Passa um pouco das duas horas da tarde nesta primeira terça-feira de março, um dos dias mais quentes do ano, quando finalmente encontramos nosso personagem chegando a Barra do Ribeira. Estamos numa das portas de entrada da Estação Ecológica Juréia-Itatins, a maior reserva de Mata Atlântica do Brasil, com quase 80 mil hectares, um santuário da vida marinha declarado Sítio do Patrimônio Mundial Natural pela Unesco, que se espalha por cinco municípios do litoral sul paulista. Barra do Ribeira é um bucólico distrito de Iguape, município de 30 mil habitantes e 1.980 quilômetros quadrados, o maior do Estado em área.
O combinado era meio-dia, mas como aqui não pega celular, não dava para falar com ele e saber o que estava acontecendo.
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O popular Doutor Aziz, como todos o conhecem por aqui, já desce do carro fazendo festa para todo mundo que encontra pela frente, perguntando pelos doentes da família. Até os cachorros chegam correndo ao avistar esta improvável figura de médico, sem nenhuma preocupação com o figurino, com suas roupas e modos de eterno estudante.
Como faz todas as semanas, o cirurgião-geral Aziz Miguel Filho, paulistano de 55 anos, deu plantão no Hospital Municipal do Tatuapé, na zona leste de São Paulo, das sete da manhã de sábado às sete da manhã de domingo, e voltou às sete da noite para outro plantão, que terminou às sete da noite de segunda. Mas, ao contrário do que costuma fazer, desta vez ele teve o bom senso de só partir no dia seguinte para Barra do Ribeira, e acabou se atrasando na viagem.
Quando pergunta “como vai, tudo bem?” a um dos 1.800 moradores deste bucólico lugarejo, onde o Rio Ribeira do Iguape, que vem do Paraná, deságua no mar, invariavelmente Doutor Aziz ouve alguma queixa como resposta. Onde quer que esteja, almoçando no restaurante, no bar com amigos, caminhando pela calçada ou em sua modesta casa de um dormitório numa rua de terra alugada por R$ 400 mensais, ele não escapa de dar uma consulta. Ninguém pode ver o médico sem se queixar de algum achaque da saúde ou de problemas de saúde com alguém da família. É raro alguém lhe responder “tudo bem, doutor”.
Antes mesmo de passar em sua casa, Doutor Aziz come rapidamente um petisco de isca de peixe e começa sua romaria ambulatorial visitando os pacientes. Esta é sua rotina em Barra do Iguape, faz dois anos e meio, agora sem nada receber. Desde o final do ano passado, quando foi demitido por divergências com o Departamento Municipal de Saúde, onde recebia um salário de R$ 4.800, ele paga para trabalhar.
Em janeiro, o vereador Joaquim Antonio Coutinho Ribeiro encaminhou requerimento à prefeitura de Iguape, reivindicando o retorno de Aziz a Barra do Ribeira para atender a um pedido da população. Em resposta, o DMS afastou essa possibilidade e informou que está contratando um novo profissional. Alega que ele se afastou do posto de saúde por quase cem dias sem informar a equipe e seus superiores. Aziz garante que tinha direito a dois meses de férias e não retornou no prazo por precisar resolver problemas familiares em São Paulo, atribuindo seu afastamento a razões políticas. Desde então, Barra do Ribeira ficou por conta de um enfermeiro, um auxiliar e agentes comunitários de saúde, e ganhou uma pequena ambulância.
Mesmo sem contrato, porém, Aziz voltou a atender seus pacientes no começo do ano. Além do aluguel da casa, arca com as despesas de combustível e de farmácia porque, segundo ele, não adianta dar a receita porque a maioria dos doentes não tem condições de comprar os remédios e poucos estão disponíveis no posto de saúde. Nos casos mais graves, transforma seu Fox preto ano 2005 em ambulância e paga R$ 7,50 na balsa para ir a Iguape ou leva para São Paulo quem necessita de cirurgias. Gasta com seu trabalho voluntário em torno de R$ 2 mil por mês, mas ninguém espere ouvir tristezas da sua boca.
Pai solteiro de Thiago, 19 anos, que estuda filosofia na Unicamp, o médico mora quando está em São Paulo com uma tia, Vera, e o cachorro, Fome Zero, num apartamento em Perdizes, e se vira com o salário de R$ 6.500 que recebe da prefeitura de São Paulo para dar seus plantões na área de urgência e emergência do Hospital Municipal do Tatuapé. Ali também tem a função de preceptor, quer dizer, orienta, acompanha e passa sua experiência aos jovens médicos residentes, trabalho que o deixa muito feliz.
“Acho que já nasci médico”
Foi lá que o conheci na sala dos médicos durante o plantão do sábado de carnaval. Entre uma emergência e outra, foram mais de duas horas de entrevista na qual Aziz Miguel Filho me contou como virou um médico apaixonado pela sua profissão. Na verdade, desde pequeno ele sempre quis ser médico, nunca pensou em ser outra coisa na vida.
“Eu não tinha nenhum parente médico. Sou o primeiro com curso universitário em toda família, acho que nasci médico. Desde que meu pai morreu, eu já falava que ia ser médico. A família achava que eu era louco. Como poderia estudar medicina naquelas condições, sem ter grana?… Só minha mãe sempre me apoiou.”
Descendente de imigrantes sírios e libaneses, Aziz perdeu o pai, dono de uma pedreira na Freguesia do Ó, quando tinha apenas 4 anos. Aziz pai tinha 27 anos. Morreu num acidente ao volante do seu caminhão na via Anhanguera, entre Araras e Leme, no interior paulista. Ficaram somente ele e a mãe, Walkiria Guilhermina da Silva Miguel, “o maior amor da minha vida”, que morreu recentemente.
Walkiria teve de procurar emprego. Arrumou logo dois: foi trabalhar como auxiliar de dentista durante o dia e, à noite, era vendedora no Mappin, a grande loja de São Paulo na época. Mudaram-se para a casa dos avós maternos, Maurílio e Clarice, em Perdizes, onde Aziz foi matriculado na escola pública. Com 15 anos, ele teria sua primeira experiência como “médico”. O primeiro “paciente” de quem cuidou foi exatamente o avô Maurílio, dono de uma auto-escola, quando ele foi internado com diagnóstico de câncer no Instituto Arnaldo Vieira de Carvalho, da Santa Casa.
“Menores não podiam ficar no hospital. Mas eu entrava de madrugada e ficava na janela da enfermaria olhando o trabalho dos médicos e das enfermeiras, fazendo perguntas pra eles. Quando meu avô teve alta, eu que fui cuidar dele em casa, trocava a sonda do esôfago…”
Nessa época, Aziz parou de estudar e foi trabalhar como empacotador no supermercado Peg-Pag, na Rua Cardoso de Almeida, perto de sua casa. Só recebia o dinheiro das gorjetas. O primeiro “salário de menor”, ele foi ganhar trabalhando como office-boy de uma agência de turismo. E não parou mais. Passou a estudar à noite quando arrumou um emprego de auxiliar administrativo externo na Codema, uma revendedora da Scania. Fez três anos seguidos de cursinho no Pré-Médico do Objetivo, mas não havia jeito de ser aprovado no curso que mais queria. Entrou em biomédicas, odontologia, educação física e até em sociologia e política, tudo menos medicina.
“Comecei a achar que eu era burro. Rodei o Brasil prestando vestibular em tudo quanto é lugar, fui parar até em João Pessoa…”, lembra ele, dando risada. Só depois de muita insistência, em dezembro de 1978, Aziz seria aprovado no vestibular da Faculdade de Medicina de Vassouras, no Estado do Rio, onde se formou.
Como a faculdade era particular, vendeu o carro que tinha comprado, um Fuscão 1500, para custear o primeiro ano de estudos. No segundo, ganhou um crédito educativo da Caixa Econômica Federal, que só começou a pagar dois anos depois de formado, e foi dar aulas de ciências à noite num colégio público, em troca apenas de um certificado de estágio, sem ganhar nada. “Acho que sou um turco do avesso… Não sei ganhar dinheiro…”.
Até se formar, sua sobrevivência foi garantida pela mãe. Em troca, nunca repetiu de ano. Estudava até no período em que outros alunos saíam de férias. Trabalhar de graça não é novidade na sua vida. Nos finais de semana, começou a prestar atendimento médico numa casa de crianças carentes num subúrbio carioca e, mais tarde, foi dar plantão aos sábados no Hospital Carlos Chagas, em Marechal Hermes. “Sempre gostei de ajudar os outros”, constata assim meio de passagem na conversa. Em 1982, recebeu seu diploma de médico.
Ainda na residência médica do hospital da faculdade, optou por clínica geral. Mas se desiludiu logo ao não perceber resultados no seu trabalho. Seus pacientes mais pobres não tomavam os remédios que ele receitava, não tinham como seguir as dietas e os cuidados prescritos. Voltavam sempre com os mesmos problemas. Por isso, ele resolveu ser cirurgião.
E foi parar logo no Hospital Souza Aguiar, no Rio de Janeiro, o maior hospital de emergência do País. Não desanimou ao saber que só havia quatro vagas para 92 candidatos. Aprovado, lá ele conheceria um médico, Augusto Paulino Neto, que seria fundamental na sua formação profissional e, principalmente, na maneira de tratar os doentes. Acabava ficando amigo deles. Como aconteceu com Pedro, um menino de 12 anos, que sofreu um profundo corte no abdômen ao se acidentar numa serra de carne do supermercado onde trabalhava, primeiro caso que o deixou feliz ao ver o resultado.
O patrão do menino, ao ver a dedicação do médico até curar o paciente, colocou um cheque no bolso do seu jaleco que correspondia a umas 20 vezes o salário de residente. Aziz recusou a oferta, dizendo que fez apenas a sua obrigação, e recomendou que o empresário doasse o dinheiro ao hospital, que estava precisando de tudo, de travesseiros a medidores de pressão.
Em 1983, ainda no Rio, quando trabalhava na cirurgia pediátrica do Hospital Estadual Getúlio Vargas, na Penha, apresentou-se como voluntário para prestar assistência aos feridos na guerra do Líbano, mas não foi aceito. Ganhou apenas uma carta de agradecimento do Consulado do Líbano. Tempos depois, foi convidado para ser o médico da seleção de futebol sub-20 do Catar, que veio treinar no Rio. Em dois meses, juntou mais dinheiro do que em quatro anos trabalhando como médico.
“Em vez de comprar um carro ou uma moto, resolvi conhecer outros países. Falei para a minha mãe: vou para a Inglaterra, vou aprender inglês, ver como eles trabalham lá. Em três dias, já estava em Londres.”
Levando no bolso uma carta de apresentação do seu mestre, o doutor Augusto, arrumou um estágio no Saint Stevens Hospital para conhecer técnicas cirúrgicas e a organização dos serviços de saúde. “A estrutura dos ingleses é fantástica. Mas, como cirurgiões, os nossos dão de 10 a 0 neles…”. Passou um ano na Europa e conheceu 18 países. Na volta ao Brasil, iniciou sua carreira de médico da prefeitura de São Paulo. Foi na administração de Jânio Quadros, o prefeito que construiu vários pronto-socorros na periferia e precisava de médicos para cuidar deles. Não podia ver ninguém de branco andando na rua que já ia logo contratando, lembra Aziz, divertindo-se com sua própria história. Começou pelo PS de Itaquera, na periferia da zona leste e, sempre irrequieto, disposto a enfrentar novos desafios, rodou por vários hospitais da cidade.
Sem nunca deixar de fazer cirurgias, ocupou também vários postos de chefia e direção, foi assessor de planejamento da Secretaria da Saúde na administração de Luiza Erundina, coordenador de urgência e emergência da Grande São Paulo na Secretaria de Saúde do Estado, no governo Mário Covas, depois trabalhou em São Vicente, na Praia Grande, em Ferraz de Vasconcelos e deu aulas na Faculdade de Medicina de Santo Amaro.
Nestas suas andanças, Aziz só iria conhecer a Juréia em 2001, levado por uma prima advogada, Janeth Abduch, e de cara se apaixonou pelo lugar. Ficou sabendo que havia uma vaga de médico na prefeitura, prestou o concurso e foi aprovado. Mas não durou muito esta sua primeira passagem por Iguape. Inconformado com a total falta de recursos, ele resolveu pedir ajuda à Secretaria de Saúde do Estado, mas pegou mal.
“A secretária de Saúde de Iguape era uma enfermeira, que ficava perguntando: o que uma pessoa com esse currículo vem fazer aqui? Este cara vai querer pegar meu lugar… Não podia dar certo…”. Aziz só voltaria para a cidade em 2006, quando já havia outra administração, e está lá até hoje, embora sem consultório, cargo nem emprego. Virou médico ambulante.
Pacientes nas casas e nas ruas
Vamos agora conhecer de perto o trabalho do Doutor Aziz e saber como vivem seus pacientes. Entramos primeiro numa edícula onde mora o metalúrgico e artesão Antonio Lira, de 56 anos, nascido em Santos, aposentado por invalidez, com um salário mínimo, portador de hanseníase. Com a mulher e seis netos, ele vive nos fundos de um corredor escuro. A casa só tem dois cômodos: sala/cozinha e um quarto de dormir, com um beliche e uma cama de casal. O banheiro fica do lado de fora.
Antonio trabalhava nos altos fornos da Cosipa, em Cubatão, quando aconteceu “o acidente”, como ele diz, faz 25 anos. Levou dez anos para conseguir a aposentadoria e teve de amputar o pé direito. Até hoje sofre as sequelas da hanseníase, obrigado a fazer curativos todos os dias. “Eu me tratava com ele, sinto falta quando não está aqui”, conta o aposentado, apontando para o médico. Autorizado pela direção do Hospital Municipal do Tatuapé, era de lá que Aziz trazia o rayon, uma gaze especial para fazer os curativos em Antonio.
O tratamento prescrito pelo médico previa alimentação especial, à base de proteínas, e muito repouso para fazer os enxertos de pele necessários. Como? Metade do seu salário Antonio gasta com o aluguel da edícula. Ele criou seis dos dez filhos do primeiro casamento de Lenil da Silva Pinto, de 64 anos, com quem vive há 22 anos. Destes seis, dois se separaram e deixaram com o casal seis netos para criar. Lenil ganha meio salário mínimo de pensão e Antonio completa a renda vendendo objetos de artesanato feitos com palitos de sorvete, caminhando de muletas pelas ruas. A família não recebe cesta básica nem bolsa-família.
Lenil chora ao me contar sua história, mas Antonio de nada se queixa. “Eu agradeço sempre a Deus porque conheci nos hospitais pessoas que estão numa situação mais difícil do que a minha.” Custo a acreditar que seja possível. Aziz examina Roger, o neto de oito anos, que está largado no sofá, com febre há vários dias. Diagnostica amidalite e dá a receita para Antonio buscar o remédio no posto de saúde. Por sorte, o fotógrafo Manoel Marques o levou até lá de carro. No posto, informaram-lhe que não dispunham daquele remédio. Por insistência do fotógrafo, misteriosamente acabou aparecendo.
Catarinense de São Francisco do Sul, Lenil conheceu Antonio em Santos, depois de criar coragem para se separar do pescador Alfredo, um homem muito boêmio que batia nela, quando a filha menor completou sete anos. “Deixei tudo para trás e fui trabalhar como camareira em Santos. Eu sou espírita e o Antonio veio para a minha mão quando fui benzer o pé dele. Até hoje nós vivemos e sofremos juntos. Quando tem, a gente come. Quando não tem, espera por Deus outro dia, e vai levando a vida.”
Mas Lenil não espera que as coisas caiam do céu. Já tomou a decisão de que nos próximos dias a família vai invadir uma casa abandonada faz 30 anos no Balneário Bahamas, em Barra do Ribeira. Até já pegou um empréstimo consignado no valor de R$ 2.900 para fazer uma reforma na casa, que tem três quartos e espaço para os netos brincarem. “Nem sei como vou pagar o empréstimo, mas não tinha outro jeito. Aqui as crianças dormem no chão, não tem lugar para brincar, preciso tirar elas daqui. Somos muito humilhados pelos vizinhos.”
A mudança já estava toda embrulhada em sacos de lixo. O grande sonho de consumo da família agora é ganhar uma canoa com motor para os filhos, que são pescadores. Lenil não pensou em pedir ajuda para político nem para padre, mas para o apresentador Gugu. “Já escrevi duas cartas para ele. Até hoje não tive resposta.” Quem sabe, se Gugu ler esta reportagem, dona Lenil não tenha seu pedido atendido…
Diagnóstico comum: pobreza
Quatro da tarde, um sol quente de assar peixe na calçada. Nossa romaria pelo Brasil real estava só começando. É sempre assim. Aziz costuma ficar mais tempo ouvindo as histórias dos seus pacientes do que recomendando exames e remédios. O diagnóstico comum a todos é um só: pobreza. Com as duas pernas amputadas até a virilha, sentada no sofá, Avelina de Aguiar Marques, de 83 anos, abre um enorme sorriso ao ver que o doutor Aziz está entrando na sala da sua casa.
“Meu coração, vem cá!”, ordena dona Avelina, e tasca um beijo no médico, abraça-o com força. “Se não fosse ele, mamãe não estava aqui viva”, atesta Marta Marques Freitas, de 53 anos, três filhos, de pé ao lado do sofá, como passa a maior parte do dia. Quando a temperatura baixa um pouco, no final da tarde, Avelina é colocada na cadeira de rodas e vai para a calçada ver o movimento, que é pouco por aqui, raros carros, um ou outro vizinho que vem prosear.
Ela sofria de trombose, tinha feridas nos pés, sentia dores insuportáveis nas pernas, que chegaram a ficar pretas. Depois de percorrer vários hospitais da região, Avelina conseguiu fazer a cirurgia em Pariqueraçu, a 80 quilômetros de Iguape, graças à ajuda do Doutor Aziz, faz seis meses. “Agora eu estou muito feliz, o senhor nem imagina… Se não fosse esse meu coração querido…”, derrete-se ela, pegando na mão do médico.
“Posso comer mingau de trigo, doutor?”, pergunta antes do médico se despedir. “Pode, sim. Pode comer também bastante uva, ameixa, mamão, banana…”, recomenda Aziz, mesmo sabendo que esses produtos são difíceis de encontrar nos mercadinhos. Frutas e verduras são artigos de luxo em Barra do Ribeira. Aqui as pessoas se alimentam basicamente de arroz, feijão e farinha – e peixe, claro, mas só quando o tempo ajuda, o que não é o caso destes primeiros dias de março, com muita chuva, que deixaram barrentas as águas do mar.
“Como está, doutor?”, pergunta uma jovem de 18 anos, mãe de três filhos, ao avistar o médico no carro. “Na paz. E você?”. Ela se queixa de cólicas e a consulta é feita no meio da rua mesmo. “Compra Buscopan e Diclofenaco. Toma os dois juntos.” Um vira-lata vem correndo, pula na porta e fica latindo até conseguir entrar. “É o Tor”, apresenta Aziz para o assustado fotógrafo sentado no banco de trás. “Vira-lata e bêbado me seguem o dia inteiro aqui…”. Além de médico ele aqui também é veterinário. Já recolheu garça ferida na beira da estrada e uma gaivota untada de petróleo na praia para tratar em sua casa, um refúgio de vira-latas.
Em seguida, ele nos apresenta sua “ajudante de palco”: Naiara Carvalho Lopes, 25 anos, estudante de pedagogia, que trabalhou por um ano no posto de saúde, organizando as fichas dos pacientes, marcando consultas, montando um banco de dados. Fim de tarde, os pescadores continuam conversando, como já fizeram o dia inteiro, na beira do Rio Suamirim, nestes tempos em que o mar não está para peixe.
“Tá feia a coisa… O mar tá grande… A água barrenta espanta o peixe… É a lua de quarta…”, explica-me um deles, sem ânimo nem para tomar uma cerveja. Aziz pergunta de um e de outro e, a caminho de sua casa, explica sua escolha por trabalhar neste encantador fim de mundo cercado de água e mata. “Eu moro aqui porque me sinto útil. Esta população aqui sempre foi muito carente, sem assistência. E em que outro lugar do planeta eu vou encontrar tanta vida como aqui, do ser humano, da planta, do céu, da água, dos animais? Não estou só dando, não, eu também sugo esta vida.” Belo e estranho lugar este, onde a natureza ainda é preservada e sobrevive com mais saúde do que os homens.
A viúva Ester Leite Lemos Tosi, de 71 anos, vem falar com Aziz, mas não é para fazer consulta nem pedir nada. Ao contrário, como viu o médico saindo da casa de dona Avelina, queria saber se está tudo bem com ela e se pode ajudar em alguma coisa. Dona de uma loja de roupas e artesanato em frente à casa de Avelina, ela não se conforma com a demissão de Aziz. “Se eu puder ajudar, o senhor me fala. Vou bater lata na porta da prefeitura. Eu estou viva por causa dessas mãos!”, me diz ela, apertando forte as mãos do médico pela janela do carro.
“Já ficou bom da perna?”, pergunta o médico para um velho na varanda. “Melhorou?”, quer saber de Carlos Alberto Ribeiro Silva, de 37 anos, que sofre de epilepsia desde os quatro. Em frente ao Supermercado e Padaria Suamirim, um homem vem se queixar de câimbras na sola do pé e a mulher dele de sangramento pelo seio. Crianças vêm correndo e param o carro só para dar um beijo nele. Agora entendo por que doutor Aziz é feliz aqui, mesmo sem salário.
Dia seguinte, oito da manhã, no bar do Nélio. Depois de nos encontrarmos para um rápido lanche de pão com ovo e tomar café, pegamos o barco a motor do Zezinho para subir o Rio Suamirim até o vilarejo da Costeira. Moram ali, em casas espalhadas entre a vegetação nativa da Mata Atlântica, umas 50 famílias. Ao subir o barranco de areia, fico sabendo por uma placa enferrujada que estamos na Fazenda Jussara, uma imensa área abandonada onde se colhiam palmitos.
Até onde a vista alcança, não se vê viva alma. Fica difícil imaginar que no meio do nada vamos encontrar uma escola que mantém um consultório médico nos fundos, o objetivo da nossa vinda. Mas, ao final de uma trilha no meio da mata, um calor de derreter mamona, lá estava ela, bonita e colorida, muito bem cuidada e equipada, a EMEF (Escola Municipal de Ensino Fundamental) do bairro Costeira da Barra. Os dois barqueiros que trouxeram a professora descansam no consultório, sem pacientes desde que o doutor Aziz foi embora para São Paulo no final do ano passado. Antes, ele chegava a atender até 20 pessoas por dia.
A professora substituta Valéria Ribeiro Borges, de 33 anos, brinca com seus oito alunos de várias séries na hora do recreio. Na sala de aula, bem fornida com material didático, televisão, aparelho de som e uma pequena biblioteca, o médico já deu muitas palestras falando de higiene e cuidados com a saúde, fazendo a medicina preventiva em que ele acredita.
Os alunos, de 7 a 10 anos, entram às sete da manhã e saem ao meio-dia, depois de almoçar. A cada dia vem a mãe de um aluno preparar a comida, permitindo que a professora fique o tempo todo em sala de aula. A prefeitura fornece os alimentos. Valéria conta para Aziz, com orgulho, o que aconteceu no final da temporada, quando a polícia já havia ido embora de Barra do Iguape.
“Um turista bêbado atravessava correndo com o carro na avenida principal, ia e voltava, ameaçando atropelar todo mundo. Um grupo de jovens se reuniu na praça e resolveu ir atrás dele de moto. Encurralaram o homem, precisava ver, e falaram que se não fosse embora iam jogar o carro dele na água. O cara fugiu na hora…” São muito raros estes casos, digamos, “policiais”, nesta região que só vê violência nos finais de tarde naqueles programas populares de sirene e sangue.
Próximo destino: Pontão da Juréia. Para chegar lá, deixamos o barco e fomos de carro pela praia, tomando cuidado com o horário da maré. Era preciso voltar antes das duas da tarde. O caminho é uma gincana entre troncos, galhos, arbustos e pedras deixados pelas chuvas. Vamos até a casa de dona Odete, uma paciente de Aziz que sofre há tempos com uma hérnia inguinal. A referência para chegar à casa é uma cruz fincada na areia. Odete mora ao lado de um cemitério plantado à beira mar que fica debaixo d´água quando a maré sobe muito.
“Dona Odete! Dona Odete!”, vai gritando o médico enquanto avança pelo terreno e entra na casa. Ninguém responde. Ela deve ter ido à cidade para fazer compras, conclui Aziz. Mas foi como? Nós estamos a oito quilômetros de Barra do Ribeira e aqui não tem ônibus, táxi, moto, nada destas coisas. Desistimos de esperar e, quando já estávamos voltando, saindo da areia para chegar ao centro da vila, demos de cara com uma senhora de cabelos grisalhos, carregando um fardo no ombro, que ficou feliz ao reencontrar o médico. “Ai, meu Deus, Doutor Aziz!…”.
Era a própria Odete de Lima Florido, uma senhora distintamente vestida, de blusa branca e saia estampada, vaidosa de anéis e colares, carregando três sacolas com uns dez quilos de mantimentos. “Não falo a idade para não perder os namorados…”, brinca ela, sempre bem-humorada. Quando lhe pergunto quantas horas leva para ir e voltar a pé da cidade, diz que não faz idéia, apesar de usar relógio. “Vou olhar a hora para quê? Que diferença faz a hora para mim?…”.
Lá onde o relógio é só enfeite
Na verdade, o relógio é só enfeite. Odete não sabe ler nem escrever e também não diz a idade porque não tem certeza. “Acho que uns 62, 63, não sei…”. Mais tarde, o pescador Antonio Carlos da Costa, seu filho de 52 anos, me conta que ela tem 78, mas não existe na casa nenhum documento para provar. Sem mostrar cansaço, dona Odete brinca com seus cachorros e gatos, puxa uma cadeira e começa a lembrar um pouco da sua história.
Conta que só tem dois filhos vivos, “esse malcriado aí e um outro que mora em Iguape”, nasceu por ali mesmo num sítio ao pé da serra e mora há muitos anos nesta propriedade de um certo Benevides Apolinário, conhecido por “Marinheiro”, que não deixou herdeiros. Quando ele ficou doente, Odete dava comida e lavava a roupa para ele. Em troca, “Marinheiro” lhe deixou o terreno e a casa onde mora, e um dinheirinho no banco, que ela não sabe de quanto é. “Só sei que todo mês vou lá e o pessoal do banco me dá um dinheirinho que dá pra viver”.
Odete é viúva, não tem documentos, não recebe pensão do marido que era pescador, não sabe o que é bolsa-família. A casa não tem luz, a água é puxada do poço num balde e ela também nunca ouviu falar no programa Luz para Todos, que está tirando milhões de brasileiros do escuro. Tão perto de São Paulo, a maior cidade do País, o povo aqui é tão pobre que não sabe nem pedir, não conhece seus direitos.
Doutor Aziz balança a cabeça ao ouvir a história de Odete, que conta tudo com um sorriso na boca, sem se queixar de nada. Promete tomar providências: vai levá-la para tirar documentos, fazer exames, marcar a cirurgia de hérnia num hospital. Antes de se despedir, porém, ainda tem de atender a outra consulta. Antonio Carlos, o filho, vem-lhe mostrar algumas radiografias do joelho, diz que não consegue mais trabalhar na pesca.
“Você tem que operar o menisco”, diagnostica, sem muita dificuldade. Quem vai cuidar disso? O próprio médico, claro. “Acho que vou ter que me encostar, doutor, não dá mais pra trabalhar…”, diz o pescador, referindo-se à aposentadoria por invalidez. Aziz leva de presente uma muda de pé de mamão e se dá por muito satisfeito. Em volta da casa, um jardim de flores bem cuidado convive com o lixo dos pacotes de leite longa vida, garrafas plásticas e sacos de compras, ao lado da criação de galinhas, patos e perus.
No meio do nosso almoço, uma bela moqueca de siri, no Bar do Duca, aparece a professora Valéria, aquela que encontramos há pouco na escola da Costeira. “Eu sei que não é a melhor hora, doutor, mas…”, desculpa-se, já explicando logo o motivo da sua presença. As consultas costumam sempre começar assim, sabe o doutor Aziz. “Meu pequeno está com umas feridas na bunda, doutor, sente coceira, não consegue dormir. Já levei no posto, gastei R$ 34 em pomadas na farmácia, mas não melhora…”. Aziz marca uma consulta para depois que o menino sair da escola. Valéria vai embora feliz e ele também. Vida que segue.
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