O mercado contra o Estado

O mercado tem uma natural aversão aos governos de esquerda. Foto: BM&F/Divulgação
O mercado tem uma natural aversão aos governos de esquerda. Foto: BM&F/Divulgação

Segunda-feira, 14 de março. Um dia depois das manifestações contra a presidenta Dilma Rousseff, a Bolsa de São Paulo caiu 1,55% devido aos rumores de que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva iria aceitar o convite para ser ministro – o que dificultaria o impeachment. Mas subiu 6,6% no dia 17, com uma decisão judicial que suspendeu a posse de Lula como chefe da Casa Civil.

Desde dezembro tem sido assim: as ações sobem quando surge alguma notícia sinalizando o impeachment e caem quando o governo parece retomar o controle da situação. Os analistas de mercado reclamam que o governo se tornou o foco da instabilidade política: se Dilma caísse, a política econômica mudaria e o País poderia então retomar o crescimento. Por que, afinal, o mercado financeiro se colocou contra o Estado?

A conexão da Bolsa com o Poder Executivo é estrutural, pois ela depende diretamente da política econômica. Em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, Marx mostrou que, depois que Luís Bonaparte nomeou o banqueiro Fould como seu ministro das Finanças, a Bolsa passou a subir e cair de acordo com os êxitos e fracassos de seu governo. Mas o mercado tem suas preferências: há uma aversão arraigada dos investidores em relação aos “governos de esquerda”. Como explicam os cientistas políticos Lucio Rennó e Anthony P. Spanakos, os “partidos de esquerda normalmente são associados a políticas econômicas heterodoxas”. Por isso, sempre que um partido progressista ameaça chegar ao poder, são afetadas “as avaliações de risco de analistas financeiros”.

Não faltam exemplos disso: em 1989, após a vitória de Fernando Collor sobre Luiz Inácio Lula da Silva, a Bolsa chegou a subir 13% durante o pregão. Já em 2002, a Bolsa seguiu na direção oposta: o favoritismo crescente da candidatura de Lula provocou forte reação negativa nas Bolsas, pois sinalizava “mudanças que poderiam ser desfavoráveis ao mercado financeiro”, sustentam Rennó e Spanakos. A situação melhorou um pouco depois que o petista visitou a Bovespa, em 5 de agosto.

Embora a iniciativa não tenha afastado os temores quanto à sua vitória, ela serviu para sinalizar que o petista pretendia reverter o acentuado processo de declínio da Bovespa – que sob o governo FHC havia perdido grandes investidores para suas congêneres em Nova York, Londres e Frankfurt – e recolocá-la “no centro do cenário econômico do País”. Roberto Grün, professor titular da Universidade Federal de São Carlos, disse à Brasileiros que “isso aconteceu realmente”, o que levou o mercado financeiro a conceder um crédito de confiança a um “governo de esquerda”.

Em seu livro Decifra-me ou te Devoro: O Brasil e a Dominação Financeira (Alameda, 2014), Grün assinala que, em seu governo, Lula estimulou “a formação de fundos de pensão organizados por sindicatos e associações”, que contribuíram para revitalizar o mercado de capitais.

As medidas surtiram efeito. Em 2002, a Bovespa tinha encerrado o ano com uma variação negativa de 17,01%, tendo atingido 11.268,40 pontos. Em 2003, o índice subiu 97,33% – para 22.236,30 pontos, chegando a 73.516,80 pontos em 2008 – antes da eclosão da crise global, quando o índice despencou para 29.435,10 pontos. Houve certa recuperação em 2009 e 2010, quando o índice voltou a 72.995,60 pontos. Desde então, o índice tem caído ano a ano.

O declínio nas cotações levou a Bolsa a retomar sua hostilidade natural ao governo, “mesmo com o BNDES realizando muitas operações que alavancavam o mercado financeiro”, como disse Grün. A partir de 2011, o governo Dilma entrou em confronto com o mercado financeiro ao pôr em prática um audacioso programa para reindustrializar o Brasil: o Banco Central reduziu a taxa de juros de 12,5% para 7,25% ao ano. Pior: o governo pressionou os bancos privados a reduzirem os spreads e impôs controles sobre o fluxo de capital estrangeiro. A ofensiva de Dilma reavivou os velhos sentimentos. Como explica o cientista político André Singer, “ao reduzir os juros e forçar os spreads para baixo”, Dilma “tensionou o pacto estabelecido com o setor financeiro”. Na campanha de 2014, a aversão ao PT praticamente voltou ao patamar de 2002: basta lembrar que a Bolsa caiu 2,77% no pregão seguinte à reeleição da petista.

Apesar disso, o mercado se conformou com a situação a princípio. Uma vez empossado, o governo implementou um “ajuste fiscal” que frustrou profundamente o eleitorado da presidenta e sua base no Congresso, mas que correspondia aos desejos do “mercado”. Assim, a Bolsa caiu em julho de 2015 quando o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), declarou que passaria a fazer oposição ao governo, e subiu no dia 2 de outubro, após a reforma ministerial, na esperança de que as tensões diminuíssem. Quando a expectativa se desfez, o mercado passou a apostar todas as suas fichas na queda do governo: as ações subiram 3,58% quando Cunha aceitou o pedido de impeachment. O que explica esse comportamento? Como observa o historiador José Jobson do Nascimento Arruda, autor de A Florescência Tardia – A Bolsa de Valores de São Paulo e o Mercado Global de Capitais (1989-2000) (Edusc, 2011), a Bolsa nunca exerceu o papel clássico no Brasil (como na Europa e nos EUA) de ser um mecanismo de financiamento de novas atividades econômicas, pois ela não está vinculada à lógica dos empreendedores. “No Brasil, o mercado de capitais é o baluarte do processo de integração de uma economia periférica à economia mundial. O mercado acaba servindo a uma lógica rentista”, diz Arruda.

A prioridade desse estrato não é impulsionar o crescimento, mas garantir a segurança de seus retornos financeiros. Sempre que um governo tenta interferir no mercado, este reage com hostilidade. Como observam Rennó e Spanakos, a Bolsa não consegue determinar os ânimos do eleitorado (como mostrou a vitória de Lula em 2002), mas é capaz de, por meio dessa pressão constante, moldar a política econômica – como de fato ocorreu. O padrão recente da Bolsa só causa espanto porque o governo Lula sempre evitou os confrontos: assim que Dilma retomou um desenvolvimentismo “heterodoxo”, o velho antagonismo entre mercado e Estado ressurgiu.


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