O labirinto da felicidade

A vida da atriz Luciana Vendramini está cor-de-rosa. Ela está feliz. Felicidade essa que, por um momento em sua vida, achou que nunca mais sentiria. Luciana sofreu durante anos de Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC) e, assim como alguns dos personagens desta matéria, encarou a doença de frente e reaprendeu o significado da palavra felicidade. Em setembro do ano passado, Luciana comprou os direitos de Legalmente Loira, musical que está fazendo enorme sucesso na Broadway, e deve estreá-lo em novembro, em São Paulo. “Quando vi Legalmente Loira me encantei, saí radiante do teatro. Dei risada, me diverti. Tudo no cenário era cor-de-rosa”, lembra. De volta ao Brasil, se agarrou ao novo projeto. “Quero ser feliz, não quero mais sair de casa para sofrer. Estou cansada de sofrer”, desabafa. Para encarar o desafio, a atriz está fazendo aulas de canto e de dança, além de participar ativamente de toda a produção. “É cansativo, abri mão de muita coisa, mas estou fascinada, realizada”, diz. Entre as suas decisões, está a de continuar morando em São Paulo. “Para fazer novelas, eu precisaria morar no Rio. E eu não gosto, não me adapto. Praia para mim é merecimento, ver praia todo dia não é para mim”, diz. Luciana se identificou com a história da patricinha estudante de direito. “Ela acredita no amor, assim como eu. Eu também quero casar, ter filhos. Ser feminina não é vergonha. Não é preciso usar piercing para ser descolada. É possível ser loira e usar rosa”, diz. E ser feliz.

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Kátia Floriano Pinto não leu O Ano do Pensamento Mágico, de Joan Didion, mas é certo que teria se identificado com sua frase mais famosa: “A vida muda num instante. Você se senta para jantar, e aquela vida que você conhecia acaba de repente”. A jornalista norte-americana narra em seu livro o ano seguinte ao da morte de seu marido e o grave estado de saúde de sua filha Quintana, que, apesar de aparecer em recuperação no livro, também faleceria mais tarde.

O instante da mudança na vida de Kátia ocorreu entre dois telefonemas. No primeiro, Pedro Sansão, 34 anos de idade como ela, seu namorado desde os 25, ligava para dar bom dia e avisar do retorno para casa. Em breve pegaria a estrada em Búzios (RJ) rumo a Botucatu, no interior de São Paulo. No segundo chamado, ela soube pela polícia que a chegada prevista não aconteceria. O exato instante da nova vida de Kátia foi protagonizado por um carro desgovernado que surgiu em frente ao conduzido por Pedro. A vida projetada e construída por ela ao lado do namorado acabava ali.

Popular, daqueles que enlouqueciam as garotas na adolescência, Pedro arrastou mais de 500 pessoas para seu enterro, que comoveu toda a Botucatu. O inconformismo com a morte precoce imperava, mas os presentes sabiam que nenhuma dor poderia ser comparada à dos pais e à da menina loira que não tirava as mãos e os olhos encharcados do corpo do namorado. Meses depois da morte, que aconteceu em outubro de 2007, Kátia mantém as fotos de Pedro exatamente no mesmo lugar, tenta reconstruir sua vida, sofre, reza, mas não faz terapia. Remédio só para relaxar, quando as lembranças afastam o sono. “Tento me levantar por mim mesma. Estou melhor, me recuperando, não sinto mais tanta revolta, mas felicidade mesmo não tenho idéia de quando voltarei a sentir”, diz Kátia.

Para a arquiteta Silvia Segall, 42 anos, o instante da mudança não foi tão preciso. Dez anos atrás, vivia um bom casamento, tinha um filho e uma situação financeira das mais tranqüilas. A descoberta da segunda gravidez, no entanto, trouxe uma inesperada melancolia que não combinava com a alegria natural de ter outro filho. Com dez anos de psicoterapia, Silvia julgou ser aquele sentimento de angústia um traço normal de sua personalidade.

Na avaliação de seu terapeuta, era uma rejeição a ser trabalhada; na de seu obstetra, uma depressão pré-parto. Ela apostou no segundo. Diferentemente de Kátia, Silvia encarou um antidepressivo. Em um mês conseguia viver as emoções das imagens do ultra-som e a delícia da escolha de cada peça de roupa do bebê. “Foi diagnosticado um pequeno distúrbio bioquímico e com essa descoberta conquistei outra qualidade de vida”, comemora a arquiteta.

O desejo e o possível
As histórias de Kátia e Silvia são distintas, mas têm em comum o que é inevitável ao longo de nossas vidas: o permanente confronto entre o nosso desejo e aquilo que é possível. Como somos frágeis e fortes ao mesmo tempo e como somos capazes de reagir ou não a doses cavalares de frustração.
Tais movimentos, embalados pelas experiências de cair e levantar, são parte da eterna e complexa busca do homem pela felicidade. Ou por alguma coisa que chamamos de felicidade. Mas como buscar algo que não se sabe exatamente o que é? Há séculos o homem tenta entender do que se trata e como consegui-la. E como manter uma sensação de plenitude, de bem-estar.

É da felicidade vir num instante para evaporar no seguinte. Há muitas teorias e citações. O filósofo espanhol Julián Marías, autor de A Felicidade Humana, tem, por exemplo, uma boa anti-resposta em seu livro: “Não se pode elucidar o que é o amor, a vida humana, a liberdade ou a felicidade fazendo observações, estatísticas ou experimentos de laboratório”.
Silvia Segall usou sua experiência pessoal para promover a reflexão coletiva.

Mesmo com a paz proporcionada pela correção do distúrbio com o auxílio de medicamentos, Silvia não parou de questionar. Decidiu entrevistar pessoas que passaram pelos mais diversos conflitos emocionais, especialistas, estudiosos, artistas e médicos.

Desse mosaico nasceu o documentário Fora de Foco. No filme de Silvia, anônimos e famosos relatam experiências aflitivas que impedem um projeto de bem-estar.

O escritor Mario Prata lembra de suas crises de síndrome do pânico, a atriz Luciana Vendramini relata como, de um dia para o outro, passou a viver com manias que a paralisavam e a condicionavam a se movimentar ou agir de determinada maneira. Ela faz um dramático relato de um comportamento que acabou sendo diagnosticado como Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC). Especialistas abordam o uso adequado dos medicamentos e alertam para abusos. A escritora Clara Averbuck fala da violência do transtorno bipolar e Regina Casé se rebela contra o fato de as pessoas não poderem “agüentar um momento de insatisfação”.

Para Mario Prata e Clara Averbuck, remédio; para Regina Casé, florais, amigos e homeopatia. A diretora do documentário declara que ficou obcecada por discutir essa questão de quando o remédio pode e deve ser utilizado. “No meu caso”, diz ela, “foi essencial. Não queria criticar os terapeutas, mas precisamos tirar da frente o preconceito de que quem usa medicamento é maluco ou é fraco. Ou que a terapia pode resolver tudo porque, às vezes, ela não pode. A gente tem de ser feliz. Felicidade, sim, eu sempre a procurei. Tentei terapia, floral, ioga, nunca neguei nenhuma alternativa, mas foi com medicação que eu elevei a minha qualidade de vida”, conta Silvia.

Ana Luiza Caetano, 24 anos, não teve a mesma sorte com os remédios. “Eles me acalmam, mas por outro lado me deixam letárgica, não gosto. Já tomei fluoxetina, sertralina, e larguei o tratamento no meio várias vezes. Agora estou tomando de novo, mas sei que eles não podem resolver sozinhos.” Atriz recém-formada, Ana sabe que escolheu uma profissão que não lhe garantirá, tão cedo, algo que ela vislumbra como fonte de equilíbrio: a rotina.

O desconforto e a angústia são sentimentos com os quais Ana conviveu desde muito cedo. Primeiro era o medo, ela sempre pedia que alguém esperasse que ela dormisse. Já aos 12 anos surgiram os rituais de acender e apagar as luzes inúmeras vezes, algo que irritava o irmão. Seu instante de torpor veio mais tarde, na adolescência, com o uso esporádico de álcool e maconha. “Eu era cantora de uma banda de reggae e a maconha era algo presente, mas um dia um processo se desencadeou e houve uma forte sensação de inadequação, ali começaram crises mais profundas. Lembro de começar a chorar e não ter forças para ir ao ensaio. Eu paralisava. Também tive diversos momentos autodestrutivos de beber até cair, não era viciada, mas, às vezes, começava e não parava”, recorda.

Nesse meio-tempo fez diversos tratamentos e viu grandes benefícios nas terapias alternativas, como a ioga. Remédios tomados, ainda que de forma interrompida, e práticas corporais mantiveram a angústia sob algum controle. Com uma nova interrupção do tratamento com remédio, o término de um relacionamento longo e a conclusão da faculdade em 2006, estrelar como Diadorim na adaptação do clássico Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, trouxe mais angústia que alegria. Era indício de que algo não andava bem. No ano seguinte, um novo pico: uma oficina de clowns, uma nova paixão e a ânsia por independência financeira mexeriam de vez com sua estrutura. “É fantástico, eu adorava, mas era uma ultra-exposição. Na última aula, caí novamente no comportamento autodestrutivo e, em uma festa, fiquei esquisita, surtei. Fazia juízo das pessoas, só hoje sei o quão longe fui.”

Agitada, sem dormir, começou a arrumar o quarto sem parar, a falar sem pensar e a escrever pelas paredes. “Achava que podia tudo, andava descalça na rua. Um dia quis parar um ensaio no meio para lavar um banheiro. Alternava a euforia e a depressão. Voltei ao médico e tomei um ‘sossega leão’, dormia o dia todo, mas foi necessário. Só que, quando passou, veio a depressão, a pior que já tive. Hoje estou melhor, 100% não posso dizer, mas vou ao psiquiatra, faço terapia, quero voltar para a ioga, aposto na construção de uma rotina e sei que o caminho para o bem-estar e a felicidade é longo e contínuo”, avalia.

A difícil descoberta
A questão que Silvia Segall aborda em seu filme é polêmica. Os medicamentos funcionam de maneira diferente nas pessoas e nem todo caso é para ser medicado. “Não sou contra medicamentos, de forma alguma, mas defendo uma investigação mais criteriosa. Há casos em que eles são essenciais, já a psicoterapia funciona como uma transformação emocional e isso não se consegue magicamente, é preciso tempo, são coisas distintas, mas também complementares”, opina o psicoterapeuta Mário Milanello.

Em sua experiência de consultório, é comum surgirem pessoas que estão vivendo um período de tristeza, diferente da depressão, e, nesses casos, o medicamento, além de efeitos colaterais, pode não ter eficácia.

“A grande confusão nesse aspecto é que vivemos em um mundo veloz que pede respostas rápidas para os conflitos e engolir uma pílula de felicidade não seria má idéia. Mas ela não existe”, diz ele.

Há um passo anterior aos remédios ainda mais complexo, que é o difícil diagnóstico dos problemas emocionais. Primeiro, saber se é uma tristeza, um desconforto passageiro, uma questão genética, um desequilíbrio psíquico, uma disfunção bioquímica ou um conjunto de várias coisas. Não é raro existir a comorbidade, ou seja, a presença simultânea de duas doenças. Entre as pessoas que apresentam transtorno de bipolaridade, por exemplo, cerca de 40% também apresentam TOC. “O transtorno bipolar é um dos de mais difícil diagnóstico. E essa descoberta é importante para que exista o tratamento, pois a bipolaridade está altamente associada a diversos casos de suicídio”, alerta Beny Lafer, professor de psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. “Existem doenças emocionais com componente altamente genético, mas também existem influências do meio”, completa Lafer.

O transtorno de pânico, um medo sem sentido e muitas vezes desenfreado, é mais fácil de ser descoberto, mas não era assim no início dos anos 1990, quando era pouco conhecido. O escritor Mario Prata sofreu duplamente, primeiro, pelas crises que o assolaram em 1992, quando morava em Portugal; segundo, por não ter idéia do que se tratava.

“Tive uma crise, depois de seis meses outra, depois toda semana, depois todo dia. As crises eram terríveis, me jogava no chão, não me mexia.” Prata não é adepto da psicoterapia. “Eu nunca quis falar da minha infância, de pai, de mãe. O pânico eu controlo com remédios, é um distúrbio e não posso parar. Uma vez achei que estava bem e decidi parar por conta própria, foi a pior coisa que fiz.” Na ocasião, o pânico de Prata voltou ainda mais forte, mas os medicamentos o deixaram novamente sob controle. “Você quer saber se eu estou feliz, sim, estou. Felicidade é algo muito relativo e a minha felicidade mais recente veio quando saí de São Paulo e vim morar em Florianópolis”, conta o escritor.

Para o psicólogo Irineu Miano Júnior, algo fundamental nessa busca é saber diferenciar o prazer da felicidade. “Felicidade é algo que proporciona sentir melhor o gosto pela vida. Mas é algo que você encontra, perde no minuto seguinte, e reencontra. Já o prazer é finito, acaba, enjoa, perde a graça.” No filme de Silvia, o cantor Arnaldo Antunes pontua as diferenças entre alegria e felicidade. Para ele, a primeira é uma manifestação individual e a segunda é coletiva. O psicólogo Miano lembra ainda que felicidade sempre aparece muito ligada a realização, mas devemos conviver com os limites. A afirmação “você pode tudo o que quer”, para ele, é uma mentira. “Não dá pra descobrir aos 50 anos que eu quero ser jogador de futebol profissional e jogar uma Copa. Se reconhecermos nossas fraquezas, nossos limites, e desenvolvermos suportes para a frustração, a felicidade fica bem mais próxima”, aconselha Miano.

O homem mais feliz do mundo
Os modelos terapêuticos para a busca da felicidade não estão limitados aos consultórios. A felicidade pode estar na maneira como enxergamos o mundo. Essa é a aposta do homem mais feliz do mundo: para ele a felicidade real e verdadeira é aquela que floresce em uma mente excepcionalmente sadia. O homem mais feliz do mundo nunca sentou em um consultório, não viveu grandes traumas, tinha uma vida cheia de realizações, mas a felicidade de verdade começou a tomar corpo quando ele tinha 26 anos e trocou Paris por Darjiling, na Índia.

Inspirado desde a adolescência pelo pensamento de Gandhi e Martin Luther King Jr., o hoje monge Matthieu Ricard viveu um instante de perplexidade e encanto diante das imagens de um documentário que mostrava a fuga dos mestres espirituais do Tibete por causa da invasão chinesa. A perplexidade da violência é fácil de explicar, mas o encantamento foi bem particular: veio do fato de sentir que todos os monges emanavam uma beleza interior intensa. Decidiu que, se não podia ouvir Sócrates, nem os diálogos de Platão, seu caminho era viver entre mestres ainda vivos.

Ao virar monge, Ricard, um dos tradutores de Dalai Lama, deixou para trás uma vida aparentemente invejável, cheia de momentos prazerosos. Filho do filósofo Jean-François Revel e da pintora Yahne Le
Toumelin, freqüentou na juventude os mais importantes círculos intelectuais de Paris. Estudou música clássica, ornitologia e fotografia, e se encontrava com Luis Buñuel, Igor Stravinsky e Henri Cartier-Bresson. Fez doutorado em genética celular no Instituto Pasteur com o orientador François Jacob, ganhador de um Prêmio Nobel.

Tudo isso ficou de lado e, depois de três décadas de meditação e elevação espiritual, veio o título “o homem mais feliz do mundo”. Pesquisadores da Universidade do Wisconsin, nos Estados Unidos, ligaram 256 sensores ao seu crânio e, por meio de uma ressonância magnética funcional, detectaram o mais alto nível de resposta no córtex pré-frontal esquerdo já registrado entre exames desse tipo. Essa área do cérebro está diretamente associada com a emoção positiva.
“Teria eu renunciado ao mundo ocidental? A renúncia, pelo menos se considerarmos como os budistas usam esse termo, é um conceito muito mal interpretado. Não se trata de abrir mão daquilo que é bom e belo. Trata-se de desembaraçar-se daquilo que é insatisfatório. É uma questão de liberdade e significado: libertar-se da confusão mental e das aflições autocentradas”, relata Ricard na introdução de seu livro Felicidade – A Prática do Bem-estar.

Se a renúncia é um caminho para a felicidade, Julio Bierrenbach, 61 anos, encontrou outro caminho para alcançá-la. Julio tinha um grande orgulho de sua biblioteca, da enorme quantidade de livros acumulados, boa parte deles intocada, é verdade, mas estavam lá para quando optasse pela leitura. Um dia mostrou sua biblioteca para Lia Diskin, fundadora da Associação Palas Athena, em São Paulo, e ela apertou o botão que acionaria sua mudança. Lia questionou: “Mas o que você faz com tantos livros? Nunca vai ter tempo para ler tudo isso”. Julio respondeu algo como: “Posso precisar um dia, são importantes para consulta”. Lia revidou: “Você tem dinheiro, se precisar vai lá e compra”.

De imediato Julio não gostou da intromissão, mas achou melhor pensar um pouco a respeito da fala da mulher que criou um dos mais importantes centros filosóficos do Brasil e teve aulas com Jorge Luís Borges.

Observou os livros, descobriu que tinha vários repetidos, começou a ficar incomodado e deu um fim à biblioteca. Doou quase tudo, só guardou os essenciais. Não foi só isso: a partir daí fez um inventário de suas camisas e descobriu que tinha uma centena, dezenas de pares de sapatos, e que estava prestes a trocar um carro de R$ 100 mil por outro de R$ 200 mil. Desvencilhou-se de grande parte de tudo isso e comprou um carro de R$ 50 mil. “O que defendemos é a simplicidade voluntária, uma outra forma de lidar com a vida. Não dá para ter 800 pares de sapato e achar que isso não influencia a vida do outro. A felicidade nasce no respeito ao mundo”, atesta Lia. Julio concorda: “Ao mesmo tempo em que ficou mais simples, fiquei mais atento e isso me deixa muito mais realizado. Felicidade é dar valor ao que realmente importa”, filosofa Julio, que hoje compõe a diretoria da Palas Athena.

O valor da vida
As renúncias em prol da felicidade de Arthur Simões Cardoso foram definitivamente marcadas no instante em que ele pegou a bicicleta e deu início ao projeto Pedal na Estrada (www.pedalnaestrada.com.br), no qual pretende percorrer, de bicicleta, mais de 30 países. Já são dois anos viajando e atualmente está em algum lugar da África. Mesmo antes de terminar a faculdade de direito, em São Paulo, sabia que seu caminho era outro.

Descobriu a ioga, praticou, virou professor e por um tempo parecia ter achado o caminho do bem-estar. “Nos últimos anos de Brasil, estava em busca de mim mesmo e da felicidade. Naquela época, felicidade para mim era um mero estado de consciência, bastante determinado pela forma como cada um encara os acontecimentos cotidianos – algo como aquela história do copo meio cheio e meio vazio.” A experiência da viagem em meio às desigualdades do planeta desfocou sua antiga concepção de mundo.

Hoje Arthur tem ressalvas sobre a crença de que a felicidade é absolutamente interna. Acredita que encarar os fatos de forma positiva ajuda a manter um estado mental e emocional mais equilibrado, mas isso só vale para quando se está num ambiente conhecido e agradável. “Aí realmente não é difícil ser feliz, o problema é quando se está em meio ao caos. Como ver aquilo sob um ponto de vista positivo? Não há nada de positivo nas pessoas que eu vi passando fome, sofrendo e morrendo durante essa viagem.” Enumera exemplos: como poderia ser feliz ao se deparar com uma senhora que carregava em desespero o corpo de seu filho morto pelas ruas de Jacarta, ou ao ver as crianças mutiladas pela guerra no Camboja. “Nessa Índia eu vi famílias quebrando ou cortando o braço dos filhos pequenos para conseguir mais esmolas.” Para Arthur, nesses momentos era hipocrisia ser feliz.

Mas pondera: “Claro que tive momentos maravilhosos: reencontrar um amigo ou fazer bons companheiros pelo caminho, ver o sol nascer da estrada, sentir a liberdade pelos quilômetros pedalados, ver as pessoas sorrirem mesmo estando nas situações mais complexas são momentos dessa viagem que me deixam verdadeiramente feliz”.

Sigmund Freud, o pai da psicanálise, numa entrevista pouco conhecida concedida ao jornalista americano George Sylvester Viereck, diz o seguinte: “Ainda prefiro a existência à extinção”. Ele estava, então, com 70 anos. “Talvez os deuses sejam gentis conosco, tornando a vida mais desagradável à medida que envelhecemos. Por fim, a morte nos parece menos intolerável do que os fardos que carregamos.” Há que se registrar que, graças aos progressos da ciência e da medicina, hoje se vive mais e se envelhece com muito mais conforto do que quando essa entrevista foi feita. Continua Freud: “A velhice, com suas agruras, chega para todos. Eu não me rebelo contra a ordem universal. Afinal, mais de 70 anos. Tive o bastante para comer. Apreciei muitas coisas – a companhia de minha mulher, meus filhos, o pôr-do-sol. Observei as plantas crescerem na primavera. De vez em quando tive uma mão amiga para apertar. Vez ou outra encontrei um ser humano que quase me compreendeu. Que mais posso querer?”. Essa entrevista foi realizada em 1926, nos Alpes austríacos, e Sigmund Freud viveria ainda mais 13 anos. Ele morreu em Londres, em setembro de 1939, aos 83 anos.


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