O mercador de Veneza

Cruzei com Barbara Heliodora em uma estreia de teatro. Barbara declamou para mim um trecho da cena 1 do 4o ato de O Mercador de Veneza, em que Pórcia reflete sobre a cobrança de 1 libra da carne do devedor, feita pelo judeu agiota Shylock: “A graça do perdão não é forçada/Desce dos céus como uma chuva fina/Sobre o solo; abençoada duplamente/Abençoa quem dá e quem recebe”.

“Vou mandar para o Joaquim Barbosa”, concluiu a crítica com ironia. Barbosa anda mesmo impiedoso em sua dosimetria.

É difícil acreditar que José Dirceu vá entrar para a história como o maior corrupto que esse País já conheceu. Não é. Talvez, Dirceu seja o mais heroico dos revolucionários, ao aceitar a culpa para salvar o partido. Ou o mais perigoso dos políticos, ao conduzir um esquema para perpetuar o PT no poder pelas próximas décadas.

A alegação de que o caixa dois não é corrupção demonstra o quanto o PT operou dentro das controversas regras monetárias que imperam na política. Caso permanecesse fiel à retidão acusatória dos tempos de oposição, o partido enfrentaria o paradoxo do inflexível delegado de Medida por Medida, do mesmo W. Shakespeare, que descobre ser impossível governar sem violar a lei.

É melhor fazer cumprir um mandamento que a sociedade não respeita ou compactuar com o malfeito que não se pode erradicar?

O valerioduto mineiro do tucano Eduardo Azeredo, tudo indica, serviu de modelo para uma estratégia de âmbito nacional. É grave. Mas por que o PT encara o paredão enquanto as acusações ao PSDB correm o risco de prescrever? Estaria certo Dirceu, ao defender a teoria conspiratória? Ou foi obra do soberano acaso? Como em Édipo Rei, aquele que mais procura a justiça descobre ser ele mesmo o culpado.

Perguntei a amigos informados o porquê de o mensalinho mineiro ter morrido no tempo, enquanto o mensalão enfrenta a fúria exemplar. Os analistas de quintal apontam para mais de uma razão.

O PSDB foi obrigado a seguir o moroso caminho da Justiça comum, enquanto o PT foi julgado pelo Supremo. Parte dos magistrados assumiu o cargo durante o governo Lula e, presumivelmente, as chances dos processados, ali, seriam maiores.

A indignação de Gilmar Mendes com o ex-presidente, provocada pela insinuação de que o ministro teria visitado a Alemanha na companhia de Demóstenes Torres, envolvido no caso Cachoeira, teria contribuído para o endurecimento do STF. E, também, a desastrosa defesa do caixa dois.

A sequência lógica, repartida em núcleos, imposta pelo relator do processo, tornou difícil a contestação dos fatos e o resultado foi o derramamento de penas.

Dirceu insiste que o tribunal agiu sob pressão da opinião pública atiçada pela imprensa. Mas quem soltou as feras no Coliseu romano foi Roberto Jefferson, de olho roxo, cantando vingança, depois de dar com a língua nos dentes em cadeia nacional. O tom de escândalo não partiu das Redações. O termo mensalão é de autoria do deputado.

A crítica mais pertinente sobre o comportamento dos meios de comunicação eu ouvi de Janio de Freitas, no Roda Viva. Segundo o oráculo, um veículo pode e deve tomar posição, mas não tem o direito de fingir neutralidade.

Dirceu e Genoino foram enredados porque soava absurda a explicação de que Delúbio Soares teria sido, à revelia do partido, o arquiteto solitário dos empréstimos milionários e da negociação com a bancada. Mesmo sem provas irrefutáveis, foi preciso responsabilizar o alto escalão. Os autos levaram a isso.

O Partido dos Trabalhadores sempre se viu como o partido do povo brasileiro. Para o PT, o PT é o povo, nascido dos sindicatos e da mão de obra que ergueu o País. Havia uma simbiose entre a vontade do partido e a da nação que legitimava, para alguns envolvidos, as transações criminosas.

Nos últimos dez anos, o PT sofreu o linchamento de quadros do calibre de Palocci, Gushiken, Erenice Guerra e sempre se manteve coeso. Se serve de consolo, o mesmo não se pode dizer do PSDB.

A herança guerrilheira de muitos de seus fundadores sabe que o projeto comum está acima do indivíduo, mesmo quando o custo é 1 libra da carne em torno do coração.

Data venia.


*Fernanda Torres é atriz. Este texto foi publicado no dia 23 de novembro de 2012 pelo jornal Folha de S. Paulo, onde ela assina uma coluna aos sábados, a cada duas semanas. 


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