O lado íntimo do Brasil

Quando tinha por volta dos dez anos e estudava em um colégio tradicional em São Paulo, Mary Del Priore era uma devoradora de livros, inclusive de autores proibidos para os padrões conservadores da época, sobretudo para uma criança, como o baiano Jorge Amado e o americano Henry Miller.

Talvez essas leituras tenham aguçado a curiosidade da futura historiadora – hoje especialista em história do Brasil, com doutorado em História Social na Universidade de São Paulo e pós-doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales, na França – para temas de foro íntimo e, muitas vezes, picantes, como a relação escandalosa de amor e desejo entre Dom Pedro I e a Marquesa de Santos, tratada em seu livro História do Amor no Brasil, e as aventuras extraconjugais do comportado Dom Pedro II com a Condessa de Barral, reveladas na obra Condessa de Barral, a Paixão do Imperador. São mais de 20 livros dedicados a desvendar um lado oculto da nossa história e de seus protagonistas.

Desta vez, Mary mergulha nas origens do comportamento sexual brasileiro no livro Histórias Íntimas, Sexualidade e Erotismo na História do Brasil, recém-lançado pela Editora Planeta. Com uma pesquisa que vasculha 500 anos de história, da nudez das índias à pornochanchada, como ela mesma diz, a autora constrói um “pequeno museu do erotismo e da sexualidade” nacional que fornece subsídios para entender a sociedade atual. “O brasileiro tem um comportamento na vida privada e outro na vida pública. Na vida pública, nós somos completamente soltos, ficamos à vontade, somos sem cerimônia. Somos capazes de tirar a roupa, fazer loucuras. Mas, na vida privada, continuamos homofóbicos, machistas e racistas”, diz.

A discussão sobre a crise de identidade da mulher de hoje, já tratada em livros anteriores, volta à tona nessa obra. “Retomo a questão, mas procuro pensar mais sobre como isso está realmente interferindo na vida sexual das pessoas, o que elas estão buscando, quais são as consequências. E, para a mulher, o saldo tem sido de muita solidão.”

Com dois livros já sob encomenda – um sobre o aspecto pouco conhecido e nada nobre da vida da Princesa Isabel e do seu marido, o Conde d’Eu, e outro sobre o triângulo amoroso que envolveu Dom Pedro I, a sua esposa Princesa Leopoldina e a sua amante, a Marquesa de Santos, chamado A Carne e o Sangue, com previsão de lançamento para o ano que vem -, a escritora carioca esteve em São Paulo para o lançamento de Histórias Íntimas, Sexualidade e Erotismo na História do Brasil, e conversou com a Brasileiros.

Brasileiros – Histórias Íntimas, Sexualidade e Erotismo na História do Brasil parte de uma pesquisa mais ampla que você vem desenvolvendo nas últimas décadas, que é a história das mulheres no Brasil…
Mary Del Priore –
Mais do que isso até. Eu já tinha, realmente, uma série de outros livros que de alguma maneira tangenciava essa questão do corpo, das conquistas que as mulheres obtêm por meio do corpo: História do Amor no Brasil, Corpo a Corpo com as Mulheres, Ao Sul do Corpo (lançado originalmente em 1989, com o título Ao Sul do Corpo: Condição Feminina, Maternidades e Mentalidades no Brasil Colonial, e em 2010, com o título Ao Sul do Corpo: Maternidades, Mentalidades e Condição Feminina na Colônia). Então, de alguma maneira eu já vinha aplanando o caminho e apresentando as fontes documentais bastante saborosas, para tatearmos o que eu chamo de um pequeno museu do erotismo e da sexualidade. O livro Histórias Íntimas tem isso, arrasta o leitor pela mão e vai apresentando a ele diferentes aspectos das transformações pelas quais passaram a nossa sexualidade e o nosso erotismo.

Brasileiros – O livro aborda diversos assuntos acerca da sexualidade e do erotismo no Brasil, do Descobrimento até os dias de hoje…
M.D.P. –
Ele vai desde a nudez das índias até a pornochanchada. Vai dos primeiros tempos em que se utilizou, digamos, aquilo que chamamos de drogas, especiarias, para a “Arte de Vênus”, que era um eufemismo para designar as relações sexuais, até o Viagra. Toca em 500 anos de pedofilia, aborda uma série de questões que foram muito mal estudadas. A questão da educação sexual no Brasil, que curiosamente esteve na pauta de governos ditatoriais, o de Getulio Vargas e o governo militar. Então, foi, de certa maneira, conversando com esses documentos que consegui fazer um amplo painel, até os dias de hoje. Eu diria que se o leitor ler esse livro com mais vagar, vai ver que por trás desse, digamos, “pequeno museu” há uma tese de que o brasileiro tem um comportamento na vida privada e outro na vida pública. Na vida pública, nós somos completamente soltos, ficamos à vontade, somos sem cerimônia. Somos capazes de tirar a roupa, fazer loucuras. Mas, na vida privada, continuamos homofóbicos, machistas e racistas. Pensei um pouco nessa dualidade dentro da história da vida íntima. É tentar pensar por que as transformações mais radicais, as que vieram com a pílula, com a televisão, com a mídia, com a comunicação, não chegaram a alterar esse comportamento que o brasileiro tem na vida privada.

Brasileiros – Então, de certa forma, essa dualidade do nosso comportamento permanece até os nossos dias?
M.D.P. –
O que é interessante é justamente ver quantos avanços nós tivemos e como há recusas o tempo inteiro. Vou dar um exemplo, que considero bastante emblemático, que foi a pornochanchada lançada nos anos 1970. Alguns teóricos dizem que ela veio, inclusive, para sedar um pouco a população que estava mais para os padrões do governo militar. Mas a minha leitura não é essa.

Brasileiros – Mas a pornochanchada não começa a ser realizada por causa da censura do governo militar sobre os filmes nacionais?
M.D.P. –
Não. A pornochanchada vem no momento em que a indústria do sexo começa a entrar no Brasil. É o momento em que os motéis, os sex shops começam a aparecer. É o momento em que você vê uma série de shows eróticos nas zonas quentes da cidade. Mas se você olhar uma pornochanchada, vai ver que a mulher se desnuda pouco a pouco. Ela nunca está nua. É o olhar do homem, o olhar da câmera, que tem de desnudar a mulher. E o mais interessante é que todos os personagens de uma pornochanchada têm sonhos burgueses. Por exemplo, a prostituta do filme sonha em se casar e ser muito feliz. O garanhão, em encontrar uma virgem. É curioso ver que até naquilo que havia de mais avançado para discutir as transformações da sexualidade do brasileiro, que era a pornochanchada, no fundo havia uma mensagem moralista. Era todo mundo querendo casar, ser feliz, constituir família.

Brasileiros – Você passa do sexo tabu, no passado, para o sexo obrigatório, hoje. Estamos correndo grandes riscos com essa mudança?
M.D.P. –
Eu não chamaria de riscos. Quer dizer, acho que os sociólogos, os psicanalistas têm dado várias interpretações para a passagem de uma sociedade na qual o sexo era silenciado, tabu, pecado, sujeira, para uma sociedade em que a ordem é gozar, fluir.

Brasileiros – Isso fruto da comercialização do sexo…
M.D.P. –
Muito fruto da comercialização. Houve até uma inflexão, lá pelos anos 1960, 1970, 1980, de que não podemos nos esquecer, que vem com a chegada da pílula anticoncepcional, da entrada da mulher no mercado de trabalho e certa libertação. Lembro a você alguns jargões dessa época, do tipo “Amai uns sobre os outros”, “Façamos amor e não a guerra”. Foi um momento realmente de abertura. A essa abertura correspondeu uma reação da sociedade brasileira extremamente truculenta, na forma dos maiores assassinatos de mulheres que nós jamais havíamos conhecido. Eu não só trato um pouco disso no livro, como demonstro que um dos grandes assassinatos que nós tivemos em Minas Gerais nos anos 1980 foi de um marido que matou a mulher porque ela fumava, usava biquíni e assistia Malu Mulher, famoso seriado que, de alguma maneira, levantava a bandeira do feminismo (seriado exibido na rede Globo entre o final de 1979 e os primeiros meses dos anos 1980, e protagonizado pela atriz Regina Duarte). Então, isso mostra que esses avanços vêm sempre, digamos, precedidos de uma reação muito violenta. A grande mudança é que no século XXI, o corpo é hedonista, exibicionista e um pouco autoconfessional. É um corpo que se modifica, inclusive, por meio das operações transgêneros, das operações plásticas. É um corpo que não está mais coberto, como esteve durante mais de 400 anos. Que consequências foram essas? No último capítulo do livro, “Enfim sós”, trato ainda dessa família que é capaz de recompor, dessa família mosaico. “Enfim sós?” é o diálogo do indivíduo com a tela do computador, do sexo através dessa tela, do consumo através dessa tela, da comunicação virtual. Para onde caminhamos? Há pessoas que dizem que de fato isso corresponde a muitas perdas, e há pessoas que acham que isso vai nos permitir escolher as nossas caras-metades ou, como nós queremos, hoje como homens, amanhã como mulheres e depois de amanhã como as duas coisas e com muito mais liberdade. Obviamente não tenho uma opinião fechada. Eu também me faço essa pergunta, mas termino com essas duas interpretações.

Brasileiros – Esse novo “caminhar” da mulher faz dela sua própria vítima? Dessa busca pelo corpo perfeito, pela aparência perfeita. A mulher perdeu muito da liberdade que ela mesma conquistou no século passado…
M.D.P. –
Sem dúvida. Ela se escraviza. E o homem, como eu procuro mostrar também no último capítulo do livro, tem uma insegurança tremenda com essas transformações. Ele não sabe muito bem o que fazer diante dessa mulher que autoemula o tempo inteiro e que não dá muito lugar para ele. Nós vimos que os homens também passaram por transformações importantes no século XX. Desde os anos 1950, 1960, em que o cinema americano forja a noção de macho, de machões. No Brasil, na sociedade patriarcal, as diferenças de gêneros sempre eram bem desenhadas. Gilberto Freyre é o primeiro a mostrar isso. Mas a partir do cinema americano você tem, graças ao Tarzan, aos faroestes, a formação da virilidade masculina, que vai, de certa forma, ser perseguida. E que é completamente colocada em xeque por todas as transformações que vêm a seguir. Os homens reagem hoje a essas transformações fazendo aquilo que o IBGE (Instituto Brasileiro Geográfico e Econômico) chama de poligamia sequencial, que é escolher cada vez mais companheiras, em série, mais jovens que eles. O homem quando sai de casa tem enormes chances de recompor sua vida muito rapidamente. A mulher tem enormes dificuldades, e essa recomposição ainda passa pelo olhar dos filhos. O quadro é complexo. Essa busca por uma identidade leva a mulher a perseguir caminhos que nada tem a ver com o seu passado de mestiçagem: dessa mulher brasileira tradicionalmente morena, gordinha, baixa. Hoje, a mulher busca uma forma curvilínea. Ela quer ser a Barbie.

Brasileiros – Isso tem a ver com a questão da crise de identidade da mulher, que você tratou em outros livros?
M.D.P. –
Eu já discuti esse assunto em outros livros. Volto a essa questão, no novo livro, mas procuro pensar mais sobre como isso está realmente interferindo na vida sexual das pessoas, o que elas estão buscando, quais são as consequências. E para essa mulher, o saldo tem sido de muita solidão. Haja vista o número crescente, segundo o IBGE, de mulheres chefes de domicílios, com grandes responsabilidades, pagando o alto preço, digamos, de suas opções, quando o País ou elas mesmas ainda não estão preparados para transformações tão agudas.

Brasileiros – Os tabus sobre a sexualidade ainda são enormes no Brasil. Lembro da maneira como Gilberto Freyre tratou de sua homossexualidade no livro De Menino a Homem, lançado na Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) no ano passado, na qual o escritor foi homenageado. Nas quatro mesas dedicadas ao sociólogo, nenhum palestrante convidado ou mediador tocou nessa questão, em uma clara demonstração de que o homossexualismo ainda é visto de forma preconceituosa e enviesada pela sociedade brasileira…
M.D.P. –
Eu faço questão de mostrar, em vários momentos do meu novo livro como a homofobia até os dias de hoje é chocante. É chocante imaginar que somos a sétima potência econômica mundial com uma cidadania tão baixa a ponto de vaiarmos e xingarmos um jogador de vôlei em uma partida realizada em Belo Horizonte, a ponto de matarmos um menino no interior de Mato Grosso, a ponto de batermos em meninos na Avenida Paulista. É tudo tão debaixo do nosso nariz. Onde é que está a cidadania? O livro trata com muito carinho dessa questão, mostra a longuíssima tradição de perseguição homofóbica no Brasil. O que nós temos é uma imensa tradição de 500 anos de homofobia. Começa obviamente com as visitas da inquisição do Santo Ofício, que estava preocupada com o pecado do nefando, da sodomia. Mas a grande questão da Igreja é o desperdício de sêmen, com o fato de as relações não contribuirem para fazer mais católicos no mundo. A sodomia é perseguida também em casais heterossexuais. Depois, eu analiso, com muita atenção, como a partir do século XIX a Igreja ganhou um grande aliado na medicina e nos grandes médicos higienistas que começaram a ver nos missexuais, que é o nome que eles davam a isso que achavam se tratar de uma espécie de duplicidade do sexo, os missexuais, como se fosse um misto de sexos. E esses higienistas não só inverteriam as práticas desses grupos como passariam a persegui-los como se fossem algo extremamente nocivo à sociedade. Ressalto que esse recurso vai crescendo à medida que surgem a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, em que era preciso aumentar a população brasileira. Há todo um trajeto de explosão demográfica no Brasil para que o País tivesse exércitos mais qualificados. O homossexualismo surge não só como uma forma de doença, mas como uma ameaça a esse Brasil que está aí em gestação na primeira República e depois na ditadura de Getulio Vargas. Os primeiros manuais de educação sexual, como eu mostro no livro, são muito interessantes. Até os anos 1950, que foi praticamente ontem, com os seus e os meus pais, as pessoas acima de 50 anos não tinham vida sexual. Os jovens por sua vez liam nos manuais que o sexo era um problema de higiene. Os manuais preveniam o tempo inteiro contra os males do homossexualismo, visto como uma doença do organismo. Os manuais oferecidos para as meninas só podiam ser lidos por elas a partir dos 18, 19 anos e se estivessem noivas. Os manuais masculinos traziam desenhos científicos das relações, dos órgãos sexuais. Os das meninas não traziam nada, nem uma linha sobre masturbação. Apenas informações sobre aquilo que eles chamam de ritual da natureza, que era um eufemismo para falar das relações sexuais.

Brasileiros – Isso vem da nossa herança patriarcal em que a mãe educa o filho de forma machista, na qual ele tudo pode e a filha, quase nada.
M.D.P. –
Exatamente. Isso é uma das coisas que falo, de que forma as mulheres brasileiras, depois de todas as conquistas, caem novamente nessa duplicidade. Na vida pública, a mulher tem todas as conquistas. Está na política, ocupando altos cargos públicos, está à frente de empresas, mas em casa não deixa que o marido lave a louça, que o filho faça a cama. Se a namorada briga com o filho, ela é uma desgraçada, uma piranha, uma bandida. De que maneiras as mulheres não estão conscientes de que contribuem para ratificar esse machismo, de que elas são as grandes responsáveis para a manutenção do machismo?

Brasileiros – Você questiona se a banalização do sexo hoje é usada para distrair os verdadeiros problemas da sociedade brasileira. Será que é só isso?
M.D.P. –
Eu não diria que é só isso, mas é isso também. O fato de aceitarmos essa banalização, o fato de aceitarmos que a mídia exponha a mulher o tempo inteiro, que faça dela um produto é muito grave. A agenda de uma revista feminina no Brasil é a mesma há mais de 100 anos: “Como prender seu homem”, “Como ficar mais gostosa”, “Como ficar com um corpo irresistível”. O fato de as mulheres aceitarem isso é bastante denotativo da baixa consciência do seu papel, é denotativo do seu baixo nível educacional. Não é só isso. Isso é uma ponta da história. Mas as outras pontas são essas das próprias mulheres serem parceiras nesse projeto de todas virarem “Mulheres Frutas”. No fundo, todas elas gostariam de ser diferentes do que são. Investem barbaridade no aspecto exterior, sem investir na formação educacional, na formação intelectual. Eu lembro, por exemplo, que nesse horror que foi o massacre do Realengo é constrangedor para um educador ver um número de meninas, já tão jovens, aspirarem a ser modelos. Ninguém ali queria ser uma grande cientista, uma grande médica, uma grande política, muito distante do que deseja Dilma Rousseff. Todas queriam apenas ser modelos. Então, tem alguma coisa errada na nossa sociedade. Acho que uma das coisas mais importantes é a falta de consciência da mulher brasileira em relação a seu papel. Estamos vivendo um momento delicado, que temos de refletir. Mas acho que é um momento que nos convida, sobretudo nós, mulheres brasileiras, a pensarmos um pouco melhor sobre o nosso papel na sociedade. Nos países ditos desenvolvidos, e o Brasil diz que está quase lá, você tem segmentos inteiros de grupos de mulheres que lutam contra a coisificação da mulher. Não estou falando do Estado nem da Igreja, mas de organizações não governamentais que lutam contra isso. Na França, por exemplo, é proibida a venda de qualquer revista com alusão a sexo, com mulheres desnudas. Anúncios de lingerie são terrivelmente controlados, não pelo Estado nem pela Igreja, mas pelas próprias mulheres, que, por meio de mecanismos de redes sociais, interferem na produção das imagens delas mesmas.

Brasileiros – No Brasil, estamos muito distantes disso…
M.D.P. –
O que é lamentável. Nos anos 1980, nós tivemos movimentos de mulheres nesse País, tivemos movimentos em favor de creches, de saúde, de uma escola pública de qualidade, de professores mais bem remunerados. Isso tudo acabou com esse individualismo exacerbado que vivemos. Com a entrada da mulher no mercado de trabalho, da liberdade sexual, dessas novas formas de família que não dão para ela muito tempo, e essa obsessão pela beleza perfeita, essas conquistas foram lamentavelmente deixadas de lado. Como eu digo, o véu da mulher brasileira, seu xador, é o espelho, é a imagem que ela quer projetar no espelho.


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