O luto de dona Diná

Há 26 anos, dona Diná Ramos começou a trabalhar como bilheteira do Teatro Cultura Artística, patrimônio histórico e cultural da cidade de São Paulo, localizado em meio ao burburinho dos teatros do centro antigo da cidade, na charmosa Praça Roosevelt. Hoje, dona Diná subiu seu cargo e é gerente da bilheteria do teatro. Já aposentada, não parou de trabalhar e nem pretende, ama o que faz. Criou a filha Tatiana entre cabines e coxias. Aos dois anos de idade, a filha única passou a freqüentar o trabalho da mãe e mantém vínculos fortes com o lugar até hoje.
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Na manhã do domingo, dia 17, dona Diná estava caminhando normalmente na feira livre da Praça Roosevelt e, desavisada, encontrou o teatro reduzido a pó. “Só vi fumaça, e me assustei com os 17 carros de bombeiros que lá estavam”. Na madrugada de domingo o teatro foi quase que inteiramente destruído pelo fogo, um incêndio ainda sem causa certa. Para a senhora de cabelos brancos e sua filha Tatiana, o período está sendo de luto. “É como se tivéssemos perdido alguém de nossa família, alguem próximo a todos os que aqui trabalham. O teatro foi a minha creche, o meu parque de diversões, minha segunda casa e a família de minha mãe”, relata Tatiana.

A simpática senhora fez do teatro, dos companheiros de trabalho, dos administradores, diretores e atores a sua família. Uma vida dedicada ao teatro e construída junto a ele. Antes de trabalhar na Rua Nestor Pestana, 196, no bairro da Consolação, dona Diná trabalhava na TV Record, era bilheteira dos grandes festivais de música do canal e lá teve o primeiro contato com o mundo das artes. Paulistana nata, viveu por muito tempo no bairro da Bela Vista, mas hoje mora na Zona Norte. Cursou somente até o segundo grau, diz que tudo o que aprendeu foi com as pessoas com quem conviveu nestes anos todos. A paixão pela música clássica e pelo teatro foi desenvolvendo-se com os anos de convívio, sempre como uma espectadora assídua de todos os espetáculos que passavam pelo Teatro. Porém, nos palcos e coxias ela nunca se atreveu.

O incêndio no teatro causou também certo incêndio na cabeça de dona Diná, que entrou em estado de choque nos últimos dias, sem conseguir se lembrar muito dos detalhes das histórias que por lá passou. No entanto, saltitam em sua mente as peças mais memoráveis que assistiu no palco da grande sala Esther Mesquita, como Irma Vap (com o ator Marco Nanini), Edith Piaf (com Bibi Ferreira), a montagem japonesa Kodo, que estava com data marcada para retornar em novembro, e a mais recente, O Avarento, com o saudoso Paulo Autran. “São memoráveis estes espetáculos e orquestras em minha cabeça, coisas lindas e emocionantes que já passaram por lá. A música clássica me toca demais”, recorda, emocionada.

Foto: Sociedade Cultura Artística/Divulgação
Acima, a fachada do teatro em março de 1950, data de inauguração, com o painel de Di Cavalcanti. Abaixo o palco, hoje silenciado pelo fogo

Não só Tatiana e dona Diná estão de luto. Toda a Sociedade Cultura Artística chora a destruição do local. Seus grandes atores, como Marco Nanini – que inclusive estava em cartaz com o Bem Amado, e havia se apresentado no sábado, horas antes do incêndio -, Antônio Fagundes, Marília Pêra, entre outros que passaram vidas dentro dos palcos e coxias, organizarão junto com funcionários e a família cultura artística um ato em homenagem aos anos dourados do teatro. No próximo sábado, dia 23, todos com rosas na mão vão marcar presença no histórico local.

Os prejuízos ainda não foram calculados, assim como os prazos para uma reconstrução, mas dona Diná parece acreditar fielmente em um novo teatro no mesmo lugar e nos mesmos moldes. A situação ainda é delicada. Os 50 funcionários da limpeza e segurança receberam promessas do superintendente Gérald Perret de serem reempregados em outros estabelecimentos. A situação de dona Diná ainda é incerta, já que continua trabalhando para o teatro, nos espetáculos transferidos, e com o reembolso de ingressos vendidos.

A equipe de funcionários do teatro é fiel. O diretor Paulo, que está no cargo há 27 anos, costuma dizer a dona Diná que ela é uma figura tão parte daquele lugar que os atores antes de entrarem em cena tinham o costume de cumprimentá-la. Edson Barth, gerente de bilheteria como dona Diná, está na casa há dez anos. Para ele, amante da música e pianista nas horas vagas, o contato com o teatro e os concertos internacionais, de orquestras importantíssimas, já vale como um grande aprendizado. “Há um incentivo muito grande por parte da diretoria de colocar todos em contato com os espetáculos, que muitas vezes seriam impossíveis de eu assistir, como os concertos das orquestras internacionais, já que os preços estão na faixa dos 200 reais.”

Logo após uma pausa para a conversa no saguão do Hotel Maksoud Plaza, no bairro da Bela Vista, onde dona Diná estava ressarcindo o dinheiro dos clientes que haviam comprado ingressos antecipados para as peças, ela se volta para trás da bilheteria e segue sua rotina, à espera da poeira baixar para continuar a trabalhar normalmente. “Se parar não tem mais graça, perde o sentido”, diz, agora já um pouco recuperada do susto.

Foto: Sociedade Cultura Artística/Divulgação
Maestro Heitor Villa-Lobos esteve na inauguração do teatro, em março de 1950

O Teatro
A Sociedade Cultura Artística tem 96 anos de vida e há 58 anos está sediada na Rua Nestor Pestana. Nos seus anos dourados era chamado de Teatro de Cultura Artística. Depois de produzir diversos saraus itinerantes pela cidade, Mário de Andrade, Esther Mesquita e outras importantes figuras do cenário cultural paulistano inauguraram o prédio, projetado pelos arquitetos Rino Levi e Roberto Cerqueira César, na noite de 8 de março de 1950, com concertos dos maestros e compositores brasileiros Heitor Villa-Lobos e Camargo Guarnieri, o que já demonstrava a vocação do lugar para a música e as grandes orquestras.
Décadas se passaram e o Cultura Artística resiste, uma rara exceção, um dos mais importantes teatros da cidade, e que não teve seu nome vendido para os grandes empreendimentos comerciais que dominam os espaços culturais de hoje.

Depois do incêndio, em sua fachada ainda permanece intacto o maior painel que o artista plástico Di Cavalcanti já produziu, com 48 metros de largura por oito de altura, feito de mosaico de vidro e inaugurado junto com o teatro. O fogo, por sorte, não causou grandes estragos, a não ser pela queda de algumas pastilhas, que podem ser recolocadas.

Os abalos do incêndio chegaram a atingir também os cenários das duas peças que estavam em cartaz, O Bem Amado e Toc Toc, que foram completamente destruídos. O que não foi atingido pelo fogo, foi encharcado pela água dos bombeiros. Felizmente o acervo de materiais do teatro, que existe desde 1912, parece estar intacto.


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