O Tonho Penhasco é uma figura, empunhando sua Fender Stratocaster meio genérica, cheia das adaptações nem sempre agradáveis de serem vistas. Gambiarras, dizem alguns, traquitanas, prefere ele, que há três décadas gravita em torno do que de melhor se faz em música em São Paulo. Foi membro das primeiras formações das bandas de Tom Zé, Arrigo e Itamar, parceiro constante de Maurício Pereira e Skowa, e atualmente finaliza seu terceiro CD solo. Não satisfeito em executar os sons que surgem em sua cabeça, Tonho sempre se meteu a criar instrumentos que os produzissem de fato. Reunidos pela artista plástica Biba Rigo e a sócia Luiza Sandler, do Ateliê Funilaria e Pintura, mereceram a exposição batizada Feitura, com direito a workshop e jams dos convidados. Segundo uma expressão recolhida pelo multitalentoso Maurício Pereira, autor do release da mostra, o trabalho de Tonho é inspirado na “invencionice do Professor Pardal, misturada com a gambiarrice do Pateta”. É ver para crer. E ouvir.
Tonho lembra Walter Smetak, o suíço que chegou ao Brasil em 1937, como violoncelista, deu aula em vários Estados, radicando-se na Bahia e vinte anos depois criou instrumentos incríveis, foi professor de Gilberto Gil, do instrumentista Tuzé de Abreu e do intelectual e designer Rogério Duarte.
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Nascido em São Paulo, no bairro de Pirituba há 54 anos, o Antonio Carlos de Oliveira tocava em conjuntos de baile, curtia Beatles, Led Zeppelin e só foi “atravessar o rio” para cursar engenharia na USP (Pirituba fica “longe”, depois do rio Pinheiros em direção oeste). A aventura durou pouco – o suficiente para ganhar sólidas amizades, dado o número de senhores de lapiseiras no bolso da camisa cumprimentando-o nos camarins de seus shows. Logo, estava mais à vontade na Comunicações (ECA), onde ganhou o apelido e teve como colega Arrigo. Já, Itamar, Tonho conheceu na praia, por intermédio do designer e músico Sérgio Guardado. Meados dos anos 1970, perío-do em que acompanhou Tom Zé e organizou na USP festivais batizados, vejam vocês, WoodstECA. E Tonho a mil. É a sua guitarra que se ouve em Diversões eletrônicas, parceria de Arrigo e Regina Porto, que venceu o pioneiro Festival Universitário de Música Popular Brasileira, realizado pela TV Cultura em 1979; e em Nego Dito, música de Itamar que tirou terceiro lugar no Festival da Vila Madalena do mesmo ano. Mas Tonho não figura nos respectivos discos de estreia dos artistas, embora tenha tocado com eles várias vezes esses anos todos.
As traquitanas e gambiarras tomaram forma em sua arte quando começou a trabalhar em suas composições e preparar aquele que seria seu primeiro disco, aliás batizado Traquitana e que traz na capa um cabo com uns trastes e arames simulando cordas. Tonho usava aquilo para estudar o dedilhado sem incomodar ninguém ou ter de carregar o instrumento. Mas não é tão simplório assim.
É que ele tinha visto a Madalena Tagliaferro apresentar um teclado desenhado em linóleo que ela desdobrava onde queria para estudar. E, de fato, músicos fazem isso. Caso do desconhecido percussionista Anunciação (Hermeto Pascoal, etc.), que estudava bandolim em uma placa de compensado com o formato do instrumento, ou do célebre João Carlos Martins, que tem um pianinho tridimensional silencioso – como se diz traquitana em búlgaro? No fundo, Tonho filosofa, é o velho sonho do músico que toca em seu próprio instrumento.
Enquanto compunha e gravava, foi fazendo experiências com timbres alternativos, principalmente para percussão. Começou com cajons (caixa de madeira com um furo circular em um dos lados, na qual o músico senta em cima e bate entre as pernas ou dos lados, instrumento muito comum em Cuba, Peru e outros países da América Latina). Só que os cajons de Tonho eram de lata e tinham vários tamanhos. O maior deles acabou sendo batizado Tutancajon, já que se parecia com um sarcófago. Segundo o artesão, que tem como meta a execução e o som, “que se dane o visual e o acabamento”.
Ele diz, também, que o “talento” inventivo vem de família. O pai trabalhava em uma fábrica de papel e sempre tinha “ideias para melhorar” a maquinaria. Porque o essencial não é “dar um jeitinho, mas reforçar, aperfeiçoar, tornar robusta a coisa”, diz Tonho, que atribui o cuidado à ascendência alemã, aos bisavós. Sua mãe também é “gambiarreira”, só que meio ovelha-negra já que prefere trabalhar com coisas finas e cuidar do acabamento minuciosamente. A inspiração principal veio da avó, mãe da mãe, que pegava caixotes e transformava em guarda roupa, fazia seu próprio sabão e tinha como mote: “Não vou gastar com besteira, deixa que eu faço”.
Biba e Luiza reuniram um belo acervo de Tonho para a exposição. A começar pela guitarra que tem um corpo quadrado, não como a do Bo Diddley, mas menor, estreito como a do Police Andy Summers, a Steinberger. Na verdade, o corpo é um caibro que Tonho viu no quintal desde criança. Pegou 50 anos de sol e chuva, já foi cerca e esteve no galinheiro. Quando ele tentou serrá-lo, viu que era como mármore, batizado de Les Pau, por motivos óbvios. Tem também o Cavalaica, que é uma mistura de balalaica russa com cavaquinho, equipada com cordas de nylon – três de violão e uma de pesca – e o violão, que surgiu de um cabo de violão Del Vecchio encontrado por Biba em uma caçamba de lixo. Ligado em um amplificador – uma linha deles, criações igualmente toscas de Tonho -, tem um timbre aveludado semelhante ao de um piano elétrico Fender Rhodes. Lindo.
Uma das joias da coleção é o violoncelo de duas cordas que tem como corpo uma caixa de engraxate – alguém lembra como é? Em Pirituba ainda tem. A opção por duas cordas vem do fato de Tonho não conseguir fazer a curvatura necessária para a execução com arco. Recebeu o nome apropriado de Engracello. A exposição traz ainda um violino que não deu certo. “Aprendo muito com meus erros”, justifica Tonho, que promete para breve uma guitarra acústica e uma bateria. O artista diz que não corre atrás. Seu trabalho é como “uma mijadinha no poste”. Vai lá todo dia e faz um pouco. Nunca pensa em acabamento. Se o objeto cumpriu sua função, ele o abandona. Felizmente, a Biba recolhe. E exibe.
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