escolhidos por partidos pequenos, mas legais perante a lei. Entre esses haviam o Marco Antônio Coelho, o Roberto Morena, e outros caras assim. O Partido Comunista teve uma atuação legal no Brasil de 1945 até 1947, inclusive com representação na Assembleia Legislativa de São Paulo, quando entrou na clandestinidade. Em alguns casos, a Justiça Eleitoral se dava conta disso e impugnava algumas candidaturas, mas em outros períodos o controle era menos rígido. No governo de Juscelino Kubitschek, por exemplo, ele até retirou alguns processos que estavam em curso contra comunistas.
Brasileiros – O Partido Comunista entrou na clandestinidade no governo Dutra, então?
Dainis Karepovs: O período Dutra foi o pior. Do Dutra ao Getúlio, aliás, que foi até mais sossegado nesse quesito, apesar da oposição do Partido Comunista. Mas nessa época estava começando a Guerra Fria, quando o Brasil se alinhou com os Estados Unidos. Nesse período todo, o Juscelino e o Jango foram mais tranquilos em relação ao Partido Comunista: todo mundo sabia onde era a sede do partido, não pegaram muito no pé, deixaram o partido atuar mais abertamente. Agora, com o Dutra foi uma repressão brutal. Os comunistas tinham que se esconder…
Brasileiros – E voltaram à legalidade por volta de 1985?
Dainis Karepovs: Sim. Quase quarenta anos depois. Na verdade, o Partido Comunista foi fundado em 1922, ficou alguns meses na legalidade, mas era um “partideco”, logo depois aconteceram as rebeliões tenentistas e já foi declarado ilegal, tentou voltar em 1927, mas formalmente voltou a ser legal apenas em 1945.
Brasileiros – Em comparação o momento entre 1889 e 1930, obviamente as diferenças são mais claras. O que aconteceu democraticamente naquele período?
Dainis Karepovs: Esse período foi marcado por uma aparente liberdade de exercício de cidadania, com o direito de escolher o presidente. O Brasil vivia, nos Estados, uma chamada “política dos governadores”, que foi criada pelo paulista Campos Salles, um dos presidentes da Republica. Era uma política que usava os partidos nos Estados para conseguir maiorias no Congresso Nacional e governar o País. Não havia partidos nacionais, mesmo depois de 1930, exceção feita ao Partido Comunista na década de 20 e aos Integralistas, entre 1930 e 1937. Até este período, o Brasil funcionava com partidos estaduais. Nesse período, que é chamado de “República Velha” ou “Primeira República”, que vai até 1930, só havia partidos estaduais no Brasil. Por conta disso, o controle era muito grande nas eleições, o que não deixava de ser uma continuação do que acontecia no Império. Na República Velha, as eleições eram repletas de fraudes requintadíssimas: primeiro que o voto não era obrigatório; segundo que o voto era distrital e majoritário, ou seja, vencia quem tinha mais votos; terceiro que o eleitor chegava com a cédula preenchida de casa, com o nome do candidato impresso, todo mundo via em quem ele ia votar e não é difícil imaginar que esse eleitor já vinha para a urna com a pressão do coronel, do caudilho político da região dele. Quando ele colocava a cédula na urna, o papel caía na ordem e, em seguida, o eleitor assinava uma lista pela hora de chegada. Então, quando abriam a urna, depois da votação, era possível saber quem tinha votado em quem. Quem tinha “feito xixi para fora”, portanto, sofreria as consequências. Ainda havia tipos de fraudes como a de mortos que apareciam para votar, por exemplo, além da proibição de votos para analfabetos e mulheres. Assim, somente candidatos que os partidos queriam eram eleitos. Tem uma história curiosa que foi contada por um escritor paulista chamado Menotti Del Picchia, escolhido pelo Partido Republicano de São Paulo para ser candidato distrital. Ele foi viajar de trem com o Júlio Prestes, candidato ao governo do Estado, pelo interior, e de repente o Prestes chamou o ajudante da ferrovia e mandou parar o trem. Desceram os dois e o Júlio disse pro Menotti: “Pisa aqui porque esse é o seu distrito eleitoral, e você não poderá ser acusado de nunca ter colocado os pés no seu distrito”. O cara nem sabia qual distrito era aquele, já que ele era de São Paulo. E foi eleito. Isso está contado nas memórias dele. É um bom retrato de como funcionava a política da época.
Brasileiros – E a dinâmica era diferente, com voto facultativo, por exemplo.
Dainis Karepovs: Pois é. As pessoas não se interessavam por eleições, e como os partidos precisavam alistar seus eleitores, o processo era muito complicado. Em São Paulo, foram criados mecanismos de prova e contraprova com uma quantidade excessiva de documentos obrigatórios para se alistar. Os operários, por exemplo, tinham dificuldade, porque a entrega dos documentos acontecia no horário de trabalho e os pedidos eram rígidos: um comprovante de residência não era apenas uma conta, mas uma comprovação de que a casa era da pessoa ou então, se fosse alugada, o dono do imóvel precisava emitir outro documento dizendo que aquele cidadão pagava o aluguel da casa. Era uma dificuldade justamente para não conseguir o título de eleitor. Só quem queria mesmo ser eleitor conseguia. Exceção feita, é claro, para quem fosse votar no Partido Republicano Paulista, por motivos óbvios.
Brasileiros – Até saindo do tema, mas foi aí que o interesse do brasileiro por eleições diminuiu aos níveis de hoje, onde cerca de 50% se mostram distantes dos processos decisórios?
Dainis Karepovs: Pode ser uma raiz. Eu acho que fazer as pessoas se interessarem por política não é muito fácil, principalmente por causa da imagem suja que a política tem, onde as pessoas supostamente apenas roubam e trapaceiam. As pessoas preferem se afastar do que elas consideram ruim. A educação formal que é concedida nas escolas ajuda nesse distanciamento, na forma como os professores se referem ao tema, por exemplo. Na minha escola, lá em 1965, os professores já falavam muito mal de política. Política também está relacionada com ação, porque ficar parado, esperando cair alguma do céu, dentro da política, não significa nada. A tendência natural do ser humano é a acomodação, e na política isso não é possível. Você tem que se mexer, agir, mudar. Mudar, principalmente, que faz parte da política, é sempre algo mais complicado para as pessoas.
Brasileiros – É verdade que o Brasil foi um dos últimos países a permitir o voto de mulheres?
Dainis Karepovs: Não, não. Outros países permitiram o voto feminino depois do Brasil. A França foi só depois da Segunda Guerra Mundial, por exemplo. O Brasil foi em 1933, mas com restrições: as mulheres tinham voto facultativo, exceto para funcionárias públicas. Esse era o “pulo do gato” do voto feminino no Brasil. Em São Paulo teve um episódio gozado: quando se proclamou a República e, logo em seguida, aconteceu uma das constituintes, tentaram dar o voto para as mulheres, mas a permissão foi negada. Nos Estados, porém, se entendeu que, como o Brasil seguia o modelo federativo dos Estados Unidos, eles teriam autonomia para fazer o que quisessem, e aí em São Paulo começou essa discussão com maior força. Em Santos, a constituição chegou a permitir o voto feminino, mas alguns cidadãos da cidade se revoltaram e mandaram uma representação para a Assembleia Legislativa de São Paulo, pedindo que a constituição santista fosse alterada. Tornou-se uma batalha jurídica vencida pelos homens, com argumento de que a constituição do Brasil dizia que “têm direito ao voto os cidadãos”, e não “cidadãs”. Veja o argumento rasteiro, de quinta categoria, para mudar. E daí só em 1933 que a mulher foi autorizada a votar.
Brasileiros – Porque tão pouco tempo de democracia em um País que é independente desde 1822 e uma República desde 1899?
Dainis Karepovs: Nós somos um País curioso. A nossa independência não foi igual a da América Espanhola, onde correu sangue, mas sim um acordo entre pai e filho. A gente construiu um País que se sustentou, durante a primeira parte dessa independência, com trabalho escravo. Já se nota nesta época uma raiz da desigualdade, porque havia a monarquia, ao contrário dos nossos vizinhos, que já eram republicanos, e então vinham os agregados, chamados posteriormente de barões, e então os agregados desses barões, que eram amigos deles, e aí vem o povo e os escravos. Ou seja, não havia democracia com essa estrutura social. Quando chega em 1888, em 13 de maio, depois de várias tentativas de acabar com a escravidão, mais encenações do que prática, a escravidão acaba e não é feita uma reforma agrária. Daí aquela massa de milhões de ex-escravos vai para as cidades, sem terra, sem educação, fazendo com que eles continuem sendo “não cidadãos”, assim como eram quando estavam na escravidão. Durante décadas, continuaram tomando pancada: foram perseguidos pela polícia, foram morar em favelas eram óbvios suspeitos de qualquer coisa. Nos processos decisórios, as linhas de corte também permaneceram, como a negação de voto para analfabetos. Se você pegar o índice de analfabetismo do Brasil até cerca de 1940, varia de 70% para 50%, ou seja, metade do País não sabia ler nem escrever, sem contar que a população ainda era baseada no campo. Portanto, a massa de “não cidadãos” brasileira é imensa neste período, pessoas sem alfabetização, sem direitos, enfim. É difícil falar em democracia num ambiente em que não há condições sequer de lutar, de estrutura material e legal de reivindicar, os conjuntos de leis que existiam restringiam tais direitos, a polícia protegia poderosos e não garantia direitos e o Judiciário agia da mesma forma. Os entraves eram muito grandes para ter, efetivamente, uma democracia plena, mesmo que na Constituição estivesse escrito que “o poder emana do povo” ou qualquer coisa absolutamente formal como esta, e que houvesse alguns traços de modernidade, como uma Justiça Eleitoral ou o voto para mulheres. Na prática, não funcionava.
Brasileiros – O pouco tempo de democracia se relaciona com alguns dos problemas atuais da política brasileira, como a corrupção, por exemplo?
Dainis Karepovs: Corrupção é uma coisa que sempre vai existir, porque faz parte da tendência do ser humano. A diferença nossa e de outros países que sabem lidar com isso – e que também convivem com problemas de corrupção – está no Judiciário. O nosso Judiciário é um problema. Nestes países, os corruptos sabem que o risco de serem pegos e punidos é maior, enquanto no Brasil se você tiver grana e bons advogados, se livra. O pessoal do Mensalão de Minas Gerais, por exemplo, consegue usar artifícios jurídicos para ficar prorrogando os julgamentos até eles chegarem aos 70 anos e, então, serem liberados. Hoje o que nos diferencia do que existia anteriormente é que o que chega até a porta do Judiciário é mais eficiente, ou seja, a parte policial. Quando chega na parte judicial, o conjunto de leis é tão grande e tão confuso que as coisas não andam. São nós que precisam ser desatados. De certo modo, isso contribui pouco para obscurecer a imagem da nossa democracia, ainda que tenha melhorado muito.
Brasileiros – Esse período democrático do Brasil está inserido dentro de um contexto democrático latino-americano ou somos um caso à parte?
Dainis Karepovs: Tem semelhanças. Por exemplo: no Chile, o Augusto Pinochet conseguiu fazer um sistema econômico parecido com o dos Estados Unidos, e até hoje a presidente Michelle Bachelet tem dificuldade para implantar um sistema eficiente de ensino público. A tradição de ensino público que acabou com a ditadura militar do Pinochet e transformou todas as escalas educacionais em empreendimentos privados, assim como é nos EUA. O que eles conseguiram efetivamente na parte política foi uma transição a frio, tirando o Pinochet e fazendo acordos com ele para que ele fosse senador vitalício, por exemplo. Os governos posteriores chilenos educaram as novas gerações para não repetirem as políticas do período militar, e isso é visível no fato de todos os prédios de tortura ou prisões daquela época se transformaram em museus abertos para mostrar o que aquela época representou para o país. No Brasil não aconteceu isso. A gente vê na Bolívia, no Equador, na Venezuela, um momento em que o continente está mais a esquerda, com graus variados, obviamente porque sofremos muito com modos mais variados de neoliberalismo, com mais força na Argentina, eu diria. As pessoas cansaram disso e colocaram para fora todas essas coisas fazendo novas experiências. De um modo geral, esses novos governos melhoraram a vida das pessoas, mas o caso mais significativo é no Brasil, onde uma massa acentuada de pessoas ascendeu socialmente e percebeu que esse crescimento estava associado com a política, embora a gente sempre veja – em períodos eleitorais – a imprensa fazendo tentativas de manipulação. Mesmo assim, a população se dá conta de que esse passado deixado para trás estava ligado a uma concepção político-econômica de um período anterior ao que estamos vivendo.
Deixe um comentário