O lado B de Rogério Fasano

Houvesse uma trilha sonora para o paulistano Rogério Marco Fasano, 45 anos, e ela teria canções de João Gilberto, no lado A, e da banda punk inglesa The Clash, no obscuro lado B. Porque é fácil imaginar um gentleman de bom gosto, elegante e solícito, acomodado numa confortável poltrona, lendo um livro ao som de bossa nova. Difícil é conceber o dono dos restaurantes e hotéis mais sofisticados do País, chefe de quase mil funcionários em casas nobres como Fasano, Parigi e Gero, balançando a cabeça e pulando num show de punk rock. Palmeirense e ex-futuro cineasta, Rogério, o Gero, filho de Fabrizio, neto de Ruggero e bisneto de
Vittorio, herdou o sobrenome que há 105 anos é sinônimo de status e sucesso, mas nem parece.

O lado B de Rogério é tímido, rebelde, indignado e, como bom latino, passional e explosivo. Prefere o ambiente underground de um pub londrino ao “excesso de burguesia” dos cafés de Paris. Adora a bagunça da praia de Ipanema num domingo lotado, é fã de coxinha e “meio comunista”. No Rio, onde passa uma semana por mês e acaba de criar mais um “filho”, outro hotel Fasano – cujo projeto é assinado pelo francês Philippe Starck -, só foge do samba e do carnaval. E trabalha muito em busca da perfeição, não do dinheiro, garante: “Quem só pensa em enriquecer mais e mais, para mim, é pobre de alma”.

Meio punk, meio comunista
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A platéia cospe para cima sem parar, sem pudores. É uma atitude punk, mas o líder da banda inglesa The Clash, Joe Strummer, toma um banho de saliva e pára o show na primeira música. “Ele deu uma lição. Disse que ser punk não era aquilo, que a gente estava lá para pensar, raciocinar, e não para ficar cuspindo. Fiquei mais fã dele ainda.” Aos 19 anos, Rogério estava na platéia, em Londres, onde viveu à custa do pai rico. Ficou enojado com os cuspes, mas cantou todas as letras da banda, ídolo da juventude rebelde.

Ele ainda é assim, meio punk. E meio comunista, “porque todo fã do Clash é um pouco”. Só não sabe se “comunista” é a palavra exata: “Sei que de alguma maneira ainda penso como naquele tempo. Se não derem um jeito de as pessoas viverem melhor, sem desigualdade, isso aqui não vai dar certo. Não dá para ter miséria, não dá”. O estudante do tradicional Colégio Dante Alighieri, que tinha vergonha de ser rico, pulava o muro na hora do recreio e, aos 16 anos, trocou a casa dos pais no bairro nobre do Morumbi por um modesto apartamento no Centro de São Paulo, também resiste.

Hoje, os restaurantes e hotéis Fasano, onde uma diária não sai por menos de R$ 1 mil, são fortalezas da elite nacional, mas Rogério pula o muro: “Na ala endinheirada do País, você vê nitidamente um caminhão de dinheiro ao lado da falta de cultura. Um dos nossos maiores problemas é não ter uma elite que dê bons exemplos. Eu não escolho essas pessoas para conviver, não compactuo”. Até porque Rogério não sabe disfarçar.

O sorriso, se é forçado, fica amarelo mesmo. “Eu me conheço. Chega uma hora em que falo o que penso.” E solta a língua: “A parte mais chata do meu trabalho é estacionar carro dos outros. É insuportável a relação que o brasileiro tem com o carro… não basta parar, tem que dizer onde é que pára e não pode atrasar cinco minutos! Se tem tanta grana, porque não anda de motorista? Vamos fazer uma campanha: Ricos do Brasil, tenham motorista!”. Ele fala com propriedade. No Rio, usa moto e bicicleta. “Vou ao Antiquarius pedalando. Até os porteiros ficam me olhando. Mas por que é que eu vou andar algumas quadras de carro? Não faz sentido.”

Tímido
Camisa azul feita sob medida com algodão 600 fios, calça impecável, sapatos finos cuja marca ele não sabe, pulôver inglês discreto nos ombros, Omega de ouro no pulso, um celular preto, um maço de Marlboro vermelho e uma elegância indescritível atravessam a Avenida Vieira Souto montados numa bicicleta velha e enferrujada. Lá vem Rogério, driblando os carros. “Aqui não, gente, por favor. Tenho vergonha. Vamos fazer as fotos na frente do Gero, vai. Encontro vocês lá.”

Quer escapar dos olhares de quem passa no movimentado calçadão de Ipanema – porque posar para fotografias é uma tortura, “pior que ir ao dentista”. Ele parte para o sacrifício – afinal, antes de tudo, é gentil -, com visível desconforto. No entanto, Rogério tem vida social bastante agitada. Seu segundo casamento, com Ana Joma, em 2004, foi o evento do ano. A festa reuniu mil convidados. É a própria contradição:

“Sou tímido. Não sou um relações-públicas nato, confesso. Preciso de duas ou três garrafas de vinho para me soltar”, em taças bebidas diariamente enquanto trabalha no Fasano, a primeira e mais paparicada casa do grupo. Necessário. Rogério passa as noites no comando do restaurante, cumprimenta aqui, conversa ali, senta acolá.

Durante a entrevista, o olhar foge, enxerga tudo ao mesmo tempo. As mãos inquietas entram no bolso, mexem no café, batucam o braço da poltrona, levam cigarros e cigarros à boca. Nada como uma dose de nicotina para aplacar a ansiedade e disfarçar a timidez. “Um maço por dia.” Mentira. “Bom, quem diz que fuma um maço está mentindo, né?” Rogério tem mil amigos, mas é anti-social. Diz que é capaz de passar dias e dias sozinho, feliz da vida.

“Peguei um vôo de 15 horas e não queria chegar, de tão contente. Fui ouvindo música, vendo filme, sem nem um telefone para tocar. Nunca pensei que um avião pudesse me dar tanta paz.” Administra oito restaurantes, tem talento com as panelas, mas não comanda o fogão para os amigos. Nem pensar. Servir comida pressupõe encontrar pessoas. E isso para ele é, quase sempre, trabalho.

Fã de coxinha
Quando inaugurou o Fasano, em 1990, tudo era importado. Já ganhou um sem-número de vezes prêmios e mais prêmios de “melhor italiano do País”. Se o Guide Michelin viesse ao Brasil, o homem não descansaria enquanto não ostentasse a cotação máxima. Mas sem concessões. Tradição é tradição: “Ninguém faz restaurante e vinho como os franceses”. Rogério tem opiniões definitivas sobre bebida e comida. E odeia invencionices. Cada coisa no seu lugar, por favor: “A pizza do Rio está anos-luz à frente da pizza de São Paulo. O paulista se sente dono da pizza e faz barbaridades, como botar carpaccio, camarão, chocolate! Se um italiano comer, vai ficar indignado”.

Detesta malabarismos culinários, mas foi ao The Fat Duck, pertinho de Londres, restaurante de alta gastronomia contemporânea – daqueles que mais parecem um laboratório de química, em que se mudam a forma e o sabor dos alimentos. O “Pato Gordo”, como o chamou, reveza com o catalão El Bulli, de Ferran Adrià, do mesmo gênero, o posto de melhor do mundo.

Embora disposto a encarar o desafio, Rogério chegou lá atormentado, imaginando que coisa boa não viria pela frente. A experiência foi pior do que poderia supor. Depois, achincalhou o “melhor do mundo” e o chef Heston Blumenthal em um artigo publicado no Estadão. “O texto teve uma repercussão incrível, mas vou te dizer: é pior do que está escrito lá. Você se sente ridículo. Tipo ver um desfile de moda como se vê um filme do Bergman. Desfile de moda é desfile de moda, filme de arte é filme de arte! São coisas distintas, não têm a mesma importância para o mundo.”

Rogério defende Adrià, que “não se leva tão a sério”. Mas a verdade “é que o mundo está louco, todo mundo é gênio. Chef de cozinha, então, nem se fala. Hoje se dá mais importância aos restaurantes do que ao cinema. Falo contra meus interesses, mas gosto de ser crítico com o meu segmento”. Revolta e indignação de um italiano “do contra”, mas facilmente aplacadas por uma simples e boa coxinha brasileira. “Adoro estas bobagens, coxinha, empadinha. Mas hoje evito frituras.”

Latino
Frituras devem ser evitadas por quem já sofreu dois acidentes vasculares cerebrais, aos 37 e aos 42 anos. Nada que qualquer especialista não pudesse prever. “Não durmo por causa de um erro. Fico inconformado, irritado, bravo, puto da vida.” É um famoso workaholic e perfeccionista. Mas, principalmente, um latino incorrigível. Passional e, vez ou outra, explosivo. “Na próxima encarnação quero nascer anglo-saxão, pelo amor de Deus. É mais razoável. E muito menos burro. Este excesso de latinidade é de enlouquecer.”

Diz que já foi até de se “atracar com cozinheiro”. Se, numa dessas, “o cara der porrada, nem vou ligar, porque eu parti para cima!”. A raiva passa no minuto seguinte. Os funcionários imitam o patrão às escondidas: a calça vai acima do umbigo, chutando tudo pela frente e gritando palavrões. “Caralho, puta que pariu, já falei um milhão de vezes que não é assim, porra!”

A descrição é do próprio chefe. Os Fasanos são assim, intensos. Todo Natal, sempre comemorado no Antiquarius, é a mesma coisa. Até o maître já sabe: vai ter briga. “Uma vez, pedi para reservar a mesa com oito lugares. Ele perguntou se não era melhor reservar oito mesas para um, já que um acaba a noite no bar, outro sozinho no canto. É assim. Se juntar, briga.”

A intensidade das emoções já quase lhe rendeu uma facada. Um funcionário, braço direito de Rogério na cozinha, pediu para ser demitido. O patrão disse que não, mas dessa vez estava cheio de amor para dar. “Eu te adoro, cara. Não vou te mandar embora de jeito nenhum.” O sujeito insistiu. “Estou dizendo que eu te adoro, você é um superfuncionário. Se quiser, peça as contas, o que vai me deixar muito triste.” Dez minutos depois, o sujeito entra na sala de Rogério com uma faca. “O senhor não vai me demitir?” Ele, rápido: “Lógico”.

Indignado
Mantém sempre um alvo à frente, sofre de indignação crônica. “Tenho restrições ao cinema nacional. É feito com dinheiro público a fundo perdido. A cultura pode se virar com a iniciativa privada. Com o País do jeito que está, tem muita coisa para resolver primeiro.” Uma delas é a violência, sugere. O restauranteur foi assaltado cinco vezes em São Paulo, com arma na cabeça. Em 1993, a filha, de então 3 anos, ficou na mira do revólver. “Passar por essa sensação cinco vezes é inconcebível para qualquer cidadão. Fiquei traumatizado, queria levar minha filha para longe.”

Não deu certo, porque a ex-mulher não topou. “Há 20 anos, aberração era roubarem o toca-fitas sem você no carro.” O problema, diz, é que o brasileiro se acostuma com tudo. “Você chega ao Rio de avião e vê as favelas crescendo a olhos vistos! Como pode dar certo? Em Buenos Aires, por muito menos, eles quebram tudo. Não é possível, sabe? A falta de mobilização aqui para exigir direitos básicos é incrível.” Ninguém mais quer saber de política. Rogério acha até que entedia as pessoas com esse papo.

“Desando a falar e, quando vejo, está todo mundo achando um pé no saco. Mas como? Um papo sobre em quem vamos votar é normal em qualquer país!” É adepto da teoria de que, se o Rio ainda fosse capital, tudo seria diferente. Brasília foi um erro estratégico, isolou o povo do poder. Além disso, quem sabe a cidade não cresceria diferente e até a Barra da Tijuca escapasse do mau gosto? Porque “São Paulo é uma das cidades mais feias do mundo, mas é 80 milhões de vezes mais bonita que a Barra”. Em homenagem àquele Rio, criou um hotel Fasano carioca à moda antiga, inspirado nos anos 50 e 60. O lado B também estará lá: o bar ganhou o nome de “Londra”, uma referência à sua cidade preferida. The Clash ainda vive em Rogério.


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